![]() |
Fotografia da minha autoria |
- título sugerido pela Matilde Ferreira -
A primeira caixa foi selada e colocada no alpendre. Não havia outra maneira de garantir que este gesto penoso não seria separado da sua intenção: enterrar o passado com tudo aquilo que lhe pertence.
Existia, ainda assim, uma sensação estranha a pairar, quase como se aquele pedaço de cartão frágil estivesse incompleto. Ao vê-lo abandonado, tive vontade de tombar na cadeira, porque ninguém se quer despedir do pouco que lhe resta. Genuinamente, não sabia que a nossa vida podia ser acondicionada num espaço tão mínimo. Parece que não passamos de cinzas, à espera que o vento nos leve para longe.
O tempo está ameno e eu continuo a empacotar tralhas. Desastrada, talvez pela comoção, acabo por partir uma caneca. Por sorte, foi aquela vermelha horrorosa com corações - desculpa -, mas os cacos deixaram o chão da sala numa confusão ainda maior. Mas a culpa é minha, já que, reconheço, por orgulho recusei qualquer ajuda - achei que seria mais fácil gerir a mágoa se não existissem testemunhas, até porque, se quebrasse, não haveria ninguém em cuidados, desconfortável, para me recompor.
Preciso de uma pausa e mando vir comida. Lembras-te quando te dizia que um poema era uma fatia de pavlova? Tu não compreendias a associação e eu explicava-te que era por ser um misto de doçura e crocância, a precisar de ser confecionada no ponto. Sorrias e servias-me uma taça de mousse. Não era a mesma coisa, contudo, tinha o teu toque e não havia prova de amor maior do que essa. Agora que te enterrei, quem é que saberá ouvir as minhas tentativas de tornar o mundo num verso?
Aguentei aqui o tempo necessário para tratar de todas as burocracias, portanto, estava na altura de esvaziar a casa, decidir o que era para guardar, o que seria para doar e o que, simplesmente, poderia ser deitado fora. O problema é que não era fria o suficiente para fazer essa divisão. Aliás, como é que poderia desfazer-me de um simples objeto da pessoa que mais me ensinou e amou? Seria uma traição.
Adiante, preciso de me recompor, preciso de sair daqui. Queria fechar a casa, hoje, mas talvez precise de adiar a partida. Guardo a chave na primeira gaveta do armário e reparo que contém um envelope azul, que nunca tinha visto antes. Hesito, porque continua a parecer-me estranho invadir a tua privacidade, avó, mas se for algo importante também nunca me perdoarei por o ignorar. Abro-o e fico a saber muito pouco, já que só tem um papel com duas frases e uma morada.
"Para corações partidos, apenas precisas de quem seja lar.
Se já não couberes aqui, diz só o meu nome quando lá chegares
Rua das Tupilas nº71"
Que parte da tua vida é que nunca conheci? O que haverá na Rua das Tulipas? Será que devo ir? Petrifico e tento acalmar os nervos. Ainda que a tua memória caiba sempre em mim, sei que não posso cá ficar, porque, assim, nunca aceitarei a tua morte. Desafio-me a ir, apesar de saber a loucura que isto soa. Mas, realmente, estou de coração partido e tu nunca aumentarias o meu sofrimento. Está decidido, vou!
Parece que já escuto as vozes inquietas dos telefonemas inevitáveis; parece que já sei de cor as tentativas para me persuadirem, porque isto é imprudente.
- Como é que sabes que aquela mensagem era para ti? Poderia ser para a tua avó...
Não sei, segredei mais para mim do que para quem estava do outro lado da chamada. No entanto, sinto que deve ser. Só pode ser. Porque só para mim é que ela escreveria uma espécie de poema.
Precisava de obter algumas respostas, como não é possível, por estarmos em planos opostos da vida, limito-me a reorganizar a desarrumação, talvez assim organize as ideias. Reúno alguns bens essenciais, pego na chave do carro e atraso as despedidas mais um pouco. Se calhar, será mais fácil depois, quando a distância limpar os destroços da tua ausência.
O relógio marca as 16 horas. Sei que seria mais sensato esperar por amanhã, no entanto, já não consigo aguentar este silêncio - e já nada me prende aqui. Faço uma última paragem por cortesia e deixo que a estrada me encaminhe por paisagens desconhecidas. Em surdina, acompanho a voz da senhora do GPS. Irrita-me um bocado, mas quero garantir que não falho a saída - já há várias coisas a falhar no meu peito despedaçado.
Tenho medo, sabes? Medo que tudo isto seja em vão. Medo que isto seja uma ilusão de esperança. Medo de não ser capaz de avançar e de continuar a ver sinais inexistentes, apenas para te manter perto, para não ter de lidar com esta dormência. Medo, sobretudo, de continuar agarrada à impulsividade de partir à tua procura e nunca mais assentar raízes. Sem me aperceber, sinto lágrimas a cair pelo meu rosto. E há algo de catártico.
A senhora do GPS avisa que o meu destino fica à esquerda e eu desperto do transe em que aparentava deslocar-me. Do lado direito, existe um mural com uma nota de saudação: «Bem-vindo a Mil Flores». Estaciono o carro e faço intenções de ir perguntar por ti. Será que há alguém à minha espera?
Mil Flores. A vida não deixa de me surpreender com a sua subtil ironia. Eu que nunca fui apegada à primavera, vim agora desabrochar neste lugar.
14 Comments
Que espectáculo! Adorei completamente o teu texto, senti-me naquela casa, como se fosse o protagonista. Obrigada pela partilha. <3
ResponderEliminarBeijinho grande, minha querida!
É tão importante ler isso, minha querida. Muito, muito obrigada!
EliminarParabéns pelo teu talento!
ResponderEliminarIsabel Sá
Brilhos da Moda
Oww, obrigada, Isa!
EliminarUm belo texto.
ResponderEliminarUm abraço e boa semana.
Andarilhar
Dedais de Francisco e Idalisa
Livros-Autografados
Muito obrigada, Francisco!
EliminarBoa semana
De coração cheio *.* A tua escrita é uma verdadeira inspiração :)
ResponderEliminarAgradeço-te, de coração, pela sugestão do título e pelas tuas palavras *-*
EliminarMuito bom! Os meus parebéns!
ResponderEliminarBjxxx
Ontem é só Memória | Facebook | Instagram | Youtube
Muito obrigada, Teresa!
EliminarUma menina cheia de talento, que seja sempre assim,
ResponderEliminarContinua, Parabéns
Beijinhos
Novo post
Tem Post Novos Diariamente
Aww, obrigada, Sofia *-*
EliminarQue bonito 🤍
ResponderEliminarObrigada!
Eliminar