POR AÍ

Fotografia da minha autoria



- título sugerido pela Matilde Ferreira -


As casas desta cidade são disformes, sem estética alinhada, sem identidade visual para quem a visita. E, ainda assim, talvez sejam todos os seus desníveis que as tornem tão inconfundíveis e procuradas, ao longo do ano.

Diz-se, por aí, numa dessas lendas improvisadas de tempos antigos, que estas casas foram edificadas sobre histórias. Debaixo da terra, como árvore sustentada pela sua raiz, encontram-se páginas de um livro que nunca chegou a ser terminado. Para que isso acontecesse, distribuíram-se as folhas por cada um dos terrenos, assim nunca se juntariam, nunca seriam capazes de contar os segredos que a cidade esconde.

Diz-se, também, que todas as noites, a horas que ninguém deve estar desperto, se ouve uma voz roufenha, a declamar palavras impercetíveis. Talvez seja o poeta que desta terra se perdeu. Talvez sejam só as mentes mais férteis a procurar dar corpo ao chorrilho de contos que se bordam a ponto cruz, como as cruzes dos que permanecem aqui esquecidos, a alimentar estas quimeras que quebram a monotonia.

O certo é que, lenda ou mito, há sempre uma aurora que nos traz no seu regaço, para junto da biblioteca, um amontoado de folhas rasgadas, vazias, sem qualquer sinal de vida, de uso, de imaginação reproduzida em palavras. O certo é que, lenda ou mito, há quem continue a tentar desvendar o mistério que paira pela cidade.

Por aí, correm longos os dias em que do silêncio dos vivos se fez a paz de quem já partiu.

Pronunciando a última palavra, Margarida fechou o livro perante uma plateia de jovens curiosos.

— Professora, o que fazem a essas folhas rasgadas? Será que, se as juntarmos, não conseguiremos ler algo?
— Não me parece, Clara, são como pequenos flocos de neve.
— Mas já as viu bem?
— Sim, coube-me a mim a tarefa de recolher as últimas.
— Então não há mesmo hipótese... — disse-o cabisbaixa.
— Não chegaria a tanto.
— Como assim? — e uma centelha de esperança voltou a cobrir o olhar da rapariga.
— Não desanimes, podes sempre criar tu uma reviravolta para a nossa lenda.

De olhar esbugalhado, como se aquelas palavras fossem a pista que precisava, Clara sorriu e saiu apressada da sala. Margarida, por seu lado, acabou de arrumar as coisas e só depois foi embora. Ao fechar a porta, perdeu-se num pensamento: seja lenda ou mito, talvez se tenham feito escritores por menos.

6 comments

  1. Cada vez estou mais fã deste teus contos, adoro a forma como nos fazes entrar na narrativa.
    Parabéns, minha querida.
    Beijinho grande!

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    1. Oww, muito obrigada! Enche-me mesmo o coração ler isso 🥺

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  2. Mais uma historia encantadora e fico de coração cheio por ter contribuido para te inspirar *.* Continua, minha querida, que ca estaremos para te ler :)

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  3. Oh, como não gostar destas tuas histórias, adorei bastante
    Beijinhos
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