apesar do sangue, rita da nova

Fotografia da minha autoria

O meu caminho cruzou-se com o da Rita através do blogue. Lia-a sem interagir, mas creio que foi com o desafio Estante Cápsula, que lancei para celebrar o Dia Mundial do Livro e dos Direitos de Autor, que isso mudou, longe de imaginar que, um dia, nos sentaríamos na mesma mesa para jantar e que a sua generosidade me permitiria ler as suas histórias antes de saírem. Portanto, esta contextualização serve para referir que não pretendo nada que a minha crítica seja isenta de um lado emocional, subjetivo, mas que em nenhum momento me toldou a certeza de ter lido o seu melhor livro.


 os laços que se vão estreitando

Apesar do Sangue é um título que impacta e que fica a ecoar: pela ambiguidade e pela pluralidade das rotas que podemos traçar nas entrelinhas - e a história começa a ser contada a partir desta janela entreaberta. Por um lado, parece revelar-nos tudo, mas, por outro, percebemos que estamos longe de imaginar o que nos reserva, a montanha russa de emoções escondidas em cada camada. E, tal como uma criança que precisa de ser conquistada devagar, com amor e permanência, nós, leitores, somos impulsionados a caminhar nesse compasso, nesse jogo de cedência de espaço e na humildade de não sabermos o que virá a seguir, mas de querermos partir à descoberta de olhos fechados.

Nesta narrativa, as primeiras páginas foram determinantes para compreender que o tom estava diferente. Reconheci a Rita nas metáforas que só ela é capaz de bordar, no entanto, a escrita não parecia a mesma: senti-a mais madura, mais enigmática, mais bonita. Numa primeira impressão, pensei que esta sensação pudesse estar relacionada com a personagem que inicia a história, mas depois entendi que ia muito para além disso. É o crescimento da Rita enquanto escritora, é a sua segurança a construir novos enredos, novos mundos, mesmo que haja um tema transversal nas suas palavras. No fundo, é a Rita a mostrar o porquê de esta ser a sua maneira favorita de comunicar.

«nem sempre quem amamos primeiro é quem amamos para sempre»

A Lénia Rufino afirmou que a Rita nos deixa sempre na vertigem da angústia e isso explica todas as lágrimas que chorei ao avançar na leitura. Há uma espécie de neblina a pairar, que nem sempre nos deixa ver com clareza, mas que nos transmite a sensação de estarmos perto de sucumbir, de querermos amparar estas personagens e dar-lhes colo. Ainda não unimos todas as pontas soltas e já percebemos que fervilha em nós uma urgência de cuidar do outro, talvez por passarmos metade do livro cientes de que há quem não o saiba fazer e outra metade convictos de que existem pessoas que cuidam com tudo o que têm - e o que não têm procuram, apenas não largam a mão.

Por falar em personagens, a história divide-se em quatro: Glória, «a avó que aguenta todas as tempestades da família», Helena, «a mãe que abandona o filho», Eduardo, «o padrasto que já não o é, mas que nunca esqueceu a criança de quem cuidou um dia», e Pedro, «o elo que os une, o rapaz que todos rejeitaram, que ninguém soube amar sem prazo». Uma vez mais, parece que ficamos a saber tudo o que nos espera, mas existem tantas áreas cinzentas, tantas camadas neste enredo, que a apresentação é uma parte mínima deste drama familiar, de uma série de ligações conturbadas e disfuncionais. E, para mim, a narrativa brilha nesta envolvência, na capacidade que a Rita tem de nos colocar no meio dos problemas a desatar todos os nós. Seria tão fácil julgarmos certos comportamentos, certas decisões, mas ela tira-nos o tapete em momentos chave ao mostrar-nos que só conhecemos da história aquilo que ela decide contar. E, como em qualquer história, nunca existe apenas uma versão dos factos, portanto, talvez seja precipitado assumirmos que aquilo que estamos a ler é a única verdade possível.

«Passou a andar sempre com um pequeno bloco de notas no bolso, que puxava de cada vez que deparava com um gesto de cuidado daqueles que vão além dos laços de sangue»

O meu núcleo familiar, felizmente, sempre foi estável. Não sei o que é ser rejeitada, não sei o que é crescer com a sensação de abandono colada à nossa pele. O mais perto que tenho disso não é uma realidade que me pertença, mas pertence a duas pessoas que, sendo sangue do meu sangue, amo como se fossem meus filhos. Apesar de não encaixarem totalmente na história do Pedro, a figura de um padrasto está presente e, sem que alguma vez tivesse questionado sobre o assunto, sempre pensei que não deve ser fácil assumir esse papel, que é muito dúbia a fronteira entre estar e educar e saber até que ponto é aceitável intervir, alertar e em que circunstâncias; sempre questionei se em algum momento a pessoa que entra nas suas vidas deixa de sentir que não lhes pertence. Será que os laços de sangue têm mesmo esse peso ou vemos para lá deles?

A minha mente divagou muito durante a leitura, porque sinto que é um livro capaz de desencadear vários debates: sobre maternidade, sobre a necessidade de preenchermos vazios, sobre fissuras, sobre diferentes tipos de dor, sobre como aquilo que não vemos condiciona a nossa perceção das situações, sobre dinâmicas familiares e sobre amor. Existe muita tristeza nesta história, no entanto, o amor é força motriz em muitos dos seus momentos, aliás, só isso justifica a forma como se foram curando algumas feridas.

Revi muito da minha avó materna, que já não está comigo, em Glória e na capacidade de amar sem impor. Encontrei-me no Pedro, não por termos realidades próximas, mas por sentir que há traços de personalidade que se cruzam. A Helena colocou-me muitas vezes em causa, uma vez que despertou um debate interno, uma vez que me fez pender menos para um julgamento rápido e a ser empática com as suas escolhas/motivações. Por fim, mas não menos importante, o Eduardo personificou tudo o que acredito ser amar com o coração fora do peito. Este livro fez-me pensar nos protagonistas, mas também me levou a olhar à minha volta e a pensar nas pessoas com quem partilho casa, vida, memórias, laços familiares e/ou afetivos. Aliás, foi impossível sair destas páginas sem as compreender melhor. Sobretudo, saí da narrativa a amá-las ainda mais.

«Mesmo durante a sua infância e adolescência, já estranhava esta convicção de que os laços de sangue nascem connosco e são automaticamente inquebráveis»

É um privilégio imenso perceber como a Rita vai construindo as suas narrativas, como parte de algo que a inquieta e o transforma numa obra de arte. Já o tinha sentido nos livros anteriores, mas acredito que se superou neste, sem perder o traço realista que acompanha a premissa. E é tão bonita a história que dá origem a este enredo, que dei por mim comovida até nos agradecimentos. É esta a magia das palavras da Rita. Sei que escrevi sem parar, ainda assim, creio que nada do que disse faz justiça ao que vão encontrar, que nada nos prepara para esta viagem. É mesmo um orgulho desmedido.

Apesar do Sangue tem uma profundidade e uma sensibilidade surpreendentes. E tão depressa nos dilacera, como nos apazigua. Neste retrato a quatro vozes, há um toque muito humano, personagens complexas e credíveis e uma cadência que nos envolve desde a raiz. Parte de mim, gostava de esquecer o que leu só para ser arrebatada outra vez, não obstante, a parte que resta sabe que esta história encontrará novas forma de crescer, porque é daquelas que, quanto mais pensarmos nelas, mais camadas seremos capazes de traçar. Sem ter a pretensão de ser barómetro de consciência, mostra-nos a importância da comunicação e a beleza que existe nos laços que vamos estreitando.


 notas literárias

  • Gatilhos: Famílias disfuncionais
  • Lido entre: 10 e 12 de abril
  • Formato de leitura: Digital
  • Género: Romance
  • Personagens favoritas: Glória, Eduardo, Pedro e Helena (apesar de ter passado alguma raiva com a última, a verdade é que está tão bem construída que não me deixou indiferente)
  • Pontos fortes: A escrita madura e tão bonita, o enredo cheio de camadas, as personagens, a credibilidade de toda a história
  • Banda sonora: Apesar do Sangue (playlist criada pela Rita) | Aviola II, Bispo

Disponibilidade: Wook (Livro | eBook) | Bertrand (Livro | eBook)
Nota: Esta publicação contém links de afiliada da Wook e da Bertrand

4 Comments

  1. Mais um sugestão a ter em conta.
    Isabel Sá
    Brilhos da Moda

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  2. Agora estou mesmo curiosa para ler ;)

    Beijinho grande, minha querida!

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    Respostas
    1. E eu muito curiosa com a tua opinião :) espero que te reserve uma excelente leitura!

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