LIMITES: UMA QUESTÃO DE PESO

Fotografia pessoal



«O suficiente para estabelecer limites»


Os limites, sobretudo, do humor estiveram sempre na mira do escrutínio público, porque é muito ténue a linha que separa o traço cómico da violência verbal e psicológica. E o que aconteceu na cerimónia dos Óscares veio recentrar a discussão, inflamando as sucessivas partilhas em rede. Mas será que o humor deve ter limites?


TER LIMITES OU NÃO TER LIMITES, EIS A QUESTÃO

Creio que as fronteiras que validam esta manifestação artística também existem, como em tudo na vida, porque nos estimulam a compreender até onde podemos ir e até onde permitimos que os demais cheguem connosco. No entanto, sempre defendi que o humor não deve ter limites. E por uma razão muito simples, mas que, para mim, faz toda a diferença: limitar os temas em que uma piada pode ser escrita é perpetuar diferenças; é, por muito que não pareça, conceder espaço para que se persista numa base de discriminação.

Assumir que alguém se sente ofendido porque, direta ou diretamente, a sua condição, a sua doença ou alguma das suas fragilidades mais proeminentes é o foco de um gracejo é errado. Há essa possibilidade, sim, e é legítima, porém, parece-me perigoso evocar essa generalização. Em 2013, quando partilhei um artigo acerca do Hino Cancro Com Humor, não foi só pela pertinência, mas também por um pensamento verbalizado por Marine Antunes: «queremos ser inspiradores e mostrar que precisamos mais de uma bela gargalhada do que de um pote de pena». Portanto, esta questão dos limites tem mais áreas cinzentas do que certezas absolutas.

É um direito não utilizar a dor do outro [na maior parte dos casos, enquanto representação abstrata] para uma escrita de cariz humorístico. Mas nunca será justo retirar-lhe a oportunidade de se rir com ela. Porque ser empático e calçar os sapatos de quem nos rodeia é saber que a forma como encaramos as adversidades pode ser antagónica. E, ainda que a vida nos puxe o tapete, isso não significa que nos prive de sentido de humor.

Deste modo, retorno à - minha - questão inicial: será que o humor deve mesmo ter limites? Depende da linha que separa a liberdade de cada ser humano. E, se calhar, precisamos de mais formatos que o comprovem.


TABU: UM PROGRAMA PARA ALARGAR HORIZONTES

Bruno Nogueira, Frederico Pombares e Guilherme Fonseca são os responsáveis pela versão portuguesa do programa Tabu, criado na Bélgica [e que também já foi transmitido na Austrália], com o propósito de perceber se é possível rirmos de temas considerados mais sensíveis. E, efetivamente, é possível que o façamos.

O exercício, tal como Bruno Nogueira mencionou, acaba por ser libertador para todos os envolvidos, porque mostra que esses assuntos podem ser explorados sem pudores ou receios e porque potencia um debate na sociedade. Para tal, durante uma semana, conviverá com um grupo de pessoas que «têm ou vivem numa condição vulnerável ou supostamente interdita ao riso, como as deficiências físicas, o racismo, a obesidade ou as doenças mentais». E se estes grupos, que sentem na pele os efeitos dessas condicionantes, têm a capacidade de brincar com as mesmas, quem sou eu para afirmar que é ali que deve ser imposto o limite?

Recentemente, alguém próximo disse-me que não achou graça ao programa, porque incomodou-o ver o humorista a gozar com pessoas gordas. Entendi o seu ponto de vista, ainda que não concorde com o termo gozar, mas contrapus que, enquanto pessoa com excesso de peso, tive outra perceção daquela realidade. Aliás, achei o episódio precioso, porque a relação com a nossa imagem e com o espelho nem sempre é fácil e saudável, mas a capacidade de sabermos rir das nossas fragilidades não é uma questão de peso - pode oscilar bastante, consoante o nosso estado de espírito, mas não está dependente do tamanho da roupa que vestimos.

Para ser honesta, nunca sofri na pele a perseguição constante ou a violência de ser posta de parte por causa do meu peso [ou, pelo menos, nunca o assumi como tal]. Mas já senti o peso de um olhar, já me senti uma merda por ver o mundo a afunilar para um tipo de corpo que não é o meu. E há muita coisa que não me serve. Contudo, a aceitação também se trabalha. E nem é tanto a aceitação externa, é mais a pessoal; é o reconhecer que o número da etiqueta não é mais do que isso - ainda que me represente, nunca me definirá.

Esta será sempre uma batalha diária e em nenhum momento do programa me senti melindrada com o que foi pronunciado. Talvez por estar num lugar bom; talvez por sentir que esse processo está a surtir efeito. Mas esta é, somente, a minha verdade e não posso querê-la universal. Eu encontrei neste humor uma catarse, uma maneira de expiar fantasmas. Quem está ao meu lado pode ter outra perspetiva. E nenhum estará errado.


QUEM BALIZA OS LIMITES?

Todos e, ao mesmo tempo, ninguém. É difícil, para não dizer impossível, atribuir um teto máximo. Porque nunca será o humorista a estipular o que é ofensivo para terceiros. Pelo mesmo princípio, o público também não o poderá fazer. Todos temos contextos, bagagens e, até, traumas distintos, portanto, as coisas tocar-nos-ão com um impacto diferente. O humorista tem liberdade para escrever as piadas que entender e apresentá-las num solo. Eu tenho a liberdade de considerar o que pode ou não ser ofensivo. Para mim, nunca para os outros.

Não são os nossos limites que validam os dos nossos pares, porque não conhecemos a profundidade das suas cicatrizes. Por isso é tão importante respeitarmos o espaço de cada um. E, se calhar, abraçando as suas fronteiras, mas sem limitarmos as rotas por onde navega, o humor pode ser uma porta aberta para respeitarmos as diferenças sem condescendências. Porque, no meio de uma gargalhada, o humor nunca será uma arma de violência, mas, antes pelo contrário, pode salvar-nos, impedindo-nos de afundar na nossa dor.

16 Comments

  1. Eu acho que se deve ter atenção àquilo que se usa para fazer humor. Humor usando questões de saúde, não acho que seja correcto, para ser aceite, tem que ser muito bem usado. Quando à questão dos Óscares, por um lado, acho que a bofetada foi bem dada, porque o humorista podia usar imensas coisas para fazer humor, menos a doença da mulher de Will Smith. Por outro lado, a atitude do Will Smith foi estranha, porque no início ele achou piada e só reagiu depois de se aperceber que envolvia a mulher. Prevalece a máxima de que nada se resolve com violência e tendo isso em conta, a atitude dele não foi correcta. Era preferível no final da cerimónia falar discretamente com o humorista, explicar-lhe que não tinha gostado. Seria mais elegante.

    Beijinho grande, minha querida.

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    1. Concordo em absoluto contigo, querida Ana

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    2. É só a minha opinião, que vale o que vale, mas sinto que ao dizermos que não se deve fazer humor com questões de saúde é aumentarmos o fosso, é dizermos, indiretamente, que aquela pessoa tem de permanecer presa a uma condição mais angustiante. Infelizmente, por força das circunstâncias, já é esse o cenário, mas pode encontrar no humor uma maneira de mostrar que a doença não tem o peso todo. Claro que nem todos pensarão desta forma e é perfeitamente legitimo, mas não podemos assumir que por ter uma situação de saúde mais delicada não tem sentido de humor para rir dela ou que não queira que se façam gracejos com ela.
      Relativamente ao que aconteceu nos Óscares, ele perdeu a razão toda quando escolheu a violência. Eu sei que há situações em que agimos por impulso, mas não é um comportamento que possa ser validado. Ele tinha sido um senhor, se esperasse para ver se ganhava o óscar e, depois, dava uma chapada de luva branca com o seu discurso. Acho que não fez qualquer sentido rir-se da piada e, depois, ir a palco para bater noutro. Até porque isso só fez com que, uma vez mais, se concentrassem as atenções no lado errado da questão.

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  2. Felizmente a obesidade nao é uma doença terminal ou incuravel. Pode estar relacionada com alguma doença incuravel como as minhas :( O proprio Bruno Nogueira confessou que nao conseguiu fazer piadas com doenças terminais e incuraveis e isto é uma prova de que afinal existem limites para o humor, basta haver bom senso e consciencia. Eu tive de retirar um orgao inteiro por causa das minhas doencas incuraveis e hoje tenho de viver com as consequencias diss, para tentar ter alguma qualidade de vida para o resto dela.

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    1. Terminal, mais ou menos incurável não deixa de ser uma questão de saúde delicada e que pode condicionar a vida das outras pessoas por completo. Portanto, por essa ordem de ideias, não deveriam ser feitas piadas com pessoas obesas. Enquanto pessoa com excesso de peso, agradeço que existam, porque é mais uma forma de expiar inseguranças e de abraçar um processo de aceitação profundo, ao ponto daquele problema ter menos peso. No entanto, outra pessoa na mesma condição pode sentir-se ofendida e nem eu, nem ela estamos mais ou menos certas. É um direito de cada um não achar graça, mas isso, lá está, depende de pessoa para pessoa.
      O primeiro episódio de Tabu, salvo erro, foi sobre pessoas com doenças terminais

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  3. Will Smith até achou piada, só reagiu ao ver a mulher revirar os olhos 👀 absolutamente furiosa. Dizem que o Rock, embora seja um tipo mesquinho, não sabia da doença da Jade, que riu às gargalhadas, quando o marido deu o bofetão.

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    1. Verdade, ele ri-se e bate palmas e só depois é que se dirige ao palco furioso. E isso, para mim, é que não faz sentido. Ele tem todo o direito de se rir da piada, da mesma maneira que é legítimo ela sentir-se ofendida e demonstrá-lo. Perante essa situação, o Will Smith podia muito bem mudar a sua postura e querer defender a Jada, mas nunca através da violência.
      Também li isso, não sei se é verdade ou não.
      «que riu às gargalhadas, quando o marido deu o bofetão», se calhar, em vez de falarmos dos limites do humor, deveríamos falar sobre outros limites

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  4. Muitas vezes faz-se humor com assuntos muito sérios e que atacam severamente os visados. Tem que haver bom senso..

    Isabel Sá
    Brilhos da Moda

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    1. Acho que os assuntos não deixam de ser sérios por serem usados para textos humorísticos. Às vezes, é só uma forma de deixar pessoas mais serenas, conscientes que podem rir sem culpas. Ou, então, de alertar para determinados assuntos.
      Mas compreendo que os nossos limites sejam diferentes e que não achemos graça a tudo

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  5. Eu não acho graça a tudo! E acho que tem de haver limites, mas infelizmente há quem não tenha esse filtro!
    xoxo

    marisasclosetblog.com

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    1. Todos temos os nossos limites, assim como os próprios humoristas

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  6. Acho que cada um tem mesmo o seu pensar e o que posso dizer que ninguém têm nada a ver se a outra pessoa tem peso a mais ou menos, ninguém sabe se podemos ter algum problema de saúde ou até outra coisa. Mas uma coisa digo cada um é como se sente bem.
    Beijinhos
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    Tem Post Novos Diariamente

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    1. Sim, isso é verdade, são questões pessoais

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    2. *Não podemos achar que conhecemos a história toda, porque não sabemos o historial da pessoa.
      Quando o humor é bem feito, ajuda retirar peso a certos temas

      [desculpa, carreguei para publicar antes do tempo e o comentário ficou a meio]

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  7. Acho que este é um tema que é impossível não dividir opiniões. A minha opinião vai muito ao encontro da tua, porque lá está, muitas vezes quem está de fora do problema é quem se ofende mais (e é legítimo atenção) com a piada sobre determinado assunto, do que a pessoa que realmente sofre as consequências da doença\excesso de peso, o que for, isto porque temos tendência a ver essa mesma pessoa como a "coitadinha", mas muitas vezes é essa a primeira a rir da piada, por isso, é que considero tão importante normalizar que não somos todos iguais, uns têm problemas e outros não. E aí aqui que eu considero que para o humor não tem necessariamente de haver limites, senão teria sempre filtros e deixava de ser humor, o poder falar de uma coisa, mas de outra já não. Isso criaria divisão e daria mais importância a uns temas do que a outros, quando todos são importantes, porque o que me magoa a mim pode não magoar a ti e vice-versa. E isso a meu ver, não seria justo! Porque uma pessoa com excesso de peso não tem de ser mais tolerante do que uma pessoa com cancro, ambos sentem as duas dores. Por que é que a maioria considera que usar o humor com a primeira não é tão grave como com a segunda? O excesso de peso também pode ser mortal, porque leva ao aparecimento de outros problemas de saúde, nenhum é mais fácil que outro. Por isso, não considero que se deva rir de um, mas de outro já não.

    «É um direito não utilizar a dor do outro [na maior parte dos casos, enquanto representação abstrata] para uma escrita de cariz humorístico. Mas nunca será justo retirar-lhe a oportunidade de se rir com ela.»

    É muito isto, respeitarmo-nos uns aos outros. Sabermos os nossos limites, os próprios! Isso é importante.

    Em relação à situação dos Óscares, compreendo que o Will não tenha gostado - ainda que o comportamento dele foi um bocadinho incoerente -, mas perdeu a razão toda que poderia ter quando teve a atitude violenta que teve.

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    1. Era aí que queria chegar. É legitimo que as pessoas não gostem de piadas sobre determinados assuntos, mas querermos, ao fim da força, que não faça humor com eles é passar a ideia de que quem sofre com eles é um coitadinho; sinto que acabamos por ser condescendentes e quase dar a entender que a pessoa tem de sofrer [para isso, já basta a doença em si, por exemplo].
      «considero tão importante normalizar que não somos todos iguais, uns têm problemas e outros não», por isso é que também defendo que deve existir abertura para tocarem em todos os temas/problemas, porque ajuda a normalizar e ajuda a retirar um certo peso à questão. Passamos a vida a defender que as pessoas devem encontrar aquilo que as faz sentir bem e isso pode acontecer através do riso, da caricatura do problema em si.
      «Porque uma pessoa com excesso de peso não tem de ser mais tolerante do que uma pessoa com cancro, ambos sentem as duas dores», obrigada por me compreenderes! Dentro de cada realidade, as pessoas vão sentir mágoas diferentes. Dentro de cada doença/característica/limitação vamos encontrar obstáculos e é claro que, aparentemente, há coisas que estão mais ao nosso alcance do que outras. Mas se a minha realidade é lutar contra o excesso de peso, é claro que a minha dor será maior do que se falarmos de outra condição qualquer, porque é minha e estou a vivê-la na primeira pessoa. E não é porque, repito, aparentemente, é algo que posso controlar melhor que tenho de estar predisposta a aceitar que se façam piadas. Mas o contrário também acontece. Da mesma maneira que uma pessoa com cancro pode ser a primeira a brincar com o assunto. Foi como tu referiste, não somos todos iguais. O importante é sabermos respeitar quem está do outro lado.

      Também compreendo que tenha ficado incomodado, ainda que, lá está, o comportamento tenha sido incoerente, mas só fez com que a atenção fosse direcionada para o lado errado da questão. Todos nós já reagimos a quente em algum momento, mas isso não pode ser justificação para validar a violência

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