Entre Margens

Fotografia da minha autoria



«A vida é feita de momentos colecionáveis»


Agosto teve muitas vidas dentro, foi longo e trouxe momentos de descanso, que ajudaram a repor energias. Regressei a lugares que me fazem feliz, conheci locais novos e abracei pequenas mudanças (de visual e no digital). Como não podia deixar de ser, despedi-me deste mês no meu evento favorito da cidade Invicta.


       MOMENTOS       

Férias 2023
A dinâmica deste ano foi diferente, porque não havia um plano traçado. Ainda assim, trouxe experiências maravilhosas, uma vez que revisitamos o Jardim Botânico do Porto e fomos conhecer o Parque das Águas, voltamos a Baiona, conhecemos Vilarinho das Furnas e fomos passar uns dias a Bragança, aproveitando o início da Festa da História. Foram férias mais para descanso do que para explorar e soube muito bem.

Passaporte Livrólico
Turismo literário é algo que me fascina, por isso, estou sempre disponível para incluir livrarias no roteiro. Este mês, tive a oportunidade de visitar a Rimas e Tabuadas, em Guimarães, sobre a qual vos falei nesta publicação, e a renovada Livraria Arquivo, em Leiria (em breve, escreverei mais sobre ela).

Feira do Livro do Porto
O meu evento favorito começou no passado dia 25 de agosto e prolonga-se até ao dia 10 de setembro. Fui visitá-la no sábado (26) e aproveitei para comprar a maior parte dos livros que tinha na lista, porque, desta forma, nas outras datas que pretendo comparecer, vou completamente focada nas sessões que me interessam. Sou mesmo feliz a passear pelos Jardins do Palácio de Cristal e, nesta altura, ainda mais.

Entre Margens
O blogue comemorou dez anos e eu senti que estava na altura de renascer, porque este espaço é tudo o que imaginei, mas o nome com que o abri já não me estava a servir. Portanto, fiz pequenas mudanças.

      

      

      

      

Outros apontamentos bonitos do mês: A Portugalid[Arte] também renasceu e transformou-se numa newsletter semanal, o jantar cá em casa com a minha Gémea e o T., o aniversário do meu primo.


       LEITURAS       

📖 Vamos Todos Morrer, Hugo Van Der Ding
Alma Lusitana

📖 Rapazes de Zinco, Svetlana Alexievich
Clube Leituras Descomplicadas

📖 Pequena Coreografia do Adeus, Aline Bei
Ler a Diferença

📖 Um Muro e Uma Cerca, Elisabete Martins de Oliveira
Clube do Livra-te

📖 Três Mulheres no Beiral, Susana Piedade
Alma Lusitana


Outras leituras do mês: O Cultivo de Flores de Plástico (Afonso Cruz), Leme (Madalena Sá Fernandes), Entalados (Filipa Beleza), A Última Coisa Que Ele Queria (Joan Didion), Mary John (Ana Pessoa), Tribuna Negra (Cristina Roldão, José Augusto Pereira & Pedro Varela), Os Meus Sentimentos (Dulce Maria Cardoso), Obras Completas Vol. V (Maria Judite de Carvalho), A Natureza da Mordida (Carla Madeira), Recolha de Alexandria (Afonso Cruz) e A História de Roma (Joana Bértholo).


     FILMES, SÉRIES & PODCASTS     

Ao Largo
A nova aposta da RTP (que já chegou ao fim) mostra-nos, de um lado, uma mulher em fuga e, do outro, um pai em apuros. Em comum, têm o facto de as suas vidas se cruzarem e de terem uma comunidade a depender deles, ainda que não o saibam. Apesar do traço cómico (e insano em certas cenas), não deixa de evidenciar alguns problemas e algumas críticas. Nomeadamente, a falta de integridade e o abuso de poder, a dificuldade em gerir um negócio e as aventuras da paternidade e, ainda, uma chamada de atenção para os prejuízos inerentes à mudança da malha urbana, porque se perdem espaços tradicionais e as pessoas tendem a ficar esquecidas, quando o dinheiro fala mais alto. Foi uma companhia bastante agradável.

28 1/2
Aventurei-me neste filme, «acompanha um dia conturbado na vida de uma mulher a caminho dos trinta anos de idade», porque achei a premissa focada numa realidade muito comum. É através da história de Teresa que nos confrontamos com uma cidade a abarrotar de turistas e com o que isso implica para os habitantes daquele lugar, com a dificuldade em arranjar trabalho e todas as burocracias que surgem pelo meio, com a quantidade de vezes que olhamos para o lado, apenas para não nos preocuparmos com um problema que não é nosso. Apesar de levantar temas e questões interessantes, senti que algumas cenas ajudam a perpetuar estereótipos, enquanto outras ficaram demasiado forçadas, até desconexas. Não me arrebatou como estava à espera.

Curral de Moinas
A dupla Quim Roscas e Zeca Estacionâncio está de volta ao grande ecrã, de segunda a sexta (tanto podem ver na RTP, como podem ver na RTP Play). Aos 35 anos, Quim descobre que, afinal, teve um pai e que este lhe deixou uma herança peculiar, o que o deixou muito abalado - a ele e ao próprio Curral de Moinas. Quim e Zeca mudam-se para Lisboa e o novo estilo de vida de ambos colocará a amizade deles em causa. A pergunta que importa é: estará a capital preparada para lidar com a farfalhuda monocelha que eles possuem? Veremos! A única certeza que eu tenho é que, passe o tempo que passar, estes episódios continuam a ter imensa graça.

Glória
Raret foi um «antigo centro retransmissor, instalado pelos americanos, que tinha como principal objetivo combater o comunismo». A funcionar durante 50 anos, colocou a região Ribatejana na rota da Guerra Fria e é este o palco da primeira série portuguesa da Netflix, que chegou agora à RTP. Estou a achar fascinante o jogo de espionagem, sombras e suspense. A figura central é João Vidal e sinto que representa bem o quanto as nossas ações nunca são lineares, o quanto, em ambientes tensos, são mais as áreas cinzentas.

Podcasts
🎤 A Milhas, com um episódio de aniversário especial;
🎤 Silly Season, um episódio bónus do Livra-te com o Private Joke;
🎤 21 e 3/4, um episódio bónus de Só Se Estraga Uma Estante.


       À MESA       

Magnum Double Starchaser
Esta nova opção, que andava desejosa de experimentar, combina caramelo e pipoca. A parte do caramelo consegue ser um pouco enjoativa, mas o sabor a pipoca na parte do chocolate é divinal.

      

Coração do Tua
Esta pizzaria/restaurante foi a nossa escolha para almoçar em Mirandela. Se andarem pela zona, aconselho: a comida é uma delícia e o atendimento irrepreensível. Além disso, têm uma sala muito agradável.


       ENTRE LINHAS       

Saco Zé Livreiro
O Zé Livreiro, da página Confissões de Um Livreiro, lançou dois sacos de pano e eu não resisti a este do nosso Eça. Aliás, acho que não fui a única, porque, na Feira do Livro do Porto, aquando da atribuição da tília de homenagem, acabou por ser filmado e apareceu numa reportagem da TVI.


Publicações
✏ A importância da representatividade, numa partilha mais intimista do Filipe Heath;
✏ A breve história de um corpo que não sabe sê-lo, Daniela Errada; 
✏ 3 motivos para adorar a feira do livro do porto, Sofia Costa Lima.


       JUKEBOX       

Top 4 de favoritas
🎧 Go Go Go, Jorja Smith;
🎧 Óleo de Nardo, Marta Carvalho;
🎧 Colãs, Dillaz;
🎧 Toque, Rita Laranjeira

Álbuns
🎵 O Cultivo de Flores de Plástico, M-Pex;
🎵 The Felt Library, Lemos


       GRATIDÃO       

«Ainda não é o fim nem o princípio do mundo calma é
apenas um pouco tarde»

Agosto relembrou-me a importância de abrandar e de desfrutar das pausas, por isso, sinto-me grata por esses momentos que revitalizam a alma. Além disso, estou grata por ir ouvir um autor-casa.


Como foi o vosso mês?

Fotografia da minha autoria



A banda sonora de uma viagem literária


A playlist literária de agosto ficou mais extensa do que pensei, porque, embora seja um período de férias, não costuma ser um mês de muitas leituras. Este ano, a dinâmica foi diferente e tive uma viagem fascinante, que me permitiu descobrir novos artistas, novos projetos e reencontrar-me com sonoridades que já são da casa.


O CULTIVO DE FLORES DE PLÁSTICO, AFONSO CRUZ
Lili e os Caracóis, M-Pex ▫ A associação CASA teve em cena a peça de teatro «O Cultivo de Flores de Plástico», texto de Afonso Cruz. M-Pex compôs todos os temas da banda sonora, compilados num álbum com o mesmo nome. Portanto, na altura de escolher uma música para acompanhar a leitura, fez-me todo o sentido que fosse uma destas. Depois de escutar as melodias, tendo em conta que Lili é uma das personagens da história, senti uma ligação imediata.


LEME, MADALENA SÁ FERNANDES
Turbilhão, Toquinho & Vinicius ▫ «O que eu mais gostava era de andar nesse carro com a minha mãe. Púnhamos sempre o mesmo CD a tocar, Vinicius de Moraes com Toquinho», não sei se esta passagem entra no capítulo das memórias verídicas ou se foi construída para a narrativa, o certo é que gostei desta imagem, desta certeza de terem algo tão delas. Por isso, fui à procura de um tema de ambos os artistas e escolhi aquele cujo título, sinto, expressa bem as suas vidas. Embora a letra apresente uma leveza que nem sempre vivenciaram, perderam-se «neste turbilhão», mas também fizeram tudo o que pediu «esse seu coração».


VAMOS TODOS MORRER, HUGO VAN DER DING
Love Is a Dreamer, Josephine Baker ▫ Uma das personalidades apresentadas neste livro é, precisamente, Josephine Baker. Fiquei tão fascinada com a biografia e com a sua luta, que achei por bem associá-la, musicalmente, à leitura. Dentro das possibilidades, foi este o tema que me marcou e, como sinto que era o amor que a movia, acho que combina bem.


RAPAZES DE ZINCO, SVETLANA ALEXIEVICH
трава возле дома, Zemlyane ▫ Segundo a nota de rodapé, o título desta música, traduzido, é Relva Junto a Casa e é sobre a saudade que os cosmonautas sentem longe de casa. Para além de ser uma canção mencionada no livro, acho que saudade é mesmo um elo que une todos os protagonistas: saudade da vida que tiveram, saudade do que era familiar, saudade das pessoas que foram e que já não reconhecem ser, saudade daqueles que partiram e não tiveram uma despedida apropriada e, claro, saudade de quem regressou, mas se perdeu pelo caminho, porque não é possível passar por uma situação desta magnitude e permanecer igual.


TRÊS MULHERES NO BEIRAL, SUSANA PIEDADE
Porto, Emmy Curl ▫ A cidade Invicta é o palco desta narrativa e é fascinante perceber como é que o seu retrato, a sua essência, todos os seus traços se interligam à vida e à histórias das personagens. «Colecto sombras, sentimentos que ficaram», sinto, é um verso que traduz bem o sentimento da protagonista, porque, ao guardar tudo e todos aqueles que ficaram, de uma maneira ou de outra, «descobre sítios que nunca há-de esquecer». Além disso, a letra de Emmy Curl leva-nos numa viagem pelo Porto e pelas emoções de um sujeito poético que vive e que pensa sobre tudo o que vive, um bocadinho à semelhança de Piedade. É a carga emotiva que combina tão bem estas duas manifestações artísticas.


PEQUENA COREOGRAFIA DO ADEUS, ALINE BEI
Travessia, Milton Nascimento ▫ Júlia, a protagonista do livro de Aline Bei, viveu toda a sua vida numa travessia, a lutar contra os fantasmas do passado, a procurar por conforto e amor, a tentar colar os cacos em que a sua vida se transformou. Ao escutar a canção de Milton Nascimento, senti que estava perante uma extensão da narrativa, principalmente, quando ouvi os versos «minha casa não é minha/E nem é meu este lugar/Estou só e não resisto» e, ainda, «Meu caminho é de pedra/Como posso sonhar?». Mesmo de coração fragilizado, quis «amar de novo» e nunca desistiu.


ENTALADOS, FILIPA BELEZA
Marcha da Greta, Mão Verde ▫ O livro da Filipa Beleza mostra-nos as incoerências do ser humano em relação aos cuidados a ter com o planeta. Por isso, lembrei-me do projeto Mão Verde, que pretende abordar questões ecológicas junto das crianças, das famílias e da comunidade escolar. Após percorrer a lista de temas, este pareceu-me o mais adequado, porque nos confronta com um exemplo de alguém que, de facto, procura fazer a diferença no dia a dia.


UM MURO E UMA CERCA, ELISABETE MARTINS DE OLIVEIRA
Tourada, Fernando Tordo ▫ Uma escolha emocional, porque está associado a um dos momentos mais comoventes, para mim, deste enredo. E porque o sinto como o ponto de viragem entre a ligação dos protagonistas.


A ÚLTIMA COISA QUE ELE QUERIA, JOAN DIDION
Carousel, Melanie Martinez ▫ «Round and round like a horse on a carousel» foi mais ou menos como me senti durante toda a leitura, porque dei voltas e mais voltas para conseguir acompanhar o enredo. «I'm stuck», porque, ainda assim, queria mesmo compreender o que tinha acontecido - spoiler alert: não aconteceu, porque perdeu-se em linhas paralelas confusas, para mim.


MARY JOHN, ANA PESSOA
Maria e João, Nara Leão & Chico Buarque ▫ Uma associação pela ligação de faz de conta, pela possibilidade de ser tanta coisa, em momentos distintos da vida. Além disso, pela melodia, transportei-me para a praceta mencionada no livro, ao final do dia, onde havia sempre tanto a acontecer.


TRIBUNA NEGRA, CRISTINA ROLDÃO, JOSÉ AUGUSTO PEREIRA & PEDRO VARELA
Little Girl Blue, Nina Simone ▫ Ocorreu-me este tema, porque parece que Nina Simone nos vai contar uma história e, neste livro, nós ficamos a conhecer a história do movimento negro em Lisboa. Além disso, ao ler a letra, há versos como «What can you do», «It's time you knew/All you can ever count on» ou «You might as well surrender» que se interligam à energia da obra. Este coletivo não se rendeu, não a 100%, mas foi percebendo com o que poderia contar, face a todas as adversidades que se cruzaram no caminho.


OS MEUS SENTIMENTOS, DULCE MARIA CARDOSO
People Watching, Conan Gray ▫ Foi pelo verso «That wasn't funny, but she laughed» que senti que seria uma boa correspondência. Porque esta música mostra um traço de fingimento que também se encontra na narrativa, porque, para além disso, acho que a protagonista experienciou «todo esse amor e emoções», porque, suspensa, ficou a observar pessoas e, sobretudo, fragmentos da sua vida. E procurando viver através dos seus fantasmas, continuou com esperança de que fosse tudo diferente.


OBRAS COMPLETAS VOLUME V, MARIA JUDITE DE CARVALHO
Flor Sem Tempo, Paulo de Carvalho & Diogo Piçarra ▫ Ao olhar para os títulos que compõem este volume, juntei «tempo» e «flor» e lembrei-me do tema de Paulo de Carvalho. Se é a associação que encaixa melhor? Em parte, acho que sim, por este jogo de palavras e por, ao ouvir a letra, sentir que o sujeito poético também observa muito o que o rodeia, tal como Maria Judite de Carvalho.


A NATUREZA DA MORDIDA, CARLA MADEIRA
Dor Elegante, Itamar Assumpção ▫ Uma citação que destaco neste livro é «Um homem com uma dor é muito mais elegante», que pertence a Paulo Leminski e foi musicada por Itamar Assumpção. Ao escutar a letra, percebi que cada verso lhe está à medida: 1) porque há muita dor nesta narrativa, mas é tudo descrito com elegância; 2) «sofrer vai ser a minha última obra» e, em boa verdade, foi, uma vez que não houve uma única personagem que não sofresse. Não sinto que a intenção fosse transportar a mágoa como um mártir, simplesmente, há feridas que não sabemos como fechar.


RECOLHA DE ALEXANDRIA, AFONSO CRUZ
Quase Nada Sei, Francisco Moreira ▫ «São tantas ruas, becos e vielas (…) Abertas para o resto da nossa vida (…) Tanta coisa para viver e sentir (…) A cada dia sinto a descoberta» são tudo versos que espelham aquilo que senti ao ler este livro de Afonso Cruz. Pertencendo à Enciclopédia da Estória Universal, este volume, tal como os outros, esconde muitos mundos paralelos e eu fico sempre na dúvida entre o que pode ser real e o que pode ser imaginado. Por isso, há sempre essa sensação de desconhecimento e de descoberta, há sempre essa sensação de imensidão, de haver tanto, que nenhum dia será igual.


A HISTÓRIA DE ROMA, JOANA BÉRTHOLO
En El Último Trago, Chavela Vargas ▫ A música só podia ser esta: porque pertence à história e porque a melodia me transporta para as ruas de um lugar que não conheço, mas que, pelas palavras de Joana Bértholo, se torna próximo. Além disso, acompanha as dores descritas na narrativa, o peso daquilo que se devia esquecer e permanece tão presente e o sofrimento de várias despedidas - mesmo indecifráveis.

Fotografia da minha autoria



«Quando alguém se torna uma pedra do caminho da especulação imobiliária, tudo pode acontecer»

Avisos de Conteúdo: Morte, Orfandade, Referência a Suicídio, Luto


A lista de autores para o Alma Lusitana, deste ano, foi pensada com antecedência e sofreu reformulações, mas um dos nomes que surgiu de imediato foi o da Susana Piedade. Já me tinha cruzado com algumas críticas maravilhosas sobre a sua obra e a minha curiosidade pendeu para o seu lançamento mais recente (2022).


PORTO, FAMÍLIA & ESPECULAÇÃO IMOBILIÁRIA

Três Mulheres no Beiral transporta-nos para a Baixa do Porto, para «uma rua icónica com uma fiada de prédios» e para a história da família de Piedade, o elemento que agrega cada vínculo, mesmo que a ausência e a distância condicionem parte da sua convivência. E é, também, graças à octogenária que ficamos a conhecer o filho José Maria, a neta Madalena, a bisneta Catarina e o neto Eduardo: todos eles tão diferentes, tão concentrados em objetivos divergentes, como se fossem divisões de uma casa antiga a degradar-se.

«(...) à medida que lhe falava de amor por palavras tão leves 
como as nuvens que se desfaziam lá fora. E depois sorriu»

É extraordinário perceber como é que a cidade e as personagens se interligam, como é que as vidas de várias gerações ficam condicionadas por medos, por segredos, pela perda que tem tantos rostos e emoções. Há muitas sombras a interferir com as vivências desta família, mas também existe muito amor. E mesmo no meio da crueldade evidente, influenciada por interesses mesquinhos, percebe-se que, lá no fundo, existe um resto de dignidade, que só o amor pode reconhecer - ou procurar resgatar, para que não se repitam desgostos.

«Havia memórias e saudades espalhadas pela casa, dores e alegrias que não 
se podiam palpar ou reter em caixas e que pertenciam às pessoas que ali viviam»

Em simultâneo, acompanhamos os efeitos da especulação imobiliária, pouco benéfica para antigos inquilinos, que passaram toda a sua vida no mesmo lugar, construindo memórias e alicerces, para, na reta final, ser imperativo abraçarem a mudança. Aliás, a pressão é tão desleal, que fica apenas uma sensação: estas pessoas não pertencem à cidade que as viu nascer (ou quase), embora sejam as pioneiras da sua identidade.

«Julgamo-nos donos do tempo, das pessoas, da vida, 
mas a perda torna-nos humildes num instante»

Neste cenário tenso, a protagonista ganhou o meu coração: pela fibra, pela resiliência, pela vulnerabilidade que nunca escondeu e por ser o rosto de uma alma portuense que não quebra. O Porto Antigo demonstra o seu potencial, há quem procure reestruturá-lo, mas também continua a existir quem se recuse a baixar os braços. Piedade é essa voz de presença, é o exemplo de perseverança, que nos inspira a continuar a lutar.

«Cada um mantém vivos os seus mortos conforme entende»

Fiquei encantada com a escrita sem floreados, mas com um toque poético, com a construção verosímil das personagens, com o drama familiar e com as inúmeras camadas presentes nas entrelinhas. Foi a minha estreia nos livros de Susana Piedade e já só quero descobrir os anteriores - sinto que descobri outra autora-casa.


🎧 Música para acompanhar: Porto, Emmy Curl


◾ DISPONIBILIDADE ◾

Wook: Livro | eBook
Bertrand: Livro | eBook

Nota: O blogue é afiliado da Wook e da Bertrand. Ao adquirirem o[s] artigo[s] através dos links disponibilizados estão a contribuir para o seu crescimento literário - e não só. Muito obrigada pelo apoio ♥ 

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«Uma amizade improvável»

Avisos de Conteúdo: Solidão, Negligência Parental, Doença Oncológica, Luto


Livros com histórias de amizade e dramas familiares têm o meu coração por inteiro, devo confessar-vos. Visto que era isso que prometia a obra de estreia de Elisabete Martins de Oliveira, não tardei a incluí-la na minha lista de desejos - e na TBR de agosto, acompanhando a sugestão da Rita da Nova para o Clube do Livra-te.


QUEBRAR OS MUROS QUE ERGUEMOS

Um Muro e Uma Cerca tem uma premissa intrigante, afinal, foca-se numa criança negligenciada pelos pais, num idoso solitário e no vínculo improvável que os unirá. Como o título deixa antever, haverá um muro e uma cerca a separá-los, mas a ligação de Santiago e Elias crescerá mesmo assim. E, digo-vos, a amizade entre eles é realmente amorosa. No entanto, houve alguns aspetos que não resultaram muito bem para mim.

«Deito-me na cama, abraço a almofada e só rezo para que os meus pais não me ouçam chorar»

A escrita não me arrebatou. Num ponto inicial, pelo discurso de Elias, até me transportou para características da tradição oral, o que achei interessante, mas fui-me distanciando, porque se tornou um pouco repetitiva, perdida em pensamentos filosóficos que me pareceram acrescentar pouco à narrativa. Tem potencial e margem de progressão, faço essa ressalva, contudo, sinto que o enredo precisava de outra abordagem - talvez beneficiasse, como li recentemente, de um narrador na terceira pessoa, criando uma visão menos dispersa.

«Para o resto, terei sequer tempo de vida?»

Além disso, houve acontecimentos que se revelaram inverosímeis e, até, forçados. Preferia que a autora mantivesse apenas as problemáticas de base, já que teria muito por onde desenvolver. Ao tentar acrescentar outras situações intensas, fez com que o principal fosse menos explorado. Claro que isto não passa do meu gosto e a opção narrativa que tomou não deixa de ser válida, mas, enquanto leitora, acho que me teria emocionado mais se continuasse alinhada com a negligência parental, provocando uma maior nuance nos comportamentos dos pais, com a situação familiar débil e com a solidão que consegue ser um elo transversal.

«As lágrimas caem-me. Tenho medo»

Os valores que transmite são imprescindíveis e não ignoro a capacidade de demonstrar que, independentemente da idade, há condicionantes comuns a moldar a nossa visão do mundo, das pessoas, das circunstâncias, simplesmente ocorrem numa escala distinta, porque temos recursos igualmente distintos. Além disso, numa história contada a duas vozes, gostei de conseguir identificar a mudança na linguagem: mesmo que não lesse o nome do narrador de cada capítulo, tornou-se simples reconhecê-lo e unir as peças do puzzle. Desta maneira, também nós vamos furando as divisórias, como se passássemos a ser parte daquelas casas.

«Encosto o braço ao portão, e a cabeça nele. Consigo ouvi-los respirar, 
a ansiedade a arrancar-lhes a esperança»

Um Muro e Uma Cerca levanta questões pertinentes e faz-nos refletir sobre bullying, sobre o lado imprevisível da vida, sobre a influência que as relações humanas têm nas situações mais mundanas e sobre a angústia de nos sentirmos invisíveis, de sentirmos que as nossas pessoas não acreditam na nossa palavra. Não foi, de todo, uma má leitura, há passagens que ficarão comigo, apenas não teve a carga emocional que esperava.


🎧 Música para acompanhar: Tourada, Fernando Tordo


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Uma viagem literária para descobrirmos os nossos autores


Setembro traz-me sempre a magia dos regressos e quis o sorteio do Alma Lusitana que me reencontrasse com um autor que marcou o meu 2022 (mesmo só tendo lido uma obra da sua autoria). Para complementar, porque este mês também pode ser a motivação perfeita para abraçar abordagens distintas, proponho a descoberta de uma nova autora (na qual me estrearei) e, ainda, um livro extra, para conhecermos mais da nossa história.


MARIA FRANCISCA GAMA

Nasceu em Leiria, tirou Direito, em Lisboa, e chegou a trabalhar num escritório de advogados. Atualmente, divide o seu percurso entre a escrita, a leitura, o trabalho criativo e as explicações de língua portuguesa.

   

Madalena: «De repente, aparecem muitas pessoas. Rostos, não pessoas. Não me lembro de quase ninguém em específico, não obstante, sinto nunca ter esquecido quem lá esteve. Ligo ao João, peço-lhe que venha para aqui. Abraços sem fim. Lágrimas sem fim. A minha mãe vai ao hospital com uma amiga. Volta a tremer. Não há esperança. Morreu. MORREU. Não vai acordar mais. Choro. Continuo de pijama, na rua, com frio. Muitas pessoas, mil abraços, mil lágrimas, palavras que esqueci. Havia quem chorasse muito alto, outros para dentro. O telemóvel não parava de tocar. Tantas coisas para dizer. Tantas coisas por dizer. "Pai? Pai… Volta».

A Profeta: «Mariana é uma jovem mulher solitária. Tem um emprego do qual não gosta, passa os dias e as noites sozinha a ler um livro misterioso. Sente um profundo desprezo pela Humanidade, mas não consegue evitar ajudar quem precisa, mesmo que a ajuda venha na forma de um frasquinho de veneno indetetável. Através das pessoas com quem se vai cruzando, todas vítimas de alguém, Mariana vai eliminando o mal do mundo e, ao fazê-lo, junta uma legião que jura segui-la para sempre, como a uma profeta».

Encontram um conto seu no e-book Nove Contos (Não) Tradicionais de Natal


VALÉRIO ROMÃO

Filho de emigrantes portugueses, nasceu em França e veio para Portugal aos dez anos. Licenciou-se em Filosofia e conta com um percurso profissional vasto, atendendo a que é escritor, contista, dramaturgo e tradutor. Foi, por três vezes, selecionado como Jovem Criador Nacional e já tem várias obras publicadas.

      

Autismo: «Trata-se da primeira abordagem literária de um tema que toca cada vez mais gente em Portugal. Este primeiro romance do jovem autor dá-nos a experimentar, de um modo nunca óbvio, o impacto devastador da doença na família, mas também faz um retrato impiedoso da comunidade médica além de abordar, sempre de um modo fortemente literário, as inúmeras consequências do autismo. O romance, com um final inesperado, afirma-se como reflexão dinâmica e até aventurosa sobre a solidão, a impossibilidade de comunicar e o desespero».

O da Joana: «Joana e Jorge esperam por um filho há oito anos. Mudaram três vezes a cor do quarto da criança: a ansiedade era muita. Naquela noite, aos sete meses de gravidez, quando rebentam as águas de Joana, Jorge apanhou-se a pensar que talvez haja males que vêm por bem e que isso significasse um parto mais fácil. O drama explode no hospital quando algo corre mal. Joana pede então ao médico que simule uma normalidade dando início a um longo itinerário interior que a leva, à personagem e a nós, leitores, numa viagem de montanha russa à loucura».

Facas: «É um livro que assume uma centralidade temática contrastante com a liberdade formal com a qual exprime, em mutações de forma e de tom ao longo dos contos que o compõem, as diversas declinações do objecto que empresta o título ao livro, ora sublimando-as num realismo tão mágico como grotesco, ora tornando-as as máscaras mais visíveis de uma natureza humana caleidoscópica, ora desafiando livro, leitor e lógica, desapossando-os pouco a pouco da clareza e segurança de uma definição, como quem estando na praia não saber dizer se a praia é a areia ou o mar».

   

Da Família: «Valério Romão, um dos mais desafiantes escritores da atualidade, regressa com um conjunto de 11 contos, alguns deles anteriormente publicados em revistas como a Granta ou Egoísta. Com estilo de grande crueza lírica, expande aqui o seu universo para o tema omnipresente da família, desenhando com nitidez extraordinárias personagens. Ninguém fica indiferente a estas páginas».

Cair Para Dentro: «Eugénia, a filha, não foi educada para ser um adulto independente e, embora seja professora universitária, a mãe controla o seu dinheiro, o seu tempo, proibindo-a até de ter telemóvel. Quando Virgínia começa a desenvolver sintomas de demência, Eugénia vê-se obrigada, deixando aquela infância artificial construída pela sua mãe, a crescer e a cuidar de todos os aspectos práticos da vida de ambas. Até descobrir que, no estado em que a mãe se encontra, a vingança é uma possibilidade».

Autismo, O da Joana e Cair Para Dentro compõem a trilogia Paternidades Falhadas


TRIBUNA NEGRA, CRISTINA ROLDÃO, JOSÉ AUGUSTO PEREIRA & PEDRO VARELA


«Poucas pessoas saberão que, entre 1911 e 1933, Lisboa foi palco de um movimento negro que combateu o racismo, exigiu direitos para as populações nos territórios colonizados e criticou sistematicamente, embora por vezes de forma ambivalente, o colonialismo, chegando mesmo a dialogar com formas de internacionalismo negro, como o pan-africanismo. Este livro, que resulta de um longo e aprofundado trabalho colectivo de pesquisa, percorre a vida desta geração, dos seus inúmeros jornais, organizações e activistas, até ao ponto em que a ascensão da ditadura, a perseguição política dos seus mais destacados militantes e as contradições internas selaram o seu destino. Os autores problematizam ainda o modo como raça, género e classe atravessaram o movimento e as relações políticas que estabeleceu com a diáspora negra no mundo e com a «Geração Cabral». Tribuna Negra levanta o véu sobre uma história silenciada, interpelando as gerações do presente e do futuro sobre a História Negra em Portugal».


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andreia morais

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O meu peito pensa em verso. Escrevo a Portugalid[Arte]. E é provável que me encontrem sempre na companhia de um livro, de um caderno e de uma chávena de chá


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