educação da tristeza, valter hugo mãe

Fotografia da minha autoria


A perda vem revestida de um longo nevoeiro, que não tem de ser continuo, que pode ir só polvilhando os nossos dias em apontamentos que despertam memórias específicas. E algo que tenho sentido é que o tempo, afinal, não cura tudo: por um lado, ameniza a dor, contudo, por outro, torna ainda mais nítida a carência. A diferença é que talvez saibamos reunir ferramentas que nos tornem funcionais perante o processo de luto. O novo livro de Valter Hugo Mãe deixou-me a deambular por estas sensações ambíguas.


 património precioso

Educação da Tristeza concentra-se naqueles que perdemos e que «somam à ausência mas são nosso património mais delicado, um reduto de fortuna e saudade que detemos mais delicadamente do que ouro». Compilando textos unidos por este laço emotivo, o autor constrói um retrato intimista, que vem inverter a imagem que temos da dor: não com o intuito de a reprimirmos, mas com a intenção de nos mostrar outra perspetiva, visto que «uma tristeza educada não desaparece», pelo contrário, «torna-se respeitosa com a necessidade de sobreviver, de continuar a lembrar, de continuar a amar».

O tom diarístico aproxima-nos, até porque compreendemos que aquelas palavras vêm de um lugar muito pessoal, vêm de um lugar que conseguimos reconhecer por mais que as nossas histórias divirjam. Não obstante, sinto que Valter Hugo Mãe tem uma sensibilidade distinta a abordar estes assuntos, atendendo a que não tem pudor em realçar a injustiça, o sofrimento, a revolta e o egoísmo perante a morte. Como é que aquela pessoa teve a ousadia de nos abandonar? Quantos de nós não cobramos o seu desaparecimento, como se estivesse nas suas mãos impedi-lo? Este é um dos limbos que a dor potencia e que o autor explora de um modo exímio, numa voz quase coletiva.

Mergulhar nestas crónicas foi uma viagem intensa, sensível, cómica e sempre poética. E creio que chegou na altura perfeita, porque veio apaziguar uma ferida que continua exposta no meu peito: o ano passado, tive de me despedir do meu tio Mário, uma das pessoas mais importantes da minha vida. Continuo a lembrar-me dele com frequência, mas há datas que nos pesam mais e a altura do S. João é uma delas, porque tínhamos tradições muito nossas e que agora me faltam. Ler este livro não inverteu a narrativa, ainda assim, permitiu-me olhar para o cenário de uma forma que nunca tinha feito. A ausência persiste - persistirá sempre -, no entanto, «quem nos falta não pode ser ferido de tristeza. A saudade tem de vir à festa e ser presença que celebra» e eu celebrei-o.

«Vêm as festas, a família recolhe-se como se regressada à essência e, por menos que sobre, é fundamental a bravura de alegrar»

Foi duro cruzar-me com certas passagens, mas Valter Hugo Mãe teve a capacidade de transformar a dor em arte, iluminando as zonas escuras que nos habitam, fazendo-nos olhar para lá das sombras que o vazio nos deixa como herança. Em simultâneo, achei interessante que trouxesse para a discussão o facto de sabermos que a pessoa faleceu, mas sermos confrontados com pequenas epifanias que parecem trazê-la de volta. De repente, caímos na realidade e há um novo processo de luto. Portanto, esta obra vai-nos confrontando com as nossas oscilações emocionais e com as diferentes fases de superação que qualquer despedida irreversível acarreta, porque nunca nada é linear.

Educação da Tristeza é um objeto visualmente lindíssimo, cheio de cor, de vida e de memórias que nos amparam e que trazem esperança. Com ilustrações de Valter Hugo Mãe, parte da ausência para nos fazer refletir sobre o quanto a nossa vida é cheia por termos tido aquelas pessoas por perto. Também é por isso que a sua perda nos magoa mais, mas continuo a acreditar que as saudades partem de um lugar benigno, de um amor que é incondicional. O quotidiano fica fragmentado, mas nunca esqueceremos.


 notas literárias
  • Gatilhos: Luto, linguagem explícita
  • Lido entre: 23 e 24 de junho
  • Formato de leitura: Físico
  • Género: Crónica
  • Textos favoritos: Fazer a Alegria, Sem Festas, Notas Incompletas Sobre Assuntos do Tempo e Despedir
  • Pontos fortes: As sensações plurais da escrita, o facto de ser despojado e não ter qualquer pudor em falar abertamente sobre sentimentos
  • Banda sonora: A Felicidade, Tom Jobim | Dias de Abandono, Mão Morta | No Compasso da Vida, Elza Soares | Tristeza dos Dois, Salvador Sobral | Tristeza, Josh | Silêncio, Slow J

Disponibilidade: Wook (Livro | eBook) | Bertrand (Livro | eBook)
Nota: Esta publicação contém links de afiliada da Wook e da Bertrand

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