Entre Margens

Fotografia da minha autoria



O problema das expectativas é que nem sempre as conseguimos calibrar para não sairmos defraudados. Depois de ter adorado a loucura d' As Primas, esperava encontrar, pelo menos, o mesmo nível de envolvimento com o livro que me faltava ler de Aurora Venturini, apesar de saber que esse enredo era anterior, só que a experiência não correspondeu ao desejado.


 uma carência gritante

A Família Caserta é uma narrativa cheia de incertezas, mistério e um traço esotérico. Através da voz de Maria Micaela Stradolini, mais conhecida por Chela, mergulhamos na biografia desta família disfuncional, porque ela decidiu explorar um baú de papéis e fotografias, como se de um tesouro perdido se tratasse, e, assim, fazer-nos compreender o que escondem aquelas memórias, o que se passa - e passou - dentro daquelas quatro paredes. Neste romance, «ambientado na alta burguesia argentina dos anos 1920», rapidamente compreenderemos que os seus problemas são de natureza emocional e, sobretudo, de um lugar de carência.

O mais curioso é que, durante o período que retrata a infância e o início da adolescência da protagonista, senti que poderia vir a gostar ainda mais desta história: a construção das personagens pareceu-me mais profunda, a própria narrativa apresentou-se mais sombria e mordaz, inquietando-me pela negligência, pelos comportamentos que se repetem pela observação, pela rejeição e pela necessidade de trazer alguma estabilidade às ausências. No entanto, foi-me perdendo, porque sinto que perdeu a coesão.

«E o diminutivo emociona-me. Choro. Mas o médico não repara, pois a minha doença produz lágrimas. Mas eu sei que choro pela novidade de uma ternura»

Gosto da escrita e da capacidade que a autora tem de explorar aquilo que é «feio para falar [de] amor», mas não me cativou o uso excessivo de realismo mágico. Aliás, se tivesse surgido de um modo gradual, acredito que tivesse outro impacto e permitisse explorar, por exemplo, o delírio com outra profundidade. Assim, fica a sensação de que os temas ficaram ofuscados por um fogo de artifício que acrescentou pouco ao enredo.

A Família Caserta mostra-nos que há imensas sombras que nos habitam e que, por vezes, é difícil libertarmo-nos da imagem que os outros construíram a nosso respeito. Explorando, ainda, tópicos como a redenção, o perdão, a procura por liberdade e os conflitos entre aqueles que nos deveriam proteger e ser os primeiros a amar, confesso que não resultou comigo.


 notas literárias

  • Gatilhos: Referência a suicídio
  • Lido entre: 2 e 3 de maio
  • Desafio: 5 autores para 2025
  • Formato de leitura: Físico
  • Género: Romance
  • Pontos fortes: O início da história e o tom de mistério
  • Banda sonora: Best Of Mozart (playlist) | Beethoven: Symphony No.5, Ludwig van Beethoven, Kurt Masur & New York Philharmonic | La Violetera, Sara Montiel, Juan Quintero & Greg Segura

Disponibilidade: Wook (Livro | eBook) | Bertrand (Livro | eBook)
Nota: Esta publicação contém links de afiliada da Wook e da Bertrand

Fotografia da minha autoria


O tom cristalino de um lago encerra em si uma infinidade de porções que não somos capazes de decifrar: seja pela imensidão, seja pela perspetiva de onde o observamos. É nesse jogo de contrastes entre luz e sombra que se constrói o livro de Joana Bértholo.


 entre a realidade e a ficção

O Lago Avesso é uma hipótese biográfica que pretende colmatar o hiato entre a vida e a obra de Ella Bouhart, uma coreógrafa consagrada que «vive num sexagésimo quarto andar, no centro de uma metrópole», com vista privilegiada para um enorme jardim e um lago. Nesse horizonte, que observa todos os dias, procura decifrar as várias cores predominantes e, por consequência, refletir sobre os lugares onde não é capaz de ir, «os territórios da sua vida que se sente incapaz de ocupar», bem como o seu inverso.

Eu que não sei nadar dei por mim mergulhada na profundeza destas águas oscilantes, desta narrativa construída a retalhos, ambiguidades, múltiplas perguntas e repetições. Creio, inclusive, que nos leva para fora de pé, porque em nenhum momento é claro o que desta história poderia ser verídico ou ficcional. Através da personagem principal, a autora desenha um retrato de pessoas distintas, com quem nos poderíamos cruzar na rua - ou ser um espelho dos nossos heterónimos. Além disso, é um livro cheio de movimento, bastante visual, e, por esse motivo, entramos numa espiral vertiginosa.

Em boa verdade, parece que assistimos a uma coreografia cuidadosamente idealizada, silenciosa, que nos deixa no limbo do entendimento. E eu gosto que a escrita da Joana Bértholo nos desperte esta dúvida constante, atendendo a que a mensagem aparenta prolongar-se para além do texto, para além da imagem que interpretamos de imediato. E gosto que nos apresente uma personagem moralmente questionável, envolta numa série de polémicas. Este último ponto não é o que desejamos das pessoas, no entanto, sinto que a humaniza e que nos coloca, por um lado, num lugar de desconforto e, por outro, a abraçar um exercício de empatia onde não encaixam julgamentos rápidos.

«Há pensamentos assim, que impedem outros, pensamentos que trancam portas e que calam vozes. Que não permitem o direito ao contraditório»

O caminho é labiríntico e achei interessante a ideia da sombra, assim como a certeza de irmos descobrindo Ella pelas situações que a rodeiam. A dado momento, parece que ela é apenas um corpo naquele cenário, observando a vida que corre fora de si, tecendo possibilidades, esbatendo limites, ficando à margem a a recolher os reflexos de uma realidade sempre em mudança, enquanto nós esperamos unir as pontas soltas.

O Lago Avesso é incomum e, por vezes, senti que estávamos perante o final de um ato, quando as cortinas descem e as luzes se apagam. Há tanto que continua a ser escrito nessa tela vazia, porque há fragilidades que se escondem no silêncio, mas que ecoam por dentro, há problemas indecifráveis a olho nu, mas que corroem os alicerces, há problemas que se escondem, mas que aumentam e nos transformam em ruínas. Este livro desafia-nos, mas entrelaça-se às nossas emoções, sendo difícil largar a mão.


 notas literárias

  • Gatilhos: Morte, linguagem gráfica
  • Lido entre: 20 e 25 de maio
  • Formato de leitura: Físico
  • Género: Romance
  • Capitulo favorito: Confirmação
  • Pontos fortes: A constante sensação de quebrar a lógica e a humanidade da história/personagens
  • Banda sonora: Mad Girl’s Love Song, Static Sway | People They Ain’t No Good, Nick Cave | Kilimanjaro, Valas | Let It Be, The Beatles | Chiaroscuro, Capicua | Dance In The Sunlight, Lost Frequencies & Bandit

Disponibilidade: Wook (Livro | eBook) | Bertrand (Livro | eBook)
Nota: Esta publicação contém links de afiliada da Wook e da Bertrand

Fotografia da minha autoria


As saudades de um autor, por vezes, são subtis, mas orientam-nos com propósito, por isso, inconscientemente, dei por mim a selecionar dois livros da Joana Bértholo para ler em simultâneo, quando precisava de uma leitura mais curta que me acompanhasse entre viagens de metro. Olhando para o catálogo do Kobo Plus, nem hesitei na escolha.


 efemeridade vs transversalidade

Augusta B. ou As Jovens Instruídas 80 Anos Depois nasceu no Festival Correntes d’Escritas 2023, «a propósito da iniciativa Residência de Um Dia em que vários autores e autoras foram convidados a explorar a Póvoa de Agustina», e partiu do famoso anúncio que a autora publicou no jornal Primeiro de Janeiro, aos 22 anos, «para se corresponder com uma pessoa inteligente e culta». Assim, através de duas jovens na mesma faixa etária de Agustina, pretende estabelecer uma ponte com a atualidade e a procura pelo outro.

O mundo das aplicações de encontros continua a ser turvo para mim. Nunca explorei e, embora não seja uma porta completamente fechada, não me imagino a fazê-lo, uma vez que não tenho jogo de cintura suficiente para gerir a dança incerta que é o engate. No entanto, acho interessante ler sobre o assunto e compreender como é que as coisas têm evoluído, como é que um ato tão disruptivo continua a ter impacto na sociedade, em geral, e nas mulheres, em particular, como é que as necessidades se alteram e há cenários que são transversais. Existem oito décadas a separar estas personagens, mas a vontade de viver um romance arrebatador é força motriz dos seus comportamentos.

«Tudo naquela história soava obsoleto: o veículo, os modos e o contexto. Mas talvez não o impulso, sentiram elas; talvez não o anseio, talvez não a carência, a volúpia ou a intensidade. Porventura nada do que realmente importa teria mudado»

Cansadas das formalidades do digital, Augusta e Raquel decidem republicar o anúncio de Agustina e, a partir daqui, abre-se um novo mundo de peripécias e dificuldades - e de entusiasmo também, talvez, pela novidade e pelo desejo de descobrirem até onde é que aquilo as levaria. Não obstante, os sucessivos entraves, sinto, acabaram por trazer duas das camadas mais bonitas desta narrativa: um conhecimento intimo sobre quem são e o lugar que ocupam no mundo e a construção de uma amizade feminina sólida. Além disso, acho mesmo interessante a ideia de termos tanto em comum com alguém que não conhecemos e a noção de que os lugares são ramificações da nossa história.

Augusta B. ou As Jovens Instruídas 80 Anos Depois desconstrói, por um lado, a imagem de que todas as histórias de amor têm de começar de uma forma profundamente poética e, por outro, mostra-nos que, por mais que as ferramentas que utilizemos se venham a relevar efémeras, a procura pelo amor é transversal a qualquer geração: seja qual for o plano de ação, seja qual for a natureza desse amor. E que nunca nos falte o impulso de mergulhar neste sentimento: se calhar, só precisamos de uma trivial folha de jornal.


 notas literárias

  • Lido entre: 24 e 25 de maio
  • Formato de leitura: Digital
  • Género: Novela
  • Pontos fortes: A escrita e a capacidade de estabelecer uma ponte tão fascinada entre o passado e o presente
  • Banda sonora: O Amor é Mágico, Expensive Soul | Decide-te, Rita Rocha | Plot Twist, Carolina Deslandes | Telefone Estragado, Nena

Disponibilidade: Wook (Livro | eBook) | Bertrand (Livro | eBook)
Nota: Esta publicação contém links de afiliada da Wook e da Bertrand

Fotografia da minha autoria


O folhetim criado por Afonso Cruz para o jornal Público foi publicado de segunda a sexta, com uma edição áudio aos sábados, desde o dia 25 de abril de 2023 até ao dia 25 de abril de 2024, a propósito dos 50 anos da Revolução. E, este ano, renasceu em livro.


 uma narrativa escrita em espelho

Fábrica de Criadas é ficcional, no entanto inspira-se num episódio verídico. A narrativa contém um arco temporal de meio século, «distribuído em espelho: vinte e cinco anos antes do 25 de abril e vinte e cinco anos depois», e permite-nos acompanhar a infância de uma menina que foi abandonada pelo pai, quando ainda só tinha seis anos, «num asilo para crianças desvalidas», como era designado na altura. Ali, aprendiam tarefas que lhes permitiriam vir a ser criadas de servir, mas nem tudo corre como o esperado.

A construção do livro fascinou-me de imediato por várias razões: porque os capítulos foram escritos diariamente, porque havia uma estrutura que tinha de ser respeitada e que não corresponde ao processo criativo habitual do autor e porque não era possível voltar atrás e reescrever. Isso, creio, tornou tudo mais desafiante e, talvez, mais ligado à essência desta história. Em simultâneo, achei interessante que procurasse mostrar as diferenças sociais e políticas entre uma vida em ditadura e uma vida em democracia.

«(...) mas sem articular palavra nenhuma. Não as tinha. Era uma outra espécie de censura, a dor que apaga a palavra e deixa apenas ruído, um grito desprovido de sentido»
  
É nesta zona de desconforto que o autor se movimenta e, com uma certa simplicidade na escrita, nos transporta para um misto de perversão e inocência, de dureza e afeto, de ausência e presença, de reação e conformismo. Embora essas fronteiras não sejam claras em alguns momentos, por se sobreporem, percebemos que permanecem atuais. E não deixa de ser angustiante constatar que a luta continua a ser urgente, tal como o era há cinquenta e um anos. E é por esse motivo que sinto que ler este livro agora teve ainda mais impacto: porque é assustador pensar que a História se pode vir a repetir.

Quando mergulho numa obra de ficção, não vou à procura de respostas concretas para as minhas inquietações, nem pretendo que resolva o caos dos meus dias. Ainda assim, admito, sabe a abraço apertado quando, sem existir essa pretensão, contactamos com testemunhos que impulsionam a nossa vontade de resistir, de agir, de prolongar rasgos de esperança no meio da escuridão, porque nos mostram que, se não nos rendermos, é possível vencer o medo, a opressão, a clausura e o silêncio. Claro que isto não é linear, claro que há muito sofrimento, muitas perdas, muitas situações ambíguas e revestidas de desrespeito e desumanidade, portanto, não é possível romancear este cenário, não obstante, é a teimosia de um povo que não se verga que traz a poesia que nos falta.

«(...) a luta de uns é também de outros, como diz a canção: "nenhum de nós anda sozinho". Abril não nos ofereceu somente sonhos. Abriu a porta. Cabe ao povo sair da prisão»

Encontrei a teimosia que supracitei, sobretudo, numa das personagens principais, até porque acredito que é a espinha dorsal deste enredo. É através das suas escolhas e das suas ações que vemos o destino a ser questionado, que nos sentimos de sobreaviso e que avançamos de coração nas mãos, para descobrirmos o que acontece nos hiatos e quais serão as consequências desta resistência intencional, feita de várias subtilezas

Fábrica de Criadas confronta-nos com a imagem da criada, com a condição da mulher, com desigualdades e com as próprias diferenças entre o meio rural e o meio urbano. Sendo um enredo de Afonso Cruz, existem inúmeros detalhes que nos surpreendem e que nos fazem questionar a lógica. E acho fascinante como também parte da religião para analisar as formas distintas como podemos lidar com o mundo que habitamos. Além do mais, acredito que também é uma história que luta contra o esquecimento.


 notas literárias

  • Gatilhos: Violência, morte, luto; linguagem explícita
  • Lido entre: 13 e 20 de maio
  • Formato de leitura: Físico
  • Género: Romance
  • Personagem favorita: A Irmã Gorda
  • Pontos fortes: A escrita que não perde a poesia na sua simplicidade, os contraste sociais e a construção do enredo
  • Banda sonora: Jornada, Fernando Lopes-Graça & José Gomes Ferreira | Grândola, Vila Morena, Zeca Afonso | Montanha, Plutonio | Abril, Carolina Deslandes | A Madrugada Que Eu Esperava, Bárbara Tinoco

Fotografia da minha autoria



alguém atrás de mim
disse que se sentia um vaso cheio
de fissuras
e eu senti o estilhaço como
se me olhasse ao espelho
e das linhas destas mãos
todo o meu corpo fosse feito
de cicatrizes e lugares vazios

Fotografia da minha autoria



As minhas caixas de madeira, outrora tão cheias, devem estar a estranhar o meu controlo literário. Excluindo abril, o mês que, até ver, foi onde fiz mais estragos neste departamento, tenho sido bastante regrada nas minhas compras, porque me interessa cada vez menos acumular histórias e demorar a priorizá-las. Ainda assim, isso não significa que a lista de desejos tenha estagnado: muito pelo contrário, vai aumentando com alguma rapidez. E, por esse motivo, há livros de autores portugueses que ainda quero comprar este ano.


 o vício dos livros ii, afonso cruz
«Sócrates não deixou escrita uma linha que fosse para a posteridade, Charles Darwin não suportava a poesia, Henry David Thoreau acreditava que a leitura de um livro marcava o início de uma era para cada leitor, Fernando Namora dizia que não escrevia para agradar a ninguém e Julian Green fazia-o para não sufocar. Tudo isto e muito mais ficamos a conhecer neste segundo volume de O vício dos livros, onde Afonso Cruz — ciente de que os vícios são difíceis de matar, mas que ao contrário de outros este tem tanto de prazer quanto de benefício — alimenta o leitor com um sem-número de curiosidades literárias, reflexões e memórias, provando que é possível, sim, compreender a vida através da literatura».

 a desobediente, patrícia reis
«A dor e o abandono chegaram cedo à vida de Teresinha, a filha mais velha de um dos mais prestigiados médicos da capital e de uma mulher livre e corajosa, descendente dos marqueses de Alorna, que nas ruas e nos melhores salões de Lisboa rivalizava em encanto com Natália Correia. A menina que haveria de ser poetisa vê a morte de perto quando ainda mal sabe andar, sobrevive às depressões da mãe, chegando mesmo a comer uma carta para a proteger. É dura e injustamente castigada e as cicatrizes hão-de ficar visíveis toda a vida, de tal modo que a infância e a adolescência de Maria Teresa Horta explicam quase todas as opções que tomou. Sobreviver ao difícil divórcio dos pais, duas figuras incomuns, com as quais estabeleceu relações impressionantes de tão complexas, foi apenas uma etapa».

 a casa invisível, francisca camelo
«Há uma casa invisível onde toda a gente vive, mas ninguém a vê. Nesta casa vivem mil seres pequeninos, quase microscópicos e sempre em roda-viva, que remendam, compõem, cozinham, arrumam e, vejam lá, até fazem a cama! Mas que casa é esta, afinal? E como podemos encontrá-la. Nesta história tão mágica quanto real, os miúdos e os graúdos poderão, finalmente, conhecer juntos os cantos à casa — e quem, amorosamente, a compõe por dentro».

 mais uma desilusão, valério romão
«Partindo do reflexo ao espelho, vai contrapondo as suas próprias experiências formativas - a que não faltam as memórias de infância ou as dores de crescimento - ao território fértil em contradições e promessas de uma país órfão da sua fantasia atlântica e dos territórios que lhe correspondiam, lançado aos braços de uma União Europeia de bolsos fundos e exigências - aparentemente - razoáveis, desejoso de sacudir o mofo de cinco décadas de ditadura para finalmente chegar à tão desejada e misteriosa modernidade e, já agora e no mesmo passo, à idade adulta».

 soco e sono, inês morão dias
«O que é Soco e Sono? E sobre o que é? Dizer que são poemas é evidente, embora lhe possamos chamar uma colecção de solilóquios, dúvidas, meditações e até subtis divertimentos. Já a pergunta acerca do ‘sobre’, além de ser de utilidade questionável num poema, deixa-nos neste caso sem resposta satisfatória. Há textos sobre arquitectura, cidades estrangeiras, amizade e exílio, ‘espécies de espaços’, palavras de níveis linguísticos diferentes no mesmo texto (‘hermenêutica’ e ‘rebuçados’, conjunto que Álvaro de Campos aprovaria), o banal e o bizarro, a conversa coloquial e a intelectual».

 adrenalina, filipa leal
«Adrenalina é o novo livro de Filipa Leal, uma obra que leva a autora a fazer o balanço: «O meu primeiro livro de poemas foi publicado em 2004, há 20 anos. Acho que este é um exercício de maior reflexão, talvez, sobre a maturidade. Sobre a vontade de não ter pressa, e não conseguir. Há um conflito entre a ansiedade do quotidiano no século XXI, esta urgência de viver, e uma vontade de dizer à própria vida: tem calma, não tragas mais surpresas, por favor, porque, às vezes, são más. É um espelho da infância, da adolescência, da família, do amor, da amizade, dos pequenos e dos grandes desastres... Mas, como sabemos (e o livro ainda esteve para se chamar assim): os espelhos mudam muito com o tempo».

 autobiografia não autorizada 2, dulce maria cardoso
«Talvez tivesse sido melhor começar por falar da decisão de me usar como personagem: tendo em conta que, numa crónica, se espera que o autor esteja mais declaradamente presente, este seria o sítio em que experimentaria não fugir de mim. Bem sei que era arriscado: vivi histórias extraordinárias, vi-me envolvida em situações terríveis, também eu se quisesse enlouquecia. Talvez não fosse prudente aventurar-me por mim adentro. Daí a autobiografia ser não autorizada. Escreveria a minha biografia à minha revelia. O ilícito desmascarado no não autorizada dizia-me exclusivamente respeito. Nunca pensei que pudesse ser de outro modo. Evidentemente que ao falar de mim falaria também daqueles que estão ou estiveram comigo, dos que passam ou passaram por mim. Não estou sozinha, nunca estive sozinha, não sei estar sozinha. Não quero estar sozinha. Os outros estariam a salvo nas minhas crónicas, eu seria a única a correr perigo: estilhaçar-me na minha memória. Não sei escrever sobre o que não amo. Escrever é descobrir, é conhecer. E conhecer, se não é amar, é pelo menos dispor-me a amar. Dispor-me a amar coisas ignóbeis, às vezes. O que também é assustador. Aqueles que não amo nunca terão lugar no que escrevo. O que escrevo é iluminado pelos que amo, são eles que escrevem o que escrevo. Ou, dito de outra maneira, eu sou os que amo, são eles que me escrevem».

Fotografia da minha autoria



Os livros são eternos portais mágicos que entusiasmam qualquer leitor. E não me refiro apenas ao livro enquanto contador de histórias, mas também enquanto local onde podemos regressar para descobrir novas camadas de uma mesma narrativa e enquanto objeto de partilha, permitindo-nos trocar experiências, emoções distintas e transportar aquela realidade para lá das páginas que fomos lendo de coração aberto. E esta dinâmica só é possível atendendo a que temos escritores a dar voz aos mundos infinitos que os habitam.

Hoje, celebra-se o dia do autor português e a minha premissa para o celebrar foi responder à seguinte pergunta: se pudessem ser um escritor português por um dia, quem gostariam de ser? Eis a minha lista!


 se eu fosse um autor português por um dia, seria...

... Afonso Cruz: para viajar por enredos tão plurais e porque fico fascinada com o seu tom efabulado, que nos retira sempre do nosso lugar de conforto;

... Rita da Nova: pela capacidade de bordar metáforas que ficam a ecoar em nós, pelo sarcasmo e por trazer sempre perspetivas diferentes de um mesmo assunto;

... Miguel Esteves Cardoso: porque não há ninguém que nos critique e nos ame com a mesma intensidade e porque sou sempre mais feliz a ler as suas crónicas;

... Joana Bértholo: pelo desafio, por explorar géneros distintos, por brincar com as palavras de uma maneira desarmante;

... Francisca Camelo: porque a sua poesia desorganiza-nos por dentro, inquieta e, a partir de um lugar íntimo, quase visceral, consegue acolher-nos;

... Hugo Gonçalves: pela forma como conduz os seus enredos e pelo equilíbrio entre planos históricos, sociais e emocionais;

... Valter Hugo Mãe: por desafiar algumas lógicas narrativas e trazer poesia nas palavras;

... Mafalda Santos: porque é extraordinário como consegue construir mundos distópicos, mas que nos soam sempre credíveis;

... Catarina Gomes: porque há uma sensibilidade impressionante na abordagem dos seus temas;

... Ana Pessoa: pela capacidade de, a partir de personagens mais jovens, nos transportar para aquelas idades, para aquelas realidades, para as inquietações que nos tocaram a todos;

... Filipa Leal: porque a proximidade dos seus versos desmistifica a ideia de a poesia ser inacessível. Até pode partir de imagens mundanas, mas há sempre um tom que nos transcende;

... Lénia Rufino: pela maturidade da escrita, pela versatilidade, pela atenção ao mundo que a rodeia. Sem querer ser bandeira de certos assuntos, consegue levar-nos a refletir sobre eles. 


 e se vocês pudessem ser um escritor português por um dia?

📖 A Ana Ribeiro seria José Luís Peixoto;
📖 A Sofia Belchiorinho seria Susana Moreira Marques, porque gostava de saber como é fazer literatura a partir de histórias reais.


Permitam-se descobrir os nossos, temos talentos incríveis. Feliz Dia do Autor Português ✨

Fotografias da minha autoria


Os versos talvez não seja o que tu queres/talvez não chegue o que eu te dou/se aquelas com quem tu estiveste/eram melhores do que eu sou/talvez não fosse suficiente/para te fazer aqui ficar fizeram morada em mim, porque existe uma certa identificação, porque o termo de comparação parece entrelaçar-se à nossa identidade, aos nossos pensamentos e às nossas inseguranças. Termos alguém a cantar aquilo que nos transtorna pode ser uma forma de ampliarmos o seu impacto, mas também pode ser uma maneira de sabermos que alguém nos compreende. E foi assim que passei a acompanhar a Carolina de Deus.

A sua voz foi outro aspeto que me conquistou quando a ouvi pela primeira vez, porque é serena, delicada, mas com uma amplitude que nos desarma. À medida que avança na canção e percebemos que aqueles assuntos partem de um lugar íntimo, muito pessoal, é como se se tornasse palpável o que sente e o alcance da sua voz fosse a sua liberdade - e a arte uma aliada para lamber as feridas. Às vezes, torna-se complicado sobressair no universo musical, mas acredito que a artista conseguirá fazê-lo por estas valências.

   

A Liga Portuguesa Contra o Cancro organizou um concerto solidário, no passado dia 16 de maio, no Casino da Póvoa, para que, juntos, continuássemos a fazer a diferença nesta causa tão nobre, até porque, infelizmente, é uma doença que parece assolar cada vez mais famílias. A Carolina de Deus foi o rosto do evento, que também contou com a presença da Joana Almeirante, e aproveitamos a oportunidade para a(s) ouvir ao vivo.

Gostei bastante do ambiente intimista e da presença em palco. Não contava comover-me tanto com uma música que ainda não conhecia (e que espelha bem os estilhaços de certas relações), mas, tal como previa, comovi-me com a Lembras-te de Mim?. Recuei no tempo com alguns dos temas mais antigos e achei fascinante como nos mostrou uma faceta diferente ao cantar uma música em francês. Além disso, gostei que nos abrisse a porta do seu processo criativo ao contar-nos as histórias das canções. Ela diz que não se cala e eu acho isso positivo, porque cria um elo maior entre o músico e a plateia.


Foi uma noite muito bonita, porque a Carolina encheu a sala de emoção e uniu-nos a todos - pela iniciativa e pela música. Talvez aquele não seja o seu público habitual, no entanto, parece-me que, depois deste concerto, dificilmente lhe ficarão indiferente. É bom ver artistas mulheres a conquistarem novos palcos e a darem passos firmes: com graça, humildade e sem rejeitarem a sua essência, mesmo que essa decisão provoque hesitações. De coração aberto, foi-nos cantando a sua história e isso foi inspirador.

Estou curiosa com o álbum que sairá este ano e espero reencontrá-la em breve.

Fotografia da minha autoria


A poesia da Francisca Camelo nunca me deixa indiferente. Acho que tem sempre um toque visceral e um jogo de sombras que nos confunde, porque parece lançar-nos as cartas todas, só para depois nos deixar no limbo. E eu adoro estas oscilações que ela cria, uma vez que nos levam por cenários que nos retiram da nossa bolha.


 poemas que nos desorganizam por dentro

Quem Me Comeu a Carne é «um pedaço de fúria amarela», num formato quase de bolso, mas poderoso, que nos inquieta por nunca nos poupar à arte da reflexão, do sentido crítico, do que nos corrói pela preocupação ou pela sensibilidade. Nestes versos, existe espaço para sentirmos e essa é outra das características que mais aprecio na poetisa, atendendo a que não pretende filtrar qualquer emoção ou ignorar os detalhes que nos fazem mossa - sem excluir problemas maiores. Em simultâneo, acho interessante que equilibre as grandes questões que nos movem enquanto sociedade com as angústias que nos individualizam, sem, no entanto, criar uma barreira, porque são elos cruzados.

Quando terminei a leitura, fiquei a pensar na quantidade de estilhaços que habitam a nossa história, que nos moldam o futuro, que nos fazem tantas vezes recuar e repetir certos padrões. É por isso que acredito que a Francisca Camela escreve sempre de um lugar muito íntimo, mas sem nos excluir. Não sei quantos dos poemas são espelhos, no entanto, encontrei-me em muitos deles, mesmo não tendo vivido tudo aquilo na pele.

«ninguém fará de ti
melhor soldado
do que quem sabe
lamber-te as feridas
em silêncio»

O livro é tão plural, tal e qual o ser humano, que nos transporta pela ira, pelo cansaço, pelas mudanças do corpo, pelo desconhecido, pelo expiar da culpa, pelas relações que mudam e pelo que pode correr mal. Além disso, faz paragem no conceito de casa, nas tragédias e naquilo que procuramos dentro dos nossos destroços. Há um tom quase enfurecido nas palavras, precisamente por serem assuntos que nos exigem urgência e, sobretudo, uma atitude menos superficial na forma como os acolhemos e os gerimos, mas também há amor. E esse talvez seja o maior impulso para permanecer por perto.

Quem Me Comeu a Carne leva-nos para perto do precipício, mostrando-nos o quanto é vital assumirmos os nossos erros e, assim, sermos capazes de nos libertar das amarras que nos prendem ao conformismo, ao individualismo, ao politicamente correto, já que há coisas que têm de nos incomodar - é isso que é viver em comunidade. Ao sentirmos a brisa desse abismo, por fim, talvez sejamos capazes de voar e colmatar as ausências.


 notas literárias
  • Lido a: 12 de maio
  • Formato de leitura: Físico
  • Género: Poesia
  • Poemas favoritos: É válido dizer todos?
  • Pontos favoritos: A intimidade da escrita; o equilíbrio entre a fúria e o amor
  • Banda sonora: Avé Maria, Schubert | À Deriva, Catarina Castanhas | Oração, A Banda Mais Bonita da Cidade | Insomnia, Richie Campbell | Oceano, Djavan

Fotografia da minha autoria



há uma certa poesia neste nascer
na melodia a colorir a cidade
neste céu azul cor de casa
onde há pétalas de camélias a romper
os dias comuns

Fotografia da minha autoria


A capa minimalista poderia ter passado despercebida, mas aquele tom azul prendeu-se ao meu olhar. Mais tarde, dei por mim a recordar o título e foi assim que decidi aventurar-me no livro de Luísa Costa Gomes, considerado um dos melhores de 2024.


 uma leitura oscilante

Visitar Amigos e Outros Contos compila treze contos inéditos, sem terem um aparente fio condutor, mas cujos temas encontram forma de se cruzarem, sobreporem e, até, estabelecerem pontes que lhes atribuem alguma continuidade. Assim, revisita ideias, «linguagens de época», «heranças e renovações», num misto de contemplação e de perplexidade, com doses leves de humor e de acidez na sua escrita cheia de camadas.

Estava curiosa com a prosa da autora e com a pluralidade de assuntos, mas tive uma experiência de leitura oscilante: por um lado, agradou-me a crítica, a exposição de problemas sociais numa cadência pouco convencional e o facto de nos provocar um certo desconforto em algumas passagens, porque não podemos continuar dormentes, no entanto, por outro, não me consegui entrelaçar profundamente a maior parte dos contos, porque senti que se prolongavam para além do necessário. Os inícios tinham a capacidade de me arrebatar, deixar quase sem fôlego, mas depois iam perdendo fulgor.

«Guardamos por cansaço na mesma medida em que deitamos fora por cansaço, como se o critério que nos leva a manter a posse a certa altura duvide de si próprio e desista. Mas há também na bagagem as coisas de que ainda não conseguimos separar-nos»

Há apontamentos bonitos e delicados, e acho interessante como tão depressa concede espaço para refletirmos sobre mudanças de casa, como nos inclui em conversas sobre «gatos, hospitalidade forçada e solidão». Se calhar, foi uma má gestão de expectativas da minha parte ou não o li no tempo certo, porque não resultou comigo. Ainda assim, tenho de destacar: A Ditadura do Proletariado, O Menino-Prodígio e Visitar Amigos.


 notas literárias
  • Gatilhos: Violência, linguagem explícita
  • Lido entre: 4 e 7 de maio
  • Formato de leitura: Digital
  • Género: Contos
  • Pontos fortes: A pluralidade de temas e a crítica social
  • Banda sonora: A Vida Que Se Cala, Mão Cabeça | Meu Amigo, Que Saudades de Te Ver, Os Quatro e Meia | Lembras-te de Mim?, Nena & Carolina de Deus | Eu Vi Este Povo a Lutar, José Mário Branco

Disponibilidade: Wook (Livro | eBook) | Bertrand (Livro | eBook)
Nota: Esta publicação contém links de afiliada da Wook e da Bertrand

Fotografia da minha autoria


A série Daqui Houve Resistência é baseada «em factos e personalidades reais sobre a resistência e a luta antifascista, centrada a Norte de Portugal, durante os treze anos que antecederam o 25 de abril de 1974». Assim, ao longo de cinco episódios, vimos retratada a oposição à ditadura nacional, sempre a partir de locais diferentes e a partir de «uma perspetiva descentralizada» desta luta.

Os episódios abordam temas específicos, mas, transversal a todos eles, temos «os sacrifícios e a coragem de operários, estudantes, militares e ativistas políticos», que, ao decidirem enfrentar a repressão do regime, foram sendo voz da mudança social e política, culminando na nossa tão desejada e imprescindível Revolução dos Cravos.

A resistência manifestou-se de formas distintas, através de rostos anónimos e de movimentos igualmente desconhecidos, «desde a clandestinidade política até às ações mais diretas», multiplicando-me por diversos pontos do país. Por isso, esta série também pretendia demonstrar que as transformações são fruto dessa pluralidade, nascida da urgência de resistir, de não sucumbir, de abrir caminho para a liberdade. Através de códigos inteligentes, planos que visavam uma oposição séria e inspirada na força do coletivo, foram desbravando a escuridão do presente.


 episódio um: a crise académica

Alberto Martins é líder da Associação de Estudantes de Coimbra e a principal figura «responsável pelo início da crise que desafia diretamente o regime e as suas políticas educacionais». Em 1969, enquanto a Crise Académica escala de uma forma gritante, marcando um ponto de viragem no país, Rui Guimarães, um oficial militar, «trava uma luta interna», atendendo a que vê cadetes a serem castigados por se oporem à Guerra Colonial. 

Neste episódio, para além de ser visível a tensão entre os estudantes e as forças armadas, sinto que ficamos muito alerta para as zonas cinzentas que nos habitam e que pairam na forma como lutamos pelos nossos ideais. Os protagonistas foram fazendo o que sabiam, defendendo os valores que lhes pareciam ser os mais corretos. Naturalmente, aparentam estar em pólos opostos desta batalha, mas acho que um dos aspetos mais valiosos deste argumento é mostrar-nos que talvez nem tudo seja o que aparenta, que talvez existam mais pontes a uni-los, a diferença reside, em grande parte, na maneira como decidiram manifestar e defender as suas crenças.


 episódio dois: a luta armada

Casimiro Ribeiro deserta da Guerra Colonial, foge para França e junta-se à L.U.A.R. na luta contra a ditadura portuguesa. Como consequência, envolve-se em atividades clandestinas com o objetivo de financiar a luta armada e a sua vida acaba por ter um rumo diferente e, claro, mais perigoso. No regresso a Portugal, cruza-se com o agente Nogueira, o que coloca em causa a missão para derrubar o regime e a sua liberdade.

Este episódio destaca a miséria, a violência e a tortura. Além disso, ecoa uma questão pertinente: será que, perante privações e um obsceno jogo psicológico, teremos força suficiente para não ceder? No fim, existem perguntas a ficar sem resposta, mas torna-se evidente a linha que separa a segurança da instabilidade. Para que se liberte o povo, a prática nunca poderá ser meiga, por esse motivo, há riscos que são necessários.


 episódio três: a oposição democrática

O grupo Democratas de Braga, ao qual pertenciam figuras ilustres como o professor e visionário cultural Santos Simões e o seu amigo inseparável Eduardo Ribeiro, marcou a resistência ao fascismo, entre os anos de 1965 e 1968. Por seu lado, em Guimarães, enquanto a atividade da PIDE se intensificava, a oposição também ia subindo de tom.

Este episódio centrou-se nas tensões políticas, nos sacrifícios pessoais e em todos os laços forjados na luta pela liberdade. Apesar do medo, continuaram firmes, a avançar pela mudança e achei mesmo interessante como procuraram combater a farsa sendo prudentes - por questões de segurança e mesmo para não comprometer a missão. Há mazelas que ficam para sempre e, ainda assim, a emoção dos presos a serem libertados parece colmatar qualquer trauma que se tente colar à pele dos vários sobreviventes.


 episódio quatro: a luta operária

Os operários lideram uma luta por melhores condições de trabalho, o que aumenta a tensão nas fábricas têxteis de Guimarães. João Ribeiro e Lurdes Mesquita são dois dos rostos dessa indignação, dos sucessivos abusos laborais, da opressão e da urgência de reivindicar uma justiça social ampla. Assim, desencadeiam uma greve na fábrica, com vista à criação de um sindicado representativo das suas necessidades. O problema é que as manifestações serão fortemente reprimidas por diversas autoridades do regime.

Este episódio espelha a crescente onda de violência e de prisões, a total ausência de empatia pelo outro e as prioridades que permanecem trocadas. O ritmo de trabalho é tão frenético e descontrolado, que não existe qualquer garantia de segurança, mas as figuras que detêm o poder não estão preocupadas com esse aspeto, estão preocupadas com a obtenção de lucro, seja a que custo for. Ademais, apesar de todas as ameaças, os trabalhadores continuaram unidos, contando com o apoio da Liga Operária Católica, expondo a cobardia de quem se considera superior, mas que não passa de um peão.


 episódio cinco: a revolução

Rui Guimarães enfrenta o Coronel Mendonça e assume o comando do Regimento da Infantaria 8. Em simultâneo, Casimiro Ribeiro vai resistindo à brutalidade da PIDE e Santos Simões participa na organização das bases para uma sociedade democrática.

Este episódio é o culminar de um objetivo maior: os presos políticos são libertados, as manifestações em Guimarães simbolizam o fim do fascismo e há um tom de esperança que não só contagia o povo, como também cobre as ruas com a Revolução dos Cravos. É, por isso, uma jornada emocional, que não nos deixará indiferentes àquele quadro.


Estes fragmentos independentes contam uma história comum. A partir de diferentes perspetivas, contactamos com diferentes rostos que impulsionaram uma mudança tão ambicionada. E é arrepiante ver como as ruas se enchem para gritar pela liberdade.

Fotografia da minha autoria


O impulso para descobrir escritores nacionais está sempre presente. E em maio, uma vez que se comemora o dia do autor português, aproveito para construir uma lista de leituras que os privilegie. Alinhada neste espírito, recorri ao catálogo da BiblioLED para requisitar um livro de uma autora que estava no meu radar há algum tempo.


 várias questões paralelas

Gula de Uma Rapariga Esquelética de Amor permite-nos conhecer Sara Branco Bizarro, uma pintora «que encostou os pincéis para escarafunchar uma trama de segredos que emergem da mente (ou da vida)». Neste limbo entre aquilo que parecem ser memórias e aquilo que podem ser interpretações livres do seu passado, percebemos que há uma certa necessidade de pintar retratos da sua infância para compreender o presente.

A protagonista leva-nos numa viagem frenética por lugares que tiveram impacto no seu crescimento, mas também por figuras que nunca esqueceu e que de alguma forma continuam a estar muito presentes na sua vida. Só que há um ponto em que passamos a duvidar da veracidade do seu discurso, da cronologia, das associações que parecem encaixar na perfeição. Insaciável, há uma urgência palpável para se desembaraçar da ingenuidade que ainda acredita manter e dos traumas que a moldaram para sempre.

A premissa afigurou-se vertiginosa, mas confesso que me perdi na cadência, nos seus floreados, nas alternâncias temporais. Acredito que a escrita tem potencial, e houve passagens que me fizeram rir e ficar apreensiva pela imprevisibilidade, contudo, sinto que se alicerçou a detalhes que não acrescentaram informação relevante ao enredo. E isso fez com que, por um lado, me afastasse da narrativa e, por outro, que sentisse que o tema central perdeu força, porque foi ofuscado por uma série de questões paralelas.

«Havia este desassossego permanente de sentir que a vida me fugia - culpava-me por não fazer nada para o calar -, uma gula perturbada não sei bem de quê e uma coisa que me doía por querer ir»

Em parte, consigo compreender a dinâmica que a autora assumiu, criando, aqui, uma estrutura um pouco peculiar, que pretende incorporar-nos nas oscilações da narradora e protagonista da história, mas gostava de ter encontrado uma coesão maior. É mesmo interessante a noção do que se constrói e destrói por amor e o retrato da mulher que carrega o fardo dessas antíteses, e entendo que, em cenários de violência e de trauma, não sejamos capazes de manter um fluxo de consciência linear, só gostava de ter tido mais espaço para compreender todas as dores e todas as perdas desta personagem.

Gula de Uma Rapariga Esquelética de Amor aborda temas como saúde mental, violência doméstica, luto e desigualdade de género. Abrindo portas para várias reflexões, creio que nos faz pensar no quanto somos moldados por situações às quais não deveríamos ter assistido, porque, sem as compreendermos, podem deixar-nos feridas profundas.


 notas literárias
  • Gatilhos: Violência doméstica, linguagem explícita
  • Lido a: 1 de maio
  • Formato de leitura: Digital
  • Género: Romance
  • Pontos fortes: Alguns apontamentos cómicos e sarcásticos na escrita e o tema
  • Banda sonora: Nunca Me Esqueci de Ti, Rui Veloso | Ninguém, Raquel Martins

Disponibilidade: Wook (Livro | eBook) | Bertrand (Livro | eBook)
Nota: Esta publicação contém links de afiliada da Wook e da Bertrand
Mensagens mais recentes Mensagens antigas Página inicial

andreia morais

andreia morais

O meu peito pensa em verso. Escrevo a Portugalid[Arte]. E é provável que me encontrem sempre na companhia de um livro, de um caderno e de uma chávena de chá


o-email
asgavetasdaminhacasaencantada
@hotmail.com

portugalid[arte]

instagram | pinterest | goodreads | e-book | twitter

margens

  • ▼  2025 (118)
    • ►  junho (13)
    • ▼  maio (21)
      • a família caserta, aurora venturini
      • o lago avesso, joana bértholo
      • augusta b. ou as jovens instruídas 80 anos depois,...
      • fábrica de criadas, afonso cruz
      • um vaso de fissuras
      • livros de autores portugueses que ainda quero comp...
      • se eu fosse um autor português por um dia
      • carolina de deus no casino da póvoa
      • quem me comeu a carne, francisca camelo
      • os dias comuns
      • visitar amigos e outros contos, luísa costa gomes
      • daqui houve resistência
      • gula de uma rapariga esquelética de amor, gabriela...
      • a mesma sensação de casa
      • quanto tempo tem um dia, susana moreira marques
      • não fossem as sílabas do sábado, mariana salomão c...
      • apesar do sangue, rita da nova
      • finisterra
      • a casa da esquina
      • vista chinesa, tatiana salem levy
      • as coisas maravilhosas de abril
    • ►  abril (22)
    • ►  março (21)
    • ►  fevereiro (19)
    • ►  janeiro (22)
  • ►  2024 (242)
    • ►  dezembro (24)
    • ►  novembro (17)
    • ►  outubro (17)
    • ►  setembro (18)
    • ►  agosto (12)
    • ►  julho (23)
    • ►  junho (20)
    • ►  maio (23)
    • ►  abril (22)
    • ►  março (21)
    • ►  fevereiro (21)
    • ►  janeiro (24)
  • ►  2023 (261)
    • ►  dezembro (23)
    • ►  novembro (22)
    • ►  outubro (22)
    • ►  setembro (21)
    • ►  agosto (16)
    • ►  julho (21)
    • ►  junho (22)
    • ►  maio (25)
    • ►  abril (23)
    • ►  março (24)
    • ►  fevereiro (20)
    • ►  janeiro (22)
  • ►  2022 (311)
    • ►  dezembro (23)
    • ►  novembro (22)
    • ►  outubro (21)
    • ►  setembro (22)
    • ►  agosto (17)
    • ►  julho (25)
    • ►  junho (30)
    • ►  maio (31)
    • ►  abril (30)
    • ►  março (31)
    • ►  fevereiro (28)
    • ►  janeiro (31)
  • ►  2021 (365)
    • ►  dezembro (31)
    • ►  novembro (30)
    • ►  outubro (31)
    • ►  setembro (30)
    • ►  agosto (31)
    • ►  julho (31)
    • ►  junho (30)
    • ►  maio (31)
    • ►  abril (30)
    • ►  março (31)
    • ►  fevereiro (28)
    • ►  janeiro (31)
  • ►  2020 (366)
    • ►  dezembro (31)
    • ►  novembro (30)
    • ►  outubro (31)
    • ►  setembro (30)
    • ►  agosto (31)
    • ►  julho (31)
    • ►  junho (30)
    • ►  maio (31)
    • ►  abril (30)
    • ►  março (31)
    • ►  fevereiro (29)
    • ►  janeiro (31)
  • ►  2019 (348)
    • ►  dezembro (31)
    • ►  novembro (30)
    • ►  outubro (29)
    • ►  setembro (30)
    • ►  agosto (16)
    • ►  julho (31)
    • ►  junho (30)
    • ►  maio (31)
    • ►  abril (30)
    • ►  março (31)
    • ►  fevereiro (28)
    • ►  janeiro (31)
  • ►  2018 (365)
    • ►  dezembro (31)
    • ►  novembro (30)
    • ►  outubro (31)
    • ►  setembro (30)
    • ►  agosto (31)
    • ►  julho (31)
    • ►  junho (30)
    • ►  maio (31)
    • ►  abril (30)
    • ►  março (31)
    • ►  fevereiro (28)
    • ►  janeiro (31)
  • ►  2017 (327)
    • ►  dezembro (30)
    • ►  novembro (29)
    • ►  outubro (31)
    • ►  setembro (30)
    • ►  agosto (17)
    • ►  julho (29)
    • ►  junho (30)
    • ►  maio (24)
    • ►  abril (28)
    • ►  março (31)
    • ►  fevereiro (28)
    • ►  janeiro (20)
  • ►  2016 (290)
    • ►  dezembro (21)
    • ►  novembro (23)
    • ►  outubro (27)
    • ►  setembro (29)
    • ►  agosto (16)
    • ►  julho (26)
    • ►  junho (11)
    • ►  maio (16)
    • ►  abril (30)
    • ►  março (31)
    • ►  fevereiro (29)
    • ►  janeiro (31)
  • ►  2015 (365)
    • ►  dezembro (31)
    • ►  novembro (30)
    • ►  outubro (31)
    • ►  setembro (30)
    • ►  agosto (31)
    • ►  julho (31)
    • ►  junho (30)
    • ►  maio (31)
    • ►  abril (30)
    • ►  março (31)
    • ►  fevereiro (28)
    • ►  janeiro (31)
  • ►  2014 (250)
    • ►  dezembro (31)
    • ►  novembro (30)
    • ►  outubro (28)
    • ►  setembro (23)
    • ►  agosto (13)
    • ►  julho (27)
    • ►  junho (24)
    • ►  maio (18)
    • ►  abril (16)
    • ►  março (14)
    • ►  fevereiro (11)
    • ►  janeiro (15)
  • ►  2013 (52)
    • ►  dezembro (13)
    • ►  novembro (10)
    • ►  outubro (9)
    • ►  setembro (11)
    • ►  agosto (9)
Com tecnologia do Blogger.

Copyright © Entre Margens. Designed by OddThemes