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UMA CAIXA DE CUPCAKES

by - março 22, 2023

Fotografia da minha autoria


- título sugerido pela Silvana do Por Detrás das Palavras -


É sexta-feira à noite e o meu quarto parece ter sido apanhado no meio de um furacão. Isso ou os destroços vieram todos cá parar. E porquê? Porque tenho um encontro! Como é que isso se faz? Estou para descobrir.

Não sei o que vestir, que acessórios escolher, que maquilhagem usar... Só sei que estou uma pilha de nervos, ao ponto de já ter pegado no telemóvel algumas vezes para desmarcar, mas depois penso no quanto seria insensato cancelar tão em cima da hora - não que viesses a saber, mas a minha consciência não me permitiria. Por isso, aqui estou eu em frente ao espelho, a lidar com as minhas inseguranças, a silenciar os vários cenários trágicos que já idealizei - comida entre os dentes, cair na entrada do restaurante, não conseguir falar - e, no fundo, a tentar impressionar alguém, quando, secretamente, já tinha desistido de o querer fazer.

Vimo-nos, pela primeira vez, na Biblioteca Municipal Almeida Garrett. Fui devolver um livro e, coincidência, ao virar-me para ir embora, tropecei em ti. Entre pedidos de desculpa e cadernos espalhados, reparei nos olhos de um verde particular. Acho que nunca tinha visto um tom como o teu, o que me desconcertou. Desfeito o embaraço, tu ficaste e eu segui viagem, mas não sem, antes, num ponto seguro, olhar para trás para te ver.

Cruzamo-nos mais um par de vezes, após o incidente, e, mais por cordialidade do que por genuíno interesse, cumprimenta-nos com um sorriso subtil. Parece-me que há algo que une pessoas desastradas, talvez por, inconscientemente, estarem a tentar compensar o inconveniente de interferirem com a ordem natural do seu silêncio, ao serem obrigadas a interagir com terceiros. Mas, tirando isso, não havia outro sinal de contacto: até ao dia em que, sentada numa das mesas da área infantil, perguntaste se podias sentar-te ao meu lado.

Acedi e aquele passou a ser o nosso ponto de encontro. Sempre fui péssima com conversas de circunstâncias e tu soubeste respeitar essa incapacidade, assumindo as despesas dos temas sem seres intrusivo. E a verdade é que era fácil conversar contigo. Nunca combinamos horários, nem sabíamos quando o outro apareceria, e acho que este jogo servia a ambos, porque tínhamos sempre uma janela aberta para escapar.

É fascinante como as amizades em adulto se complexificam, como passamos a ter medo de falhar. De repente, é como se estivéssemos numa constante dança sincronizada. Nenhum de nós falhou, nem sequer houve vontade de escapar e tudo foi escalando para o lugar devido. Depois, numa quarta banal, de uma semana sem interesse algum, convidaste-me para um jantar e aqui estou eu, sem saber bem como ser funcional, porque conhecer-te fora deste ambiente neutro deixa-me sem rede. Alguém devia reconsiderar os trâmites de convivermos na fase adulta, pois não sinto que seja suposto ficarmos tão ansiosos. Ou será que faz parte?

Respiro fundo e opto pelo vestido azul de trespasse. Se gostasse de vinho, beberia um copo para acalmar os nervos. Como não gosto, saio apenas de casa para não chegar atrasada. Apanho o metro até ao Jardim do Morro e desço para o cais. Não foi difícil descobrir-te no meio da multidão, até porque tinhas um girassol na mão - não escondo que gostei que te tivesses lembrado. Cumprimentamo-nos atabalhoadamente e caminhamos até ao restaurante. A escolha? Um italiano que estávamos desejosos de experimentar. Sem surpresas de maior, fomos para a massa de camarão, alho e coentros e, para beber, mandamos vir uma sangria de espumante. Tal como o jarro foi ficando vazio, os nervos foram desaparecendo e o tempo passou sem que ambos reparássemos. Continuo a ter pouco jeito para fazer conversa, mas acho que há algo aqui, que estamos os dois conscientes disso e a gostar da sensação. Por isso, fomos adiando o momento da despedida.

Era inevitável fazê-lo e, pela primeira vez, questionaste-me pelo dia em que regressaria à biblioteca. O teu ar era misterioso, mas achei que não tinha lógica negar-te uma resposta: terça, partilhei. De forma espontânea, envolveste-me num abraço e afastamo-nos por direções opostas. Enquanto subia as escadas para o metro, pairava, em mim, a ausência de um beijo. Não censuro, mas penso que ambos o queríamos e tivemos demasiado medo para dar esse passo. Foi pena, porque acredito que teria sido o final de noite perfeito.

Procurei não pensar muito no assunto, embora a conversa de whatsapp com as minhas amigas estivesse frenética, como se estivessem a competir para ver quem fazia mais questões por segundo. Fui vaga, mais para me proteger do que outra coisa, e acho que compreenderam o propósito. Agora só me restava continuar. Mas como é que nos habituamos ao silêncio, quando a voz do outro lado é a melodia que precisamos de escutar?

Mantive-me em serviços mínimos e, na terça, lá estava eu a passar pelos Jardins do Palácio de Cristal. Entrei na biblioteca, desci para o piso habitual e, assim que disse bom dia, a rececionista chamou-me ao balcão.

— Bom dia, menina. Deixaram isto para si.
— Para mim? Tem a certeza?
— Absoluta!

Piscou-me o olho e eu abri a caixa de imediato. Era uma caixa de cupcakes de frutos vermelhos, com um bilhete amoroso a perguntar se nos poderíamos encontrar novamente. Sorri e, quando me desloquei para a mesa de sempre, encontrei-te com esse olhar verde-de-um-tom-particular, expectante, à espera da resposta.

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18 comments

  1. Adorei este conto, como adoro tudo o que escreves, e fiquei com vontade de ler mais. Não lhe queres dar uma continuação? ;) Parabéns, minha querida.
    Beijinho grande!

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    1. Muito obrigada, minha querida *-* para já, não está nos planos, mas nunca se sabe

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  2. Quanto mais escreves, mais gosto de te ler *.* Tenho um menino ca em casa que adora cupcakes e donuts :)

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    1. Oww, que querida, obrigada 😍
      Percebo-o, também gosto muito

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    1. Obrigada, Teresa!
      Acreditas que também fiquei? Estava a acabar de escrever o texto e bem que comia um ahahah

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  4. Adorei o post, muito bom mesmo... adore ler seus conteúdos. Parabéns!

    Meu blog: Website da Ana

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  5. Oh, como não gostar da tua escrita, quando é que saí um livro
    Que acabei mesmo por adora esse teu conto
    Beijinhos
    Novo post
    Tem Post Novos Diariamente

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    1. Muito obrigada, Sofia!
      Acho que ainda vai demorar, mas agradeço mesmo a confiança

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  6. opah continuas a escrever maravilhosamente, quem não gostaria de ter um bilhete com um doce
    http://retromaggie.blogspot.com/

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  7. Simplesmente fenomenal! Parabéns, Andreia.
    (Desculpa só agora vir aqui ler, mas os tempos têm estado complicados para este lado.)
    Beijinhos e obrigada por usares a minha sugestão.

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    1. Oh, nada que pedir desculpa. Muito obrigada pelo retorno, espero não ter defraudado as expectativas do título
      Espero que tudo melhore!

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