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Fotografia da minha autoria |
Um dos aspetos mais entusiasmantes de qualquer reencontro, para mim, é a sensação de estar a regressar a casa, mas saber que há qualquer coisa de diferente nas divisões, quase como se tivesse a possibilidade de as redescobrir, quase como se existisse uma perceção de mudança, convicta de que nunca será total, para que não se perca o traço familiar. É mais ou menos isto que me acontece com Miguel Esteves Cardoso, porque voltar à sua escrita é ter a certeza de que estou a chegar a um espaço onde pertenço.
intimista e melancólico
Cartas Para a Vila Berta assume um tom intimista e melancólico, afinal, durante quatro anos, quase todos os dias, o autor escreveu ao seu grande amigo Carlos Vilela, a viver em Lisboa, enquanto MEC estava em Inglaterra a completar os seus estudos. E se, por um lado, esta dinâmica tem um tom encantador, por outro, vamos sendo devastados, uma vez que o seu destinatário não lhe responde uma única vez, para seu infortúnio.
O teor das missivas, para mim, tornou-se secundário. Embora seja interessante e/ou curioso, atendendo a que o MEC já nos habituou ao seu olhar para as pequenas coisas da vida, o que mais me fascinou foi mesmo o compromisso e a sua ligação à escrita. Perante a ausência de uma resposta, podia ter desistido de dar corpo às suas palavras, podia ter-se desencantado e optado por guardar essa intenção para outras realidades, mas houve algo nesta correspondência unilateral que desencadeou a sua vontade de continuar, até porque percebeu que esse era o seu destino. Portanto, à mão ou através da Olivetti Lettera32, permitiu-nos descobrir quem foi o MEC «dos 20 aos 24 anos».
É tudo tão intenso, visceral e, igualmente, aleatório, que é fácil revermo-nos em certos pensamentos e associações. Com franqueza e sem filtros, é impressionante como as suas palavras conseguem ser vulneráveis, poéticas e dolorosas; é impressionante como há um misto de mágoa e de resignação. Em nenhum momento demonstra querer parar de escrever para o amigo, contudo, é percetível que a falta de retorno faz mossa. E é essa dualidade que transforma o livro, porque, por um lado, aparenta estar em paz com o facto de ser só ele a escrever, a partilhar acontecimentos, a construir narrativas, a oferecer excertos de outros livros, mas, por outro, isso pesa-lhe, talvez por não ser capaz de identificar o motivo. Confesso que isso também foi algo que me intrigou.
«Eu voltei para um quarto quente e quis escrever-te uma carta. Eu quis que a frase nunca acabasse, que as palavras rolassem para o papel sem esbarrarem, e que a voz nesta tinta parecesse doente e dolorosa. Mas as palavras escorregavam para os lados opostos quando eu inclinava o papel. E desisti da ideia duma frase que continuasse para sempre e parei nas vírgulas para marcar os pontos no futuro deste pedaço de azul»
Miguel Esteves Cardoso abriu-nos a porta de casa, convidou-nos a sentar ao seu lado e descreveu-nos angústias, pareceres políticos duvidosos, gostos, irritações, obsessões, excentricidades, paixões e detalhes deliciosos. Mostrou-nos contos, ideias soltas e o melhor da sua poesia. Pessoalmente, reforçou o porquê de permanecer fascinada com a sua escrita, sobretudo dos primeiros trabalhos, porque há ali uma crueza que nos vai desarmando: não com o intuito de magoar, mas, antes, com o intuito de não nos deixar adormecer, nem cair numa apatia individual e social. Por mais que se concentre em problemas pessoais, consegue estabelecer uma ponte com as nossas vivências. Além disso, mesmo sem sermos o seu destinatário, não nos exclui e é generoso na partilha.
Cartas Para a Vila Berta comoveu-me e faz-me rir, porque só o MEC poderia escrever sobre foleirices, crueldade, miséria, medos e o amor por Portugal, entre vários outros temas, sem que algum deles pareça deslocado. Nestas páginas, onde há um exercício de escrita livre, de quem sabe que está a comunicar com alguém que lhe é próximo, com quem não precisa de fazer cerimónias, o autor vai-se descobrindo, vai firmando a sua maturidade, ainda que oscile entre a cobrança e a aceitação. As memórias pesam, mas foi saindo dos recantos sombrios, foi-se perdendo e encontrando e isso deu-lhe mundo. A mim, que o li, deu-me mais uma série de passagens para emoldurar no peito.
notas literárias
- Gatilhos: Linguagem explícita
- Lido entre: 3 e 6 de agosto
- Formato de leitura: Físico
- Género: Não ficção
- Pontos fortes: A ausência de filtro e a vulnerabilidade que não oculta; tem um toque mordaz e poético
- Banda sonora: You Want It Darker, Leonard Cohen | Both Sides Now, Joni Mitchell | Take Five, Dave Brubeck | Porto Sentido, Rui Veloso | I Wants To Stay Here, Ella Fitzgerald
1 Comments
Fiquei muito curiosa com esta sugestão *.* MEC tem sempre um lugar reservado nas minhas estantes, fisicas ou virtuais :)
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