fábrica de criadas, afonso cruz

Fotografia da minha autoria


O folhetim criado por Afonso Cruz para o jornal Público foi publicado de segunda a sexta, com uma edição áudio aos sábados, desde o dia 25 de abril de 2023 até ao dia 25 de abril de 2024, a propósito dos 50 anos da Revolução. E, este ano, renasceu em livro.


 uma narrativa escrita em espelho

Fábrica de Criadas é ficcional, no entanto inspira-se num episódio verídico. A narrativa contém um arco temporal de meio século, «distribuído em espelho: vinte e cinco anos antes do 25 de abril e vinte e cinco anos depois», e permite-nos acompanhar a infância de uma menina que foi abandonada pelo pai, quando ainda só tinha seis anos, «num asilo para crianças desvalidas», como era designado na altura. Ali, aprendiam tarefas que lhes permitiriam vir a ser criadas de servir, mas nem tudo corre como o esperado.

A construção do livro fascinou-me de imediato por várias razões: porque os capítulos foram escritos diariamente, porque havia uma estrutura que tinha de ser respeitada e que não corresponde ao processo criativo habitual do autor e porque não era possível voltar atrás e reescrever. Isso, creio, tornou tudo mais desafiante e, talvez, mais ligado à essência desta história. Em simultâneo, achei interessante que procurasse mostrar as diferenças sociais e políticas entre uma vida em ditadura e uma vida em democracia.

«(...) mas sem articular palavra nenhuma. Não as tinha. Era uma outra espécie de censura, a dor que apaga a palavra e deixa apenas ruído, um grito desprovido de sentido»
  
É nesta zona de desconforto que o autor se movimenta e, com uma certa simplicidade na escrita, nos transporta para um misto de perversão e inocência, de dureza e afeto, de ausência e presença, de reação e conformismo. Embora essas fronteiras não sejam claras em alguns momentos, por se sobreporem, percebemos que permanecem atuais. E não deixa de ser angustiante constatar que a luta continua a ser urgente, tal como o era há cinquenta e um anos. E é por esse motivo que sinto que ler este livro agora teve ainda mais impacto: porque é assustador pensar que a História se pode vir a repetir.

Quando mergulho numa obra de ficção, não vou à procura de respostas concretas para as minhas inquietações, nem pretendo que resolva o caos dos meus dias. Ainda assim, admito, sabe a abraço apertado quando, sem existir essa pretensão, contactamos com testemunhos que impulsionam a nossa vontade de resistir, de agir, de prolongar rasgos de esperança no meio da escuridão, porque nos mostram que, se não nos rendermos, é possível vencer o medo, a opressão, a clausura e o silêncio. Claro que isto não é linear, claro que há muito sofrimento, muitas perdas, muitas situações ambíguas e revestidas de desrespeito e desumanidade, portanto, não é possível romancear este cenário, não obstante, é a teimosia de um povo que não se verga que traz a poesia que nos falta.

«(...) a luta de uns é também de outros, como diz a canção: "nenhum de nós anda sozinho". Abril não nos ofereceu somente sonhos. Abriu a porta. Cabe ao povo sair da prisão»

Encontrei a teimosia que supracitei, sobretudo, numa das personagens principais, até porque acredito que é a espinha dorsal deste enredo. É através das suas escolhas e das suas ações que vemos o destino a ser questionado, que nos sentimos de sobreaviso e que avançamos de coração nas mãos, para descobrirmos o que acontece nos hiatos e quais serão as consequências desta resistência intencional, feita de várias subtilezas

Fábrica de Criadas confronta-nos com a imagem da criada, com a condição da mulher, com desigualdades e com as próprias diferenças entre o meio rural e o meio urbano. Sendo um enredo de Afonso Cruz, existem inúmeros detalhes que nos surpreendem e que nos fazem questionar a lógica. E acho fascinante como também parte da religião para analisar as formas distintas como podemos lidar com o mundo que habitamos. Além do mais, acredito que também é uma história que luta contra o esquecimento.


 notas literárias

  • Gatilhos: Violência, morte, luto; linguagem explícita
  • Lido entre: 13 e 20 de maio
  • Formato de leitura: Físico
  • Género: Romance
  • Personagem favorita: A Irmã Gorda
  • Pontos fortes: A escrita que não perde a poesia na sua simplicidade, os contraste sociais e a construção do enredo
  • Banda sonora: Jornada, Fernando Lopes-Graça & José Gomes Ferreira | Grândola, Vila Morena, Zeca Afonso | Montanha, Plutonio | Abril, Carolina Deslandes | A Madrugada Que Eu Esperava, Bárbara Tinoco

4 Comments

  1. Desconhecia esta publicação! Sabes onde podemos encontrar à venda?
    Como seguidora do trabalho dele, gostaria de a comprar :)
    Beijinho e bom Domingo!

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    1. Não sei se ainda consegues encontrar em alguns quiosques, mas consegues através da loja online do Público ☺️

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