A praia da minha vida
«Quando demos as nêsperas às meninas, elas dispararam a correr. E eu lembrei-me de ser miúdo. Ser miúdo é comer fruta enquanto se brinca e se corre», Miguel Esteves Cardoso.
Lembrei-me de ser miúda. Não pelas nêsperas, até porque não tenho qualquer recordação de as comer em criança, mas pelo brincar e correr. E pela sensação de me sentir em casa em alguns lugares. Pelas pessoas que me acompanhavam, pelo aconchego que era pisar o seu chão, por tudo aquilo que lá vivi e que hoje recordo como se fosse uma fita de cinema.
É fantástico como o tempo avança - e nos parece escapar por entre os dedos -, mas há coisas que nunca nos esquecemos. E é ainda mais especial perceber que tudo aquilo que nos faz bem tem outro encanto, mesmo que a nossa visão se agarre às lembranças e não propriamente à realidade dos factos. Crescemos, os nossos gostos alteram-se, mas permanece tudo aquilo que se viveu, por mais que o ontem se apresente ligeiramente desfocado e com algumas falhas. Do meu passado guardo, por exemplo, as idas à praia, o quanto isso me divertia e completava. Fui perdendo o fascínio por passar lá um dia inteiro. E hoje, se puder, prefiro ficar-me pelo passeio à beira mar a estender a toalha na areia. Ainda assim, há uma praia que será sempre a minha. Aquela onde passei a minha infância e a minha adolescência. Em família. Sempre em família. Porque de outra forma não saberia viver.
Mar e Sol. Assim, tão simples quanto isto, como se fosse um desejo secreto para passar os dias. «Mar e Sol» faz parte daquilo que eu sou, por ter sido muitas vezes o palco das minhas brincadeiras. Um pedaço de chão onde marquei passos firmes enquanto fazia castelos, buracos e pistas. Nunca tive grande jeito para este tipo de construções, mas já os bolos de areia, ornamentados com conchas e búzios, eram uma especialidade. Era tão feliz! Ainda hoje o sou, só que naquela altura era tudo muito diferente. Mas é sempre assim, não é? Sentimos falta da inocência. De não ter responsabilidades, a não ser escolher o balde mais bonito e espetacular por tudo o que trouxesse por acréscimo. E depois corríamos livres, sem parar, até chapinharmos na primeira poça que nos aparecesse à frente.
Não tenho memórias muito nítidas, mas recordo-me de limpar a areia com o meu primo (numa iniciativa que fizeram para manter a praia limpa) e de vê-lo fazer buracos de grande profundidade, para depois saltarmos lá para dentro e nos taparem até ficarmos apenas com a cabeça de fora; da minha prima que, por ser mais velha e mais ajuizada, tomava conta de nós, sem nunca deixar de alinhar nas brincadeiras. Recordo-me da nossa barraca azul, onde cheguei a dormir durante a tarde, ou onde muitas vezes ouvi o avô e o padrinho a ressonar. Não me recordo das caras, mas lembro-me dos amigos que fiz, de frequentarmos as barracas uns dos outros como se estivéssemos a entrar na nossa; dos jogos de cartas, de nunca querermos sair da água, de corrermos, saltarmos, gritarmos, vivermos. E depois regressarmos a casa a dormir, exaustos, mas prontos para que o dia seguinte chegasse para reproduzirmos tudo novamente.
Tenho bem presente o caminho que se repetia a cada manhã e final de tarde. De atravessarmos a linha do comboio e sentir alguma inquietação, pelo receio de se fecharem as cancelas e o carro não ter tempo de atravessar. E de ouvir constantemente a frase «foge leão», de uma história que não decorei, mas que me lembro de ouvir a minha avó contar muitas vezes. Hoje já não atravessamos a linha e a estrada já não é em paralelo. Acrescentaram um passadiço e uma faixa para se andar de bicicleta. Parece um sítio completamente novo, mas sempre que lá chego continuo a ver os mesmos contornos de antigamente. Para mim, está tudo igual, porque a essência não se perdeu, apenas realçaram o que, a meu ver, já era naturalmente belo.
Deixei de ir para lá no fim da minha adolescência e ainda hoje não sei bem porquê. Mas foi no exato momento em que regressei que percebi que nenhuma outra teria a mesma magia que aquela tem. Voltei o ano passado, ao acaso, e de lá não quis sair. Pode parecer-vos estranho, mas senti-me serena e protegida. Eu sei que aquela será sempre a minha praia porque me fará recordar e sentir mais perto dos meus. Do avô, de quem não tenho muitas memórias por força de o ter perdido no dia em que fiz quatro anos, que mesmo a trabalhar ia ter connosco à hora do almoço para almoçarmos todos juntos, voltando à noite para nos ir buscar. Da avó, com os seus olhos azuis cor de mar, que sempre foi das pessoas mais especiais da minha vida. Um exemplo. Morro de saudades vossas, todos os dias, mas um dia voltaremos a estar todos juntos, naquela praia, para aproveitarmos tudo aquilo que nos faltou viver. Na altura não existiam caminhos de madeira e escadas para lá chegar. Modernices, avôs. Mas sempre que descer cada um daqueles degraus e pisar a areia quente vou sentir-vos a descer comigo, com as vossas mãos entrelaçadas nas minhas para que não escorregue. Hoje já me equilibro sozinha, mas continuo a precisar que caminhem ao meu lado.
Fascina-me a tranquilidade, o estar à vontade, o sentir paz à minha volta. Por mais pessoas que lá estejam nunca são suficientes para perturbar o ambiente. Gosto mesmo dessa calma. Mudou tanta coisa, mas acho que isso permaneceu com o tempo. E continua linda ao final do dia. Quando o sol se começa a ir embora e o seu reflexo pinta as ondas de laranja. E o cheiro, esse, continua o mesmo. Cheira-me a casa. A vocês. Aos nossos dias. Sou capaz de ficar ali o dia todo sentada a ouvir o mar - até a forma como bate nas rochas é diferente. Acho que passei a gostar um pouco mais de praia, por estranho que pareça. Apetecia-me recuar no tempo, só para ter memórias mais nítidas, mas aquilo que realmente quero é acrescentar novas. O meu afilhado também já nos segue as pisadas. Já é capaz de ir a correr para as poças e passar o dia todo mar-areia só para fazer castelos. E aqui recordo-me sempre da mãe a dizer que eu era uma «pata porque nunca queria sair da água». É nestas pequenas coisas que sei que tive uma infância mesmo feliz.
Dizem que devemos voltar aos lugares que nos fazem bem. Foi isso que fiz. E espero continuar a fazer de agora em diante. De frente para o mar, com a Afurada ao fundo do lado esquerdo e o Senhor da Pedra ao fundo do lado direito, recordo-me das vezes em que vos ouvi contar que foram vocês que descobriram aquela praia. Foram os primeiros a chegar. Por isso, afetivamente, aquela era, e continua a ser, a nossa praia. Muito daquilo que gravei no coração foi graças às histórias que não se perderam com o tempo, por essa razão é que sei que iam sempre carregados com as panelas cheias de arroz e comida que dava para alimentar um batalhão. Em compensação, lembro-me nitidamente de comer ao lanche aqueles boiões de fruta da blédina e achar que era a melhor coisa do mundo.
É incrível como tanta coisa se altera e tanta permanece igual. Os padrinhos já não fazem praia e os primos também já não vêm connosco. A vida mudou-nos a rotina, mas nunca a proximidade que sempre nos uniu. Só tenho pena que o primeiro «ó "madinha", vamos "godar"? Só um bocadinho, ok?» do meu afilhado não tenha sido ali, exatamente no sítio onde também eu já fui criança. Talvez um dia lhe conte tudo isto. Enquanto isso não acontece, continuo a ser invadida pelas nossas brincadeiras. Das vezes em que um de nós se sentava na toalha e o outro o arrastava pela praia. De querermos que nos rodassem no ar. De tentarmos vender as nossas doçarias de areia. De não darmos descanso a ninguém porque não parávamos quietos. Ó afilhado, não te preocupes, que a tua madrinha e o teu padrinho eram tanto ou mais traquinas do que aquilo que tu és. Tens mesmo a quem sair!
Tenho a certeza de que alguém pode chegar e dizer que aquela praia não é nada de especial. Talvez não seja. Talvez sejam os meus olhos e as minhas recordações que a pintem com um filtro diferente, mas não faz mal. É a praia dos meus sonhos. É onde me sinto bem. E um dia espero levar lá os meus filhos, reconhecer neles as coisas que nós fazíamos sem lhes impor isso e transmitir-lhes o legado que passou por nós. Mesmo que um dia deixem de querer lá ir, farão sempre parte da história que ainda hoje escrevo. E é enquanto olho aquele horizonte ligeiramente rochoso no seu início que me inspiro para escrever. Que bom que é estar de volta às origens e sentir que está tudo na mesma, por mais alterações que tenha sofrido com o avançar dos dias.
Ainda bem que o tempo não para, que vou crescendo e ficando mais velha. Hoje sei que vou adormecer com a mesma paz de quando era criança, porque sinto o coração aconchegado por todas estas lembranças boas. Há sítios que nos fazem sentir em casa. Naquela praia é assim que me sinto, pois sei que estamos todos juntos novamente, ainda que em planos diferentes da vida. Ali, enquanto o sol se esconde e o mar embate nas rochas, vejo duas estrelas a aparecer no céu, ouço o som das nossas gargalhadas e sinto o cheiro dos nossos abraços. Desenhei um coração na areia antes de vir embora, porque nada apagará todo o amor que nos une. E aquele será para sempre o nosso lugar!
![]() |
Praia Mar e Sol, Vila Nova de Gaia. As pestes da família: eu sou a mais pequena, os outros são os meus primos que, para mim, sempre foram como irmãos. |
26 Comments
Às vezes gostava de poder voltar atrás no tempo e ser criança, é o melhor momento das nossas vidas. Pelo menos é assim que penso, era tão livre tão inocente, e sinto falta disso.
ResponderEliminarMORNING DREAMS
Sofia Silva
Beijos*
Uau!!!! Escreves mesmo bem.
ResponderEliminarAdorei!!!
Tens que ponderar passar o blogue a livro. ;)
Beijinhos!!!
Gostei muito!
ResponderEliminarPor acaso eu ia para essa praia... :D
Tão bom recordar...
ResponderEliminarAi essas fotos deixaram-me com vontade de ir de férias...
ResponderEliminarBjxxx
acredita que é muito mais fácil assim ;)
ResponderEliminarpenso que todos já se tinham perguntado o porquê de responder nos dois lugares e agora aqui está a resposta.
ow, que fofinha tu :$$$
Que fotos maravilhosas :)
ResponderEliminarSónia
Taras e Manias
Há pessoas que têm o dom das palavras, e eu sei que tu o tens! Infelizmente são pouquíssimas as minhas memórias de infância com a praia como pano de fundo..Emocionei-me com este teu texto! Parabéns! * Beijinho
ResponderEliminarOlá
ResponderEliminarAdorei , o que eu dava para voltar à infância :) e espero que consigamos as duas realizar este sonho :)
Beijinhos
Catarina
Este texto está arrepiante... Memorias que ficarão sempre.
ResponderEliminarQue bela praia! A praia da minha vida pertence à Ericeira. Sinto-me filha do mar de lá, por 1001 motivos. O mais importante de todos: foi lá que dei os primeiros passos enquanto pessoa.
ResponderEliminarE é tão bom quando podemos voltar aos sítios que nos dizem tanto :)
Texto maravilhoso que belas imagens
ResponderEliminarBlog: http://arrasandonobatomvermelho.blogspot.com.br
Canal de youtube: http://www.youtube.com/NekitaReis
Também quero praia!!!
ResponderEliminarBjxxx
Que lindo o texto. Identifiquei-me com alguns pontos presentes no texto :)
ResponderEliminarLindas as fotos :)
Também tenho uma praia de eleição, e as recordações que tenho são doces como as tuas. Família reunida, todos de sorrisos largos. Embora, eu mesmo agora em adulta vou para lá sempre que possa. Afinal, é para mim a melhor delas todas, é aquela que eu conheço de lés-a-lés, é aquela que me enche a alma.
ResponderEliminarTu escreves maravilhosamente bem!!!
resp: obrigada querida, acredita :)
ResponderEliminare tu quando estas de férias ?
Não estou assim tão presente :c mas adoro vir aqui. De coração.
ResponderEliminarSão sim.
ResponderEliminarNão sei porquê, mas pensava mesmo que gostavas de praia...
ResponderEliminarBjxxx
R. No geral gosto imenso da escrita da autora :)
ResponderEliminarr: nem por isso :/
ResponderEliminarr: eu decidi que era mais fácil fazer as duas.
ResponderEliminaroh sim, és muito fofinha.
Não podia estar mais de acordo contigo, linda! Disseste tudo mesmo :)
ResponderEliminarIdentifico tanto com o texto adorei as tuas palavras, uma vez que me considero filha do mar tenho uma grande ligação com o mar é um dos meus fascínios :) Em pequena quando sabia que ia á praia nem dormia no dia nem no caminho adormecia só por saber que estava quase a chegar ao local, sentir aquela brisa pela manhã, o pisar a areia semi molhada, de o sol ainda não estar bem posto e eu já tinha tomado uns ricos banhos,o de ser péssima a construir castelos e afins mas só o prazer e o gozo que dava era só bom, também ia com os meus primos mas como disseste hoje é diferente cada um de nós têm os seus amigos e afins. Mas ainda hoje tenho o mesmo fascínio e quando tenho um tempinho seja qual for a estação vou lá.
ResponderEliminarp.s estendi aqui nos pensamentos
beijinhos
http://retromaggie.blogspot.pt/
Qual é o nome da praia? Eu acho que costumo ir aí!
ResponderEliminarAdoro praia *.*
Aquilo que faz a magia dos lugares é o sentimento que por lá nutrimos, as pessoas e as recordações que se criam! Daí cada um de nós ter lugares de coração tão distintos :) adorei <3
ResponderEliminar