lobos, tânia ganho

Fotografia da minha autoria


A nossa pegada digital nunca desaparece em definitivo, o que transmite uma sensação sombria, quase como se nos fizesse acreditar que não existe qualquer possibilidade de nos dissociarmos de certos pensamentos/momentos nos quais já não nos revemos. E se, por um lado, isso não tem uma implicação nefasta para muitos de nós, a verdade é que, por outro, há sempre quem sofra as consequências da devassa por ter confiado na pessoa errada. E é isso que vemos espelhado no novo livro de ficção da Tânia Ganho.


 um mundo obscuro

Lobos mergulha nas profundezas de quatro vidas que se cruzam: Freda é antropóloga forense e regressa a casa, depois de «mais de vinte anos nalguns dos piores lugares da Terra», para um trabalho que a obriga a contactar com o lado mais pavoroso da dark net. Stefan foi repórter de guerra e, numa tentativa de equilibrar «a crueldade humana que testemunhou», vive numa cabana na floresta, levando uma vida de eremita. Leonor é uma adolescente de 14 anos que vê a sua vida virada do avesso ao ser vítima de um crime sexual. Helena, irmã de Freda e mãe de Leonor, sente-se «incapaz de lidar com o trauma» e acaba a refugiar-se «numa obsessão que ameaça destruí-la a ela e à filha».

A escrita belíssima da autora é notória desde o primeiro instante, ainda assim, foi o tom da narrativa que me impactou, porque habita na escuridão, porque nos pesa no peito, porque os acontecimentos surgem de um modo subtil e nenhum parece vir de um lugar bom, de conforto. Aliás, existe muito pouco nesta história que nos consiga aconchegar, atendendo a que denuncia «males sociais, [como] a pedofilia, o tráfico de mulheres, a guerra e o genocídio étnico, religioso ou político». Sem entrar em grandes pormenores, em descrições longas que nos mostrem como é que tudo aconteceu, nós entendemos os contornos de cada fatalidade e como é que moldam as personagens.

É curioso constatar que este livro é mais sobre os silêncios e a forma como as pessoas lidam com os seus traumas, com os seus demónios, e não tanto sobre a situação em si, porque aquele momento termina, mas a vergonha, o medo, o desgaste, o desamparo, a sensação de perdermos a nossa identidade e, inclusive, o gosto por viver persistem e fazem com que as feridas continuem expostas, a magoar. E este livro dói, embora não queiramos parar de o descobrir, porque talvez a esperança encontre o seu espaço.

«Talvez, um dia, acorde sem sentir vergonha, mas será sempre uma rês marcada com um ferro em brasa»

Tânia Ganho percorreu trilhos sombrios, expondo batalhas internas que não são apenas fruto de ocasiões presentes. E uma das riquezas desta obra, para mim, é essa transversalidade temporal, o facto de nos mostrar que as coisas demoram a sarar e que, por vezes, não saram por completo, que existem gatilhos que podem espoletar memórias que julgávamos esquecidas. E achei interessante como foi introduzindo novas camadas ao enredo, escrevendo ramificações que não esperávamos, mas que fazem todo o sentido naquele ambiente e na forma como a empatia se evidencia.

Outro aspeto que não passa despercebido é o elo que acaba por entrelaçar todas estas vidas: Amélia, «uma mulher no limite da memória e da sobrevivência», que pode ser a resposta para as questões que vamos colocando, no entanto, ficamos no limbo, porque é maior a probabilidade de não atarmos as pontas soltas. Pessoalmente, sinto que foi uma abordagem sagaz, uma vez que acompanha a essência dos assuntos abordados: por mais que as feridas sarem, deixam portas entreabertas para nos provarem que a qualquer momento a história se pode repetir, porque a natureza humana não é só luz.

Lobos tem um traço obscuro e um tom de mistério, com personagens humanas, e deixa-nos a questionar sobre quem são os verdadeiros predadores. A associação aos lobos é mais uma demonstração da mestria da autora, uma vez que nos permite refletir sobre como, sendo parte de uma sociedade, funcionamos sempre em grupo e «vivemos numa alcateia», por isso, cada uma das nossas decisões não nos afeta só a nós e à nossa vida. Não sei se algum dia os protagonistas serão capazes de sair do labirinto, mas a forma como se amparam é extraordinária. De olhar atento, o perigo está sempre à espreita.


 notas literárias
  • Gatilhos: Linguagem gráfica e explícita
  • Lido entre: 21 e 24 de julho
  • Formato de leitura: Digital
  • Género: Romance
  • Personagens favoritas: Freda e Stefan
  • Pontos fortes: Ser um livro cheio de camadas, com personagens bem construídas e um desenvolvimento que desarma. Além disso, Tânia Ganho equilibrou muito bem a quantidade de temas que explorou
  • Banda sonora: 21, Lhast | Lobos, Jão | On The Nature Of Daylight, Max Richeter | Familiar, Agnes Obel | The Might Rio Grande, This Will Destroy You

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