Entrelinhas #12

Imagem retirada do google

«Durante vinte anos de casamento, Tim e Jane Farnsworth saborearam os frutos do trabalho dele como advogado de sucesso: vivem numa casa confortável, fazem férias em locais exóticos, não têm quaisquer preocupações financeiras. Tim venceu por duas vezes uma bizarra e inexplicável doença, mas tais episódios, embora não completamente esquecidos, fazem parte do passado. É então que a doença regressa, obrigando-o a comportar-se de uma forma assustadoramente nova. Tim é empurrado da sua confortável existência para uma vida que não reconhece, e isso vem pôr à prova a constância do amor de Jane. Até onde irá Tim para combater as incompreensíveis reacções do seu corpo, e o que arriscarão ambos para encontrar o caminho de volta um para o outro?»


O autor Joshua Ferris era completamente desconhecido para mim, até encontrar o seu livro numa promoção do Continente, onde poderíamos adquirir um livro por seis euros ou, então, três por 12. Quando li a sinopse fiquei bastante curiosa, ainda para mais porque nunca tinha lido algo com uma temática semelhante. Se, por um lado, escolher autores que não conhecemos é um risco, por outro, também pode ser uma mais valia, quanto mais não seja porque nos obriga a sair da nossa zona de conforto e a alargar o nosso conhecimento literário. Não me arrependo de o ter trazido.

A história centra-se em Tim, mais concretamente na sua doença. E que doença é essa? O mistério reside, precisamente, neste ponto: não tem nome e qualquer explicação médica. No entanto, altera completamente o seu comportamento. E é bastante interessante compreender como é que tudo se desenrola e como acaba por afetar as pessoas que estão à sua volta, provocando privações, mudanças na rotina e na forma de interagir e comunicar. O problema é desconhecido, não há qualquer caso igual por onde se possam guiar e muito menos conseguem detetar se é algo físico e/ou mental; para agravar, aparece e desaparece misteriosamente. E isso faz com que a preocupação seja constante. A única coisa que sabemos é que esta doença o obriga a caminhar até não conseguir mais. E é esse cansaço que lhe permite adormecer. 

Este livro é uma verdadeira montanha russa de acontecimentos e emoções. Há uma carga psicológica forte, personagens muitíssimo bem construídas e questões indiretas que nos deixam a pensar. Um aspeto negativo que posso apontar é mesmo a forma como a narrativa foi construída, isto porque requer bastante atenção da nossa parte, caso contrário desorientamo-nos e ficamos sem compreender determinados pontos. A leitura é acessível, mas há partes mais complexas e que podem ser um pouco confusas. Na minha opinião, a qualidade da narrativa atinge o seu auge mais para o final, uma vez que a sua estrutura não é a mais favorável: algumas descrições são exaustivas e levam-nos a perder o foco. Ainda assim, envolve-nos de tal forma que acabamos por quase sentir tudo aquilo que nos é descrito. Sentimos a frustração, a vontade de desistir, a necessidade de validar a doença, o ponto de saturação, o cansaço, a impotência, o medo, a desilusão, a dor, a perda de amor próprio. Além disso, vamo-nos questionando acerca da sensação que é fazer algo e não nos recordarmos, como se houvesse uma quebra de memória, como é lidar com o facto de perdermos as nossas faculdades, como se gere quando percebemos que alguém que nos é próximo coloca em causa o que estamos a viver... É uma situação delicada, na qual a dúvida está sempre presente. 

Em paralelo, vamos acompanhando a vida da sua mulher, que acaba por ficar de parte. Assistimos ao desgaste do casamento, ao encontro de refúgio no álcool, à vontade de mudar de vida e começar de novo. Quando parece que as coisas normalizam há uma reviravolta e a doença agrava-se. E também Jane será colocada à prova. Mais do que uma vez! E no meio de todas as adversidades, ambos perdem muito de si, mas considero que acabam por se redescobrir em várias situações, uma vez que se veem obrigados a travar lutas difíceis e desgastantes. 

É uma história que nos cativa, que surpreende. Chega a ser perturbadora, mas igualmente fascinante, melancólica e profunda. É o retrato chocante da degradação de um homem, onde nos deparamos com uma constante luta entre corpo e alma. É, além disso, uma obra onde o poder das relações humanas está muito presente. E o final deixa-nos em suspenso! Para concluir, referir que os sentimentos estão descritos de uma forma extraordinária e que é impossível não nos tentarmos colocar na pele das personagens.


Agora deixo-vos algumas citações:

«- Achei que a África era o nosso próximo destino.
Ambos sabiam que não havia próximo, nem agora, nem tão cedo, e o pesado silêncio regressou» (p:17);

«(...) E nesse caso que faria ele, gelado e gretado pelo frio, apenas de fato e gravata, caminhando por Manhattan e acabando sabe Deus onde? Preparava-se para o lembrar disso quando ele começou a esmurrar o porta-luvas» (p:24);

«A visão não se alterara. O dedo mindinho do pé esquerdo mumificara-se. Assustava-o incrivelmente a facilidade com que poderia cortá-lo com uma tesoura, sem sentir qualquer dor» (p:88);

«(...) Não era aquela mulher. Mas era. A mais antiga história do mundo, um total lugar-comum. Excepto quando é a nossa vida. Quando se trata disso, não é um lugar-comum, é a vida real, a vida quotidiana real, apenas embriagada. Surgira pelas costas e derrubara-a. Nunca o esperara, mas fora o que acontecera, surgira pelas pelas costas. Ser uma alcoólica era simples» (p:173);

«O olhar dele era resoluto. David era tão cativante que nem poderia ser encarado como descarado. Parecia fazer simplesmente parte do seu charme o facto de se estar pouco importando se ela era casada ou não. Sentiu-se lisonjeada, confusa, animada. Ao fim de um momento, recuperou a sensatez» (p:205);

«A liberdade reside nos corações dos homens e das mulheres e, quando essa chama se extingue, nenhuma constituição, nenhuma lei, nenhum tribunal, a poderá salvar» (p:224);

«Não paras de falar em como tens frio e fome - disse ele. - A noite é ainda uma criança, dizes. Uns bons sapatos não são apenas um luxo. Mas depois vais-te embora e não há apelo. Não há explicação para o teu comportamento e qualquer memória das tuas queixas. Não continuas com frio? Não tens fome? Qual é o teu propósito, o teu objectivo, a não ser atirar-nos para o sofrimento e a escuridão? Responde-me! Destróis a minha vida, privas-me da minha vontade, arrastas-me pelas ruas como carne num gancho. Colocaste a nu todas as minhas limitações e a minha total ilusão de liberdade. Com que fim? Que ganhas com isso?
O outro coxeava perseverantemente, nada dizendo» (p:225).

Comentários

  1. E para mim também é completamente desconhecido estes autor, mas fiquei curiosos e vou tentar lê-lo.
    Um abraço e bom fim de semana.
    Andarilhar

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  2. Não conhecia! De facto seguir um autor desconhecido pode ser arriscado mas sem dúvida que nos obriga a sair do "casulo" :)

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  3. É bom estarmos abertos a novas experiências. Às vezes aprende-se mais com um passo mal dado, do que caminhando a vida toda direitinho. :)

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  4. Vou tentar ler!!
    www.letrasaventureiras.tk

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  5. Vou tentar ler!!
    www.letrasaventureiras.tk

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  6. Não conhecia de todo o autor, mas fiquei super interessada!
    Beijinhos.

    with love,
    utopia

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  7. Resenha maravilhosa amei a dica do livro, bom final de semana para você.
    Blog: http://arrasandonobatomvermelho.blogspot.com.br/
    Canal:https://www.youtube.com/watch?v=DmO8csZDARM

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  8. eu tambem nunca tinha ouvido falar desse autor mas fiquei curiosa

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  9. Obrigado eu, meu anjo. É exatamente isso que tenho tentado fazer. Se não pensar, não se criam expectativas e o que vier, lá veio :) Nada há melhor do que o tempo <3

    Não conhecia o autor mas fiquei super curioso por ler. Nota-se que é daqueles livros que cativa mesmo!

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    InstagramFacebook Oficial PageMiguel Gouveia / Blog Pieces Of Me :D

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