Entrelinhas #11


«Um cenário de terrível desastre assola Lisboa. Entre os sobreviventes há um velho editor procurando amigos e amores desaparecidos. Encontra um manuscrito e um rapaz e, neles, a porta para uma outra dimensão na vida. Por Este Mundo Acima é a consagração dessa melhor forma de amor a que chamamos amizade. Uma história sobre a importância redentora dos livros»


Patrícia Reis era um nome totalmente desconhecido para mim, até encontrar o seu livro numa das bancas de promoções que o Continente costuma fazer. Neste caso concreto, podíamos comprar um livro por seis euros ou três por doze. Tendo em conta o preço normal, era uma oportunidade fantástica, por isso analisei cada exemplar disponível ao pormenor. Nenhum deles fazia parte da lista dos que pretendia adquirir, mas encarei isso como algo positivo: podia alargar horizontes e descobrir autores que, de outra forma, talvez me passassem completamente despercebidos. Assim que li a sinopse de «Por Este Mundo Acima» não resisti, tive que o trazer comigo.

A narrativa começa depois de uma catástrofe que altera por completo a forma de viver. Eduardo, a personagem principal, vai contando a sua história, mas interligando-a com a daqueles que lhe eram próximos, permitindo-nos ter acesso a uma espécie de contextualização dos factos, sobretudo nos primeiros capítulos que são mais descritivos. Acompanhamos a sua vida, as suas opiniões, os seus pensamentos, as suas teorias, o seu medo em sair de casa, as suas ações e a constante reflexão que faz acerca de tudo o que o rodeia. Para o editor, profissão de Eduardo, há uma vida antes e uma vida depois do desastre que assolou Lisboa. E é essa dualidade permanente entre passado e presente que nos vai cativando e prendendo ao enredo à medida que este avança. 

A linguagem utilizada envolve o leitor. Apesar de ser sobre um tema delicado e haver pormenores crus, que nos mexem com o sistema nervoso, a leitura consegue ser leve, porque também conta com pitadas de humor. Além disso, o livro está dividido em partes que se complementam, criando uma sequência lógica, e que nos permitem descobrir o significado de determinadas situações. A estrutura de alguns fragmentos do texto altera-se, nomeadamente quando o editor faz enumerações. Inicialmente, o motivo não é decifrável, mas depois torna-se visível que contempla uma característica muito particular da personagem. E este detalhe parece-me bastante interessante!

Esta é uma história cheia! Fala-nos de sobrevivência e da necessidade de sobreviver, do valor da amizade, das perguntas que insistem em permanecer na nossa cabeça; de medo, de solidão, da dor da perda e do choque da realidade perante os destroços; mas, também, da importância dos livros (que podem ser a nossa salvação) e do poder das palavras, pois possibilitam-nos a resolução de questões pendentes - escrever ajuda a libertar mágoas, traumas (que mesmo que se superem deixam marcas); damos voz às palavras escritas porque, muitas vezes, silenciamos aquilo que queremos dizer por tanto tempo que depois se torna obrigatório falar, expulsar o que vai dentro de nós, libertar fantasmas e deixar tudo em claro.  

E, de repente, tudo muda. Conhecemos alguém e a nossa vida altera-se. Afeiçoamo-nos. Queremos proteger, cuidar, amar, não deixar que a ligação se perca. Ganha-se um novo alento, ainda que algumas memórias não desapareçam e se tornem mais claras. Há segredos que se revelam, relações que se confirmam e um desgaste emocional que quase se torna palpável. Chegamos ao fim com a sensação de que este livro se assemelha a um diário, principalmente quando Eduardo começa a escrever notas aos amigos, depois de os perder, sobre tudo aquilo que lhes queria ter dito e não disse. Sente-se tudo: o desespero, a mágoa, a perda, o fechar de um ciclo e o começo de uma vida nova. E quando tudo parece tranquilizar, há mais um golpe do destino.

Mais do que se centrar nas desgraças, é um livro que privilegia a amizade e que nos mostra o quanto as relações com os outros nos mudam, nos condenam e/ou nos salvam.


Agora deixo-vos algumas citações:

«Sinto que voltei à infância, um tremor ligeiro, um bloqueio na garganta, um prenúncio de lágrimas. Contenho-me a tempo. Por vezes, vislumbro um corpo que, rápido, se escapa na paisagem.
As pessoas, os sobreviventes, não querem conversar» (pág. 17);

«É preciso treinar a mente, exercitá-la. Fui, antes do acidente, um editor, um homem de cultura. Nunca fui modesto. A arrogância com que vivi é somente uma sombra incómoda. O acidente tirou-me isso» (pág. 23);

«Ele disse exactamente assim: "Tens qualquer coisa, há qualquer coisa partida dentro de ti." E eu desabei. Como se tivesse o direito de saber. Não lhe contei nada. Não era preciso. Agarrou em mim e deu-me colo, pedindo que não fugisse. Eu, a menina-desastre, a rapariga-tesoura. Tentei não pensar.» (pág. 56);

«No fim da noite do aniversário, Pedro ajudou Eduardo a deitar-se. A roupa cuidadosamente dobrada, camisa, calças, casaco, peúgas. O corpo dele tão magro. O desenho das costelas no pijama. Na cozinha encheu o copo com água e ainda olhou o banco onde estaria o fantasma da mãe de Eduardo. Regressou ao quarto. Colocou o copo na mesa de cabeceira. Eduardo pediu-lhe para ficar» (pág. 196).

Comentários

  1. Ainda não li nada desta autora, mas parece-me uma obra interessante.
    Um abraço e continuação de uma boa semana.

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  2. Até fiquei com vontade de ler.

    Isabel Sá
    http://brilhos-da-moda.blogspot.pt

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  3. Tenho de o ler, fiquei bastante curiosa!
    Beijinhos

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  4. Três excertos que deviam fazer as pessoas pensar:

    «o quanto as relações com os outros nos mudam, nos condenam e/ou nos salvam»

    «A arrogância com que vivi é somente uma sombra incómoda. O acidente tirou-me isso»


    E esta última - que no texto é das primeiras «é a consagração dessa melhor forma de amor a que chamamos amizade» - é a confirmação da ideia que tenho há muito da amizade. A amizade não é mais nem menos do que uma outra forma de amor, ou de expressar o amor, como o amor de pais e de filhos.
    Infelizmente estou em crer que a maior parte das pessoas confunde amor com sexualidade e ficam de pé atrás com o amigo que as ama. Preferem o tipo de amizade agora muito em voga e que se resume a uma lista do Facebook.

    Olha, identifico-me muito com os conceitos deste texto, o que, de certo modo, me deixou triste. Ainda mais triste, porque hoje está a ser um daqueles dias que costumo classificar como “dias bons para morrer”. :’(
    Amanhã talvez seja melhor…

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  5. Não conhecia tanto o livro como a escritora mas, achei o enredo muito interessante! Foi uma promoção muito boa :)

    MORNING DREAMS

    Sofia Silva, Beijos*

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  6. Que sorte! E tem umas frases bonitas :)) eu é que não o conhecia sequer.

    r: De nada. Obrigada eu, pelos comentários que tens deixado no meu blog.

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  7. Resenha maravilhosa amei a dica do livro
    Meu canal: https://www.youtube.com/watch?v=apP6eHn5PlI
    Blog:http://arrasandonobatomvermelho.blogspot.com.br/

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  8. Não tinha conhecimento da existência deste livro mas fiquei curiosa. Parece ser viciante

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  9. Não conhecia esta autora mas fiquei curiosa :P há que apoiar os escritores nacionais!

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