O SILÊNCIO DAS ANDORINHAS

Fotografia da minha autoria



«Um dia disse uma andorinha»


A primavera começa a instalar-se no horizonte. Do terraço de onde avisto o mundo, ecoa o estilhaço do meu trauma. Intermitente, a transbordar de mágoa e de raiva, mas sempre presente. Presa nesta bolha, balanço no parapeito, enquanto, na estrada lá em baixo, um embate ativa gatilhos na minha memória. E, então, eu cedo.

Em queda lenta, recuo àquela rua estreita, quase desértica, que pôs termo à nossa paz. Escuto a rebentação dos foguetes e o carro a derrapar, olho pelo espelho e o caos cresce num cenário de horror. Abandono o veículo, à procura de algo que não sei bem o que pode ser e vejo-te inconsciente, caído em desamparo, mas não tenho qualquer nome para te chamar. Ao nosso redor, há gritos, poeira e histerismo. Ouço vozes desesperadas e alguém a pedir auxílio por um homem tombado do muro, ensanguentado. O meu corpo move-se em piloto automático, mas a minha alma parece ter-me deixado só, porque está tudo longínquo. Também escuto sirenes frenéticas, a encurtar a distância. Sinto alguém a abraçar-me, por isso, permito-me cair. Já não sei onde estou, mas sei que alguém permanece do meu lado. De repente, fica tudo turvo e eu desmaio.

- Doutora, está a acordar... Perdemo-la novamente.

Esta espécie de dança, soube mais tarde, demorou, como se me recusasse saber o que tinha acontecido. É provável que me tivessem dado uma razão para o sucedido, seguida de recomendações médicas, mas não prestei atenção: só conseguia pensar naquele corpo estático, nas notícias que se repetiam na rádio. Quando o sufoco abrandou, fui assaltada por outra imagem: um telemóvel a tocar em surdina e sem ninguém para o atender. Olhei-te, olhei-o... Como é que se faz calar o medo, quando ninguém nos confidencia segurança?

Há uma vazio que não me permite entrelaçar as pontas soltas, mesmo depois de todo este tempo. Há qualquer angústia que insiste em não desaparecer, talvez por imaginar que poderia ser eu do outro lado daquela chamada não atendida, na tentativa de encontrar respostas; se calhar, porque senti o peso de não ter quem se preocupasse, quem ansiasse por novidades sobre o meu estado. A solidão consegue ser mesmo paralisante.

Regresso ao presente. Ganhei o hábito de vir para aqui, sempre que os pensamentos se tornam mais audíveis e o coração acelerado. Existe algo neste terraço que me acalma os nervos e que me concede espaço para respirar fundo. Há, de facto, experiências que nos moldam e, embora seja autossuficiente, embora não tenda a bloquear em situações vulneráveis, não escondo que, por vezes, são maiores as recaídas. Como hoje.

Lá em baixo, o trânsito abrandou, a circulação retomou a normalidade - menos aquelas vidas, menos as nossas. Ao longe, noto os primeiros sinais de mudança, mas algo sobressai: o silêncio das andorinhas.

Comentários

  1. Um conto muito bem escrito que muito gostei de ler
    .
    Saudações poéticas e cordiais
    .
    Poema: “”Luz poética que renasce””…
    .

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  2. Senti cada linha na pele. Extraordinário.
    Beijinho grande, minha querida.

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    Respostas
    1. Oh, uau, assim até fico sem palavras! Muito, muito obrigada, minha querida

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  3. Gostei muito *.* Texto muito bonito. Continua assim :)

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  4. Oh, que texto mais bonito, como não gostar
    Uma boa semana
    Beijinhos
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    Tem Post Novos Diariamente

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  5. Que conto maravilhoso, Andreia!
    Adorei ler. Parabéns.
    Bjs

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  6. Adorei o texto! Incrível!

    Boa semana!

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    Até mais, Emerson Garcia

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