Pássaro livre


«Sou como você me vê. Posso ser leve como uma brisa ou forte como uma ventania, depende de quando e como você me vê passar», Clarice Lispector


Não sou mais a boneca de trapos que arrumaste no baú do sótão. Aquele castanho, de madeira envernizada, que está escondido no recanto mais escuro a ganhar pó. Cansei-me de ser marioneta nas tuas mãos. Mas julgavas mesmo que isso iria durar para sempre? Que em nenhum momento teria forças para desprender os fios com que me amarraste a ti? Esse sempre foi o teu erro, achares que seria tua até ao fim. E fui. E prometi-te sê-lo. Mas só até perceber que aquilo que sentes por mim não é amor, mas sentimento de posse. Como é que foste capaz de destruir tudo aquilo que sentia por ti? Como? Será que algum dia serás capaz de explicar o que te passou pela cabeça para brincares com o meu coração daquela forma? 

Basta! Isto não é um jogo de onde partes em vantagem e recomeças sempre que te apetecer. Derrubei o tabuleiro e virei as costas. Destruíste tudo aquilo que pensei construir ao teu lado. Usaste-me. Abusaste do amor que eu sentia - sim, leste bem, sentia - até não suportar mais ter este sentimento dentro de mim. Libertei-me das cordas imaginárias com que me ataste mãos e pés. Rompi-as de tanto lutar contra ti. Atrevi-me a viver sem a tua presença. E tu isso nunca soubeste fazer: viver. Tu não o fazes. Limitas-te a sobreviver. A encher o peito de ar e a encarar o mundo atrás de uma máscara que está prestes a cair. As pessoas não te conhecem como eu. Ainda bem, não precisam de conviver com mais um monstro que lhes atormente a vida. É exatamente isso que tu és por todos os horrores que me fizeste passar. Por não teres sido capaz de aceitar que nunca te seria submissa. Tu conheces-me, talvez melhor do que aquilo que eu gostava, por isso sabias que iria dar luta, mas estava tão cega de amor por ti que fechei os olhos para não ver a escuridão com que pintavas as paredes da nossa casa. Fechei os olhos porque acreditei que por segundos aquilo não passaria de um pesadelo e quando os voltasse a abrir tu estarias ao meu lado como sempre pensei que estivesses. Fui ingénua ao pensar uma coisa dessas. Isso nunca poderia acontecer porque tu não és o príncipe encantado que salva a princesa adormecida. Tu és o vilão que a envenena e a sufoca sem escrúpulos. 

Hoje sou um pássaro livre, que voa sem destino, sem sentir medo, sem se preocupar em voltar a entrar na gaiola onde me tentaste enclausurar. Desprendi-me de ti. Das memórias. Do toque. Do cheiro. Não me lembro de quem és nem daquilo que alguma vez foste para mim. Hoje sou tudo aquilo que me roubaste. A inocência. O sorriso. A vontade de viver feliz. Não me conseguiste destruir. Renasci das cinzas quando me queimaste com tanta crueldade. Não conseguiste que fosse como tu. Cobarde. Rancoroso. Frio. Sem uma pequena ponta de bondade. Acho que nunca te vi sorrir, mas se há coisa que te agradeço é por me mostrares que não quero viver nesse lado da vida. Já não me magoas. Nem nunca mais terás o dom de me seduzir com essa voz rouca e quente, esse toque meigo e esse olhar doce. É tudo ilusão, mas as pessoas caem na tua cantiga, que com o tempo percebi ser desafinada e sem qualquer charme. Não passas de uma farsa, mas não me enganas mais.

Hoje voei para longe. De ti. E se um dia chegar a voltar só espero que tenhas ardido no inferno, dentro da gaiola de ferros brancos ou do baú castanho envernizado, sem qualquer ponta de misericórdia. Também sei desejar mal a alguém, mas não penses que somos iguais. É que ao contrário de ti nunca segui esse caminho. Nem o quero fazer. Abri a pequena porta e fugi para voos mais altos. Onde sei que nunca serás capaz de me alcançar, por só saberes andar rente ao chão. 

Comentários

  1. Numa só palavra... Uau!!!!

    Adorei!

    Beijinhos!

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  2. Amazing!
    Eu adoro estes teus textos. :)

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  3. Puxa Andreia.. tão perfeito

    Sónia
    www.tarasemanias.pt

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  4. Bom dia Andreia Morais.

    Pássaro livre, fora da gaiola!
    não é mais boneca de trapos
    de trapos se fazia uma bola.

    Isso foi nos tempos idos,
    não haviam bolas como agora
    usam-se curtos vestidos
    está mais valorizada a moda!

    Como o pássaro livre estou,
    alguém me abriu a porta
    porque você me convidou
    vou entrar na sua casota!

    Receba se desejar um abraço!
    e outras coisas em que acredita
    desejo para você um dia agradado
    obrigado pela sua visita...

    Eduardo.

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  5. Este texto disse-me muito, mesmo. Talvez por ter passado por uma relação semelhante e porque disse tudo isto à pessoa em questão. Por muito que me custe dizer isto, há pessoas que não merecem nem o ar que respiram...

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  6. Muito bom texto! Quem me dera a mim ter a liberdade de um pássaro...

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  7. Força, porque a batalha não acabou ai, agora começou em ti!

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  8. Gosto de te ler :')
    Há pessoas que não te merecem é só isso que tens de ter em mente.
    Força! Beijinho*

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  9. Fantástico, quase que consegui sentir a tua raiva e imaginar-te a atirar um tabuleiro pela janela fora! Muito bom!

    Bjxxx

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  10. resp: quis fazer alguma coisa diferente , e assim também é uma nova das pessoas me conhecer melhor um bocado

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  11. Muito bom querida... às vezes temos mesmo de bater no fundo para dizermos basta e conseguirmos ser livres!!

    R: respondido :)

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  12. resp: também acho, e já andava sem ideias para post's no blog :)

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  13. Isto está tão... wow!
    Sei que digo sempre isto mas desta vez é ainda mais do que das outras (não pensei que fosse possível)
    Adorei e identifiquei-me imenso!

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  14. Quem me dera ser um pássaro e saber voar...adorei o texto! Adorava ter a tua inspiração :)

    MORNING DREAMS

    Sofia Silva

    Beijos*

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  15. Tenho uma enorme dúvida não sei quem hei de nomear é preciso nomear os 15 blogues ou posso por menos blogues?
    p.s desculpa a pergunta

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  16. ADOREI O TEXTO! Às vezes custa acreditar que há pessoas como esse tal "ele" referido ao longo do texto, ou seja, "Cobarde. Rancoroso. Frio. Sem uma pequena ponta de bondade.". Mas há, e não são tão poucos quanto isso. Essas pessoas, como tu bem disseste, não sabem amar. Não sabem o que é o amor. Apenas sentem aquela necessidade de posse. E, com isso, magoam os outros, aqueles que se apaixonam de verdade, aqueles que amam com todo o coração e não recebem o carinho que tanto merecem. Teres conseguido afastar-te de alguém assim foi fantástico, das melhores coisas que podias ter feito. Nós somos livres, merecemos toda a liberdade do mundo e não estamos cá para sermos submissas. Não somos de ninguém, não pertencemos a ninguém. As pessoas não nos podem prender. Não é, nem de perto nem de longe, uma relação saudável e, muito menos, uma relação que tu mereças. Mereces MUITO melhor.
    R.: Educação Básica foi um dos cursos que me passou pela cabeça, mas, mesmo assim, não estou a pensar candidatar-me a esse. Estou bastante virada para Ciências e Saúde. Na minha primeira candidatura só estavam 4 cursos. Neurofisiologia, Cardiopneumologia, Anatomia Citológica, Patológica e Tanatológica na ESTSP e, por fim, um curso da FCUP, Bioquímica. Mas teria entrado sem qualquer dúvida, visto que a minha média era bastante superior à média do curso de Audiologia (interessante também) na ESTSP e, ao fim de algum tempo, bastaria pedir transferência. Portanto, digamos que entre esses 4 cursos estou super indecisa porque gosto imenso de todos eles. Basicamente, a ordem é aleatória.

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  17. Que texto tão expressivo e sentido,adorei ;)

    Já respondi a tag e obrigada pela nomeação.
    http://retromaggie.blogspot.pt/

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  18. resp: é mesmo querida, já coloquei o 1ºfacto sobre mim :)

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  19. r: A Regaleira é mesmo fenomenal :D olha querida, já respondi à tag das 5 perguntas no meu blogue

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  20. Este texto deixou-me sem palavras, quase sem fôlego, tão sentido, tão escrito com tudo o que vai ai dentro... a alma despida nestas linhas..

    Ainda bem que já te libertaste, mas pelo que escreves, essa pessoa marcou-te e muito e não pelo melhor..

    Mas eu acredto que irás encontrar quem caminhe contigo e não contra ti.

    Beijinhos Querida*

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