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Fotografia da minha autoria |
As imagens promocionais, pelo seu caráter cómico, transportaram-me para o universo da série Último a Sair - um autêntico marco televisivo, que nos deixou pérolas como «o mundo não é isto, o mundo é bué cenas». Ainda assim, as diferenças são óbvias e creio que se entende, desde o começo, que a nova produção da autoria de Bruno Nogueira, escrita em parceria com Carlos Coutinho Vilhena, Frederico Pombares e Luís Araújo, permanecendo no espectro do humor, nos permitirá refletir sobre censura e liberdade.
impressões depois do primeiro episódio
Ruído apresenta-nos um mundo distópico, no qual foi criada uma lei que proíbe o riso, no qual «foi retirada a liberdade para expressar qualquer tipo de alegria em público». Assim, neste crescente ambiente de medo e de desconfiança, um grupo de atores e de argumentistas decidiu «criar um movimento de resistência clandestina, para que as pessoas possam rir em segredo». O resto, como o nome revela, será somente ruído.
A comédia tem o poder de transformar a realidade em que vivemos, portanto, sermos privados da sua essência é, no fundo, vermo-nos a ficar privados de certos direitos, por mais básicos que nos pareçam ser. Se nos impedem de rir, se restringem aquilo a que podemos achar graça, se nos limitam ao ponto de sentirmos necessidade de olhar por cima do ombro, não passaremos de máquinas programadas para agirem consoante um padrão, para agirem de acordo com aquilo que é considerado politicamente correto.
É um argumento ficcional, no entanto, passei a maior parte do episódio a pensar como seria habitar uma sociedade com estas características. Eu que tenho riso fácil, que sou capaz de me rir das coisas mais parvas, que uso o humor como mecanismo de defesa e dialeto para relativizar determinadas situações, percebi que teria muitas dificuldades para sobreviver sem pagar multas sucessivas. Por outro lado, se as consequências se revelassem piores com o tempo, creio que o medo acabaria por me paralisar e, aí, já não existiram motivos de preocupação, mas também deixaria de ser a pessoa que sou.
O primeiro episódio inicia-se com um interrogatório e, naturalmente, o objetivo de cada um dos intervenientes é não confessar o que fizeram, mesmo quando forem confrontados com imagens/informações que os comprometam. Essa desconstrução, no meu ponto de vista, está exímia, até porque nos mostra diferentes formas de reagir perante o mesmo problema. Além do mais, ao termos esse momento intercalado com sketches, conseguimos compreender a dimensão do movimento e o quanto as pessoas precisam de rir, sem estarem preocupadas com as repercussões dessa escolha livre.
Com um elenco fabuloso, acho impressionante como algumas cenas nem parecem ser filmadas, ou seja, como fica a sensação de estarmos a ver imagens reais e não atores a interpretar um papel para o qual ensaiaram a fundo. Sinto que esta dinâmica é mesmo sagaz, envolvendo-nos ainda mais com o contexto e com aquele grupo revolucionário.
Ruído coloca-nos no lado da clandestinidade, ao mesmo tempo que nos faz pensar na quantidade de condicionantes que parecem pairar no humor. E não me refiro à velha questão de quais são os seus limites, refiro-me, sim, ao facto de ser «cada vez mais visto como algo a combater», como indicou Bruno Nogueira, sobretudo se tocar em temas sensíveis. Embora não pretenda fazer da série um manifesto político, faz-nos pensar nessa vertente e, acima de tudo, refletir sobre aquilo «que poderia ser feito se, um dia, o riso fosse mesmo proibido», priorizando sempre o lado do entretenimento.
considerações finais
O riso pode tocar em aspetos que nos fragilizam, porque ficamos vulneráveis perante os outros, porque isso significa que encontraram em nós - nas nossas crenças e/ou nos nossos comportamentos - detalhes com a capacidade de serem risíveis. Por isso é que o humor parece sempre sujeito a uma vistoria minuciosa, para que nunca ultrapasse os limites que julgamos intocáveis, mas se nós não nos pudermos rir e, desta maneira, desconstruir assimetrias, distâncias ridículas e preconceitos, o que é que nos resta?
A série Ruído transborda de subtilezas, mesmo quando parece que as rábulas não são mais do que representações parvas, com o propósito de entreter. Potenciar esse lado de lazer é ótimo e acredito mesmo que nos faz falta, porque talvez nem tudo tenha de ser educativo e profundo, mas acho genial quando, através da comédia, da piada mais ou menos fácil, existem cenários que ficam a ecoar e que nos obrigam a pensar neles.
Para além do argumento, adorei ver alguns atores em registos diferentes, como o caso do Gonçalo Waddington e do Albano Jerónimo, porque foi uma maneira de reforçar a versatilidade do seu talento - pessoalmente, acho que o Gonçalo Waddington tem um ritmo de comédia excelente. Ademais, sinto que a série foi crescendo de episódio para episódio e que terminou de uma forma brilhante, atando todas as pontas anteriores.
Não quero pormenorizar excessivamente para não condicionar a experiência de quem ainda não viu Ruído, mas permitam-me só listar o que me ficou de cada um dos restantes episódios:
- episódio dois: a falta de representatividade, a falácia das aparências, o fascínio pela tragédia e a necessidade que algumas pessoas têm de querer agradar todos;
- episódio três: os picos de energia de quem trabalha numa rádio e os filhos que são usados para ganhar dinheiro;
- episódio quatro: os clichés que repetimos em momentos dolorosos (e que me deixou a pensar se são uma formalidade ou um mecanismo de defesa), a verdade e o rigor que se opõem ao que vende, ao clickbait;
- episódio cinco: será que há somente um grupo de resistência ou haverá mais pessoas a tentarem ir contra a corrente?
- episódio seis: a nossa obsessão pelos números e pelo abismo, a ausência de filtros sociais;
- episódio sete: como é que o nada nos assusta tanto? Como é que o riso nos preocupa? Além disso, persiste a noção de que a liberdade dá trabalho, mas que, por mais que tentem, não é possível eliminar uma ideia;
- episódio oito: os limites do humor, os ses que condicionam, o machismo e a coragem necessária para ir e para ficar.
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