«O último abraço que me dás»


co-ra-gem 
(francês courage)
substantivo feminino
1. Firmeza de ânimo ante o perigo, os reveses, os sofrimentos.
2. [Figurado] Constância, perseverança (com que se prossegue no que é difícil de conseguir).


Há pessoas corajosas. De uma coragem maior que a vida. E eu admiro pessoas assim: que enfrentam as maiores adversidades com o sorriso mais bonito e largo que conseguem. Mesmo quando sabem que, à partida, a probabilidade de vencerem é bem mais pequena do que serem vencidos. Mas não importa, porque, apesar disso, não desistem e lutam, e fazem-nos acreditar num dia melhor. Tenho para mim que a frase «amanhã é um dia melhor» só foi inventada porque houve alguém corajoso o suficiente para acreditar que amanhã é mesmo um dia melhor.

Ao longo da minha ainda curta caminhada tive a honra e o privilégio de conhecer pessoas de uma coragem intemporal. E sei que por elas aprendi a olhar para a vida com uma perspetiva diferente. É por isso que, para mim, o copo está sempre meio-cheio ao invés de estar meio-vazio. Até há alturas em que faço questão de esquecer o significado da palavra «pessimista» ou «pessimismo». Não fui educada assim: a desistir ao mais pequeno obstáculo, a olhar para as coisas e acreditar que não sou capaz, a prever sempre o pior de cada situação e de cada pessoa. Muito pelo contrário. Cresci a saber que mais vale cair pelo cansaço de lutar do que viver na incerteza de que se tivesse tentado talvez tivesse conseguido. 

Não, nunca fui uma super-mulher. Não sou sempre segura de mim. Nem sempre acredito em contos de fada e finais felizes. E há dias em que isso parece absurdo, transcendente, inconcebível. Precisamente por isso: porque há dias melhores do que outros. Mas a partir do momento que tenho ao meu lado alguém que vê a vida do avesso porque a saúde lhe falha e, mesmo assim, não espera que a vida lhe passe à frente, sendo capaz de ir a correr para a ultrapassar, eu não posso baixar os braços. Não posso por mim, porque seria demasiado inconsciente. Nem posso pela pessoa, seria demasiada falta de consideração. Se alguém me prova que é possível seguir em frente, não posso simplesmente abandonar o barco e virar as costas. 

As minhas avós foram as pessoa mais corajosas que já conheci, por serem grandes mulheres e por terem lutado sempre por elas e por nós, mesmo quando a vida lhes deu todos os motivos para desistirem. Nunca as vi esperar pela morte, muito pelo contrário, foram rijas o suficiente para a fazer esperar. E com exemplos assim ainda querem que eu me preocupe em olhar para a vida com os binóculos voltados para o negativismo? Não consigo, porque o meu percurso de vida não me deixa. Porque para além das minhas avós tenho uma família recheada de corajosos. Coragem não é o nosso nome do meio, mas até podia ser. Nem sempre o sou, confesso, mas talvez seja pela força da idade. O certo é que nunca serei capaz de desistir. E isso devo-o a elas. Às guerreiras da família. À família de guerreiros. Onde tive a sorte de nascer.

Quando soube que a minha avó paterna tinha cancro o mundo desabou. Foram dias intensos e desgastantes. Foram demasiadas viagens para o IPO do Porto, várias noites mal dormidas. Foi grande o medo de ouvir o telefone tocar. Foi muito pior para ela, mas sempre que a visitava o sorriso que aparecia na pele enrugada pelo tempo era luminoso e aconchegante. No dia trinta e um de setembro quando a minha mãe me ligou a dizer que a minha avó materna tinha ido de urgência para o hospital tornou-me a cair o mundo. Acho que o chão se abriu por baixo dos meus pés e o coração deixou de bater por segundos. A convivência com ambas era diferente, até porque sempre vivi com a minha avó materna, por isso a nossa ligação era muito mais forte. E ouvir que ia ser operada por causa de uma perfuração no estômago deixou-me em pânico. 

Seja qual for a doença, os medos são sempre os mesmos: que o outro sofra, que não tenha um fim de vida digno e descansado. E esse sempre foi o meu maior medo. Mas quando todos os dias chegava ao hospital e te perguntava se tinhas dores a tua resposta era sempre a mesma: «não». Não sei se em todas elas disseste a verdade ou se não querias que me preocupasse. Mas nunca te vi desistir. A vida é que te levou para longe. Não por ti. Mas talvez porque estivesse na hora. Confesso, há dias em que ainda me sinto revoltada por te terem levado de mim tão cedo. Por aos dezoito anos ficar sem um dos meus pilares. Por chegar ao fim do ano e a mais uma imposição das insígnias e não te ter lá. Isso tira-me a força, deixa-me triste e zangada. Não contigo, que lutaste até ao último minuto. Mas com o facto de já não estares aqui. Com o facto de já não estarem aqui!

Há pessoas corajosas e eu aprendi a sê-lo porque foi isso que sempre me ensinaram. E porque levo comigo tudo aquilo que partilhamos. E porque acredito que caminhamos sempre lado a lado. Não me lembro do nosso último abraço, mas isso é porque não chegamos a dar o último. Porque algures nesta vida ainda nos havemos de encontrar e aí sim partilharei todos os abraços que guardei desde o dia que partiram. 


Como há textos que nos roubam o coração e nos fazem eriçar a pele, deixo-vos o de António Lobo Antunes. Que é mesmo sobre pessoas de coragem. E que deve ser lido de coração aberto.


«O último abraço que me dás

Ali, na sala de quimioterapia, jamais escutei um gemido, jamais vi uma lágrima. Somente feições sérias, de uma seriedade que não topei em mais parte alguma, rostos com o mundo inteiro em cada prega, traços esculpidos a fogo na pele


O lugar onde, até hoje, senti mais orgulho em ser pessoa foi o Serviço de Oncologia do Hospital de Santa Maria, onde a elegância dos doentes os transforma em reis. Numa das últimas vezes que lá fui encontrei um homem que conheço há muitos anos. Estava tão magro que demorei a perceber quem era. Disse-me

- Abrace-me porque é o último abraço que me dá

durante o abraço

- Tenho muita pena de não acabar a tese de doutoramento

e, ao afastarmo-nos, sorriu. Nunca vi um sorriso com tanta dor entre parêntesis, nunca imaginei que fosse tão bonito.

Com o meu corpo contra o dele veio-me à cabeça, instantâneo, o fragmento de um poema do meu amigo Alexandre O'Neill, que diz que apenas entre os homens, e por eles, vale a pena viver. E descobri-me cheio de respeito e amor. Um rapaz, de cerca de vinte anos, que fazia quimioterapia ao pé de mim, numa determinação tranquila:

- Estou aqui para lutar

e, por estranho que pareça, havia alegria em cada gesto seu. Achei nele o medo também, mais do que o medo, o terror e, ao mesmo tempo que o terror, a coragem e a esperança.

A extraordinária delicadeza e atenção dos médicos, dos enfermeiros, comoveu-me. Tropecei no desespero, no malestar físico, na presença da morte, na surpresa da dor, na horrível solidão da proximidade do fim, que se me afigura de uma injustiça intolerável. Não fomos feitos para isto, fomos feitos para a vida. O cabelo cresce-me de novo, acho-me, fisicamente, como antes, estou a acabar o livro e o meu pensamento desvia-se constantemente para a voz de um homem no meu ouvido

- Acabar a tese de doutoramento, acabar a tese de doutoramento, acabar a tese de doutoramento

porque não aceito a aceitação, porque não aceito a crueldade, porque não aceito que destruam companheiros. A rapariga com a peruca no braço da cadeira. O senhor que não olhava para ninguém, olhava para o vazio. Ali, na sala de quimioterapia, jamais escutei um gemido, jamais vi uma lágrima. Somente feições sérias, de uma seriedade que não topei em mais parte alguma, rostos com o mundo inteiro em cada prega, traços esculpidos a fogo na pele. Vi morrer gente quando era médico, vi morrer gente na guerra, e continuo sem compreender. Isso eu sei que não compreenderei. Que me espanta. Que me faz zangar. Abrace-me porque é o último abraço que me dá: é uma frase que se entenda, esta? Morreu há muito pouco tempo. Foda-se. Perdoem esta palavra mas é a única que me sai. Foda-se. Quando eu era pequeno ninguém morria. Porque carga de água se morre agora, pelo simples facto de eu ter crescido? Morra um homem fique fama, declaravam os contrabandistas da raia. Se tivermos sorte alguém se lembrará de nós com saudade. De mim ficarão os livros. E depois? Tolstoi, no seu diário: sou o melhor; e depois? E depois nada porque a fama é nada.

O que é muito mais do que nada são estas criaturas feridas, a recordação profundamente lancinante de uma peruca de mulher num braço de cadeira. Se eu estivesse ali sozinho, sem ninguém a ver-me, acariciava uma daquelas madeixas horas sem fim. No termo das sessões de quimioterapia as pessoas vão-se embora. Ao desaparecerem na porta penso: o que farão agora? E apetece-me ir com eles, impedir que lhes façam mal:

- Abrace-me porque talvez não seja o último abraço que me dá.

Ao M. foi. E pode afigurar-se estranho mas ainda o trago na pele. Durante quanto tempo vou ficar com ele tatuado? O lugar onde, até hoje, senti mais orgulho em ser pessoa foi o Serviço de Oncologia do Hospital de Santa Maria onde a dignidade dos escravos da doença os transforma em gigantes, onde só existem, nas palavras do Luís, Heróis.

Onde só existem Heróis. Não estou doente agora. Não sei se voltarei a estar. Se voltar a estar, embora não chegue aos calcanhares de herói algum, espero comportar-me como um homem. Oxalá o consiga. Como escreveu Torga o destino destina mas o resto é comigo. E é. Muito boa tarde a todos e as melhoras: é assim que se despedem no Serviço de Oncologia. Muito boa tarde a todos e até já, mesmo que seja o último abraço que damos» (aqui)

Comentários

  1. Fiquei sem palavras ao ler este teu post. Se já tinha ficado sem saber o que dizer quando acabei de ler o que tu escreveste, ainda fiquei mais quando li o excerto de Lobo Antunes, confesso.
    Costumo pensar que quando é preciso ser-se, toda a gente é forte e corajoso, mas claro, uns mais que outros. Infelizmente não me julgo muito corajosa mas gostava de ser.

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  2. óh meu Deus! fiquei Q.O com o que escreves-te!
    a verdade é que dizemos muitas vezes aos nossas amigos e conhecidos "tu és forte", só para não nos irmos a baixo, mas realmente só é forte quem passa por coisas como essas. nem sei que dizer, porque sei bem o que é ter que lidar com as coisas à nossa volta, doenças, perda de pessoas e fraquezas..
    Beijinho grandeeee * <3

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  3. Fiquei encantada com o que escreves-te, completamente! :o

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  4. é verdade.. iremos sempre ter que lidar com as perdas e a verdade é que mesmo ao crescer aprendemos a lidar com isso de formas diferentes, mas sou da opinião que também isso tem a ver com a maneira como nos ensinam a lidar com isso. e aos outros problemas que há à nossa volta!
    lá isso tens razão.. porque ao vermos quem gostamos tristes ainda nos deixa mais em baixo. há que erguer a cabeça e continuar, pelas pessoas que estão a "cuidar" de nós lá em cima :)
    é verdade querida..

    beijinhoo querida* :)

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  5. Então pelos vistos temos a mesma opinião querida :)
    fico mesmo contente com as coisas que escreves, são mesmo reais, e gosto muiiiito disso.. porque muitas das coisas identifico-me, como já te disse algumas vezes!

    beijinho grandeee *

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  6. óhh, não tens nada, nada, nada que agradecer :)
    sei que é gratificante, porque também gosto quando me acontece o mesmo! Fizes-te tu muito bem em criar o blog para isso mesmo.. eu tenho gostado!

    beijinhoo ** <3

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  7. A mim só me ocorre isto: uau! Este post está fantástico! Eu cá sou pessimista por natureza mesmo - eu e a minha mãe estamos sempre a discutir por causa disso, pois ela diz que devia pensar mais positivo e não ir tanto a baixo. No entanto, em certos momentos sinto-me corajosa. Acho que se não o fosse, ter-me-ia afundado numa depressão devido a esta maldita sociedade. Acho que, todos conseguimos ser corajosos quando menos esperamos.

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  8. Acho que não é a "paixão" que me faz continuar mas sim a amizade que temos. Obrigada pelas palavras. Beijinho *

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  9. Lá está, não quero acabar com tudo. Claro que tenho! És um doce!

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  10. Sim, e no fundo sabemos. Óh :)

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  11. Sabemos que não há nem haverá mais nada. Sim, vão :)

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  12. Sim, eu sei. Obrigada pelas palavras :)

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  13. Fico contente. Qualquer coisa que precises, conta comigo.

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  14. Magnifico post querida, que bien escribes

    Besos
    SHOPPING STYLE

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  15. E se não tivermos a maior coragem de todas que é viver, não temos nada. Gostei!

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  16. Eu juro que tento ver sempre pelo lado positivo, mas não consigo. É inevitável! :) Concordo plenamente! E não tens que agradecer o post está mesmo mesmo fantástico!! :))))))))))))

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  17. Escrevo-te de lágrimas nos olhos. Compreendo-te tão bem estas palavras. Eu sempre fui alguém que lutou, mas depois de perder a minha avó ganhei uma força ainda maior. Talvez parte da gigante força que ela teve se tenha transferido para mim, não sei... Talvez apenas a memória dela. A verdade é que nunca esqueci as palavras dela: "Não é este bicho que me vai matar, eu é que o vou matar a ele". Ela lutou, eu sei que sim. Mas, infelizmente, não venceu. Chegou à minha altura de lutar pela vida que ela não queria abandonar...

    Luta também, que eu sei que tens essa força dentro de ti!

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  18. é verdade querida :))
    óhh, muito obrigadaa *.* a fotografia já tem algum tempo, mas foi sem dúvida num dia inspirador numa secção fotográfica com as amigas :3
    há mesmo que ter força e continuar a fazer as coisas de sempre, aconteça o que acontecer!!

    Beijinhoss ** <3
    ps. falei de ti à minha amiga Patrícia que anda na mesma universidade que tu :p

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  19. O teu texto está muito bonito, assim como é bonito o reconhecimento que tens às tuas avós.... essas mulheres de coragem que deram tanto :)

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  20. r: posso me afastar,mas volta tudo ao normal

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  21. por isso é q eu prefiro trabalhos individuais pelo menos sei q o esforço é meu e que a nota é minha.
    Sinto que estou preparada para ir viver com ele, mas estou sempre a sentir aquele aperto de deixar a casa que me viu crescer.

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  22. ❊..(
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    ❊#ª“˜¨ ᴺᴵᴳᴴᵀ﹗
    Feliz Navidad y Próspero Año Nuevo 2014!!!
    Besos desde España, Marcela♥

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