ALMA LUSITANA ◾ ENQUANTO VAMOS SOBREVIVENDO A ESTA DOENÇA FATAL, NELSON NUNES

Fotografia da minha autoria



«Sobre o mistério mais insondável da vida»

Gatilhos: Morte, Depressão, Suicídio, Linguagem Explícita


A morte assusta e, por isso, continua a ser um tema tabu. A morte dilacera e, por isso, deixa-nos desconfortáveis. Preferimos evitá-la em conversas, mas, depois, temos sempre uma história para partilhar, porque a morte pesa a quem fica e conversar sobre ela vai sarando as feridas, vai-nos deixando mais leves. Por outro lado, conscientes ou não desse facto, é uma forma de preservarmos a memória de quem partiu.


UMA PEQUENA CONTEXTUALIZAÇÃO PESSOAL

A memória mais antiga que tenho é a da morte do meu avô materno. Eu estava junto à porta do quarto, de frente para a cama, e ele parecia dormir. Percebi que se passava algo pela agitação da minha avó, porque a minha madrinha chegou entretanto e porque entravam e saíam da divisão nervosas, a suportar as lágrimas e o desespero. Depois disso, só me recordo de ter passado a noite em casa de uma vizinha, amiga de família. Quando a minha mãe me tentou explicar o que aconteceu, a preocupação dela foi proteger-me. Não me recordo do diálogo, mas parece que lhe disse «mãe, eu sei que o avô morreu». Eu fazia quatro anos nesse dia.

Não sei até que ponto fui condicionada por este momento, sei, isso sim, que me moldou. Tenho 31 anos, o meu avô faleceu há 27 e essa imagem ainda me pesa, não pela brutalidade da situação, mas pela ausência, pela perda, pela relação que nunca pudemos construir. Com quatro anos, não sabia que estava a passar por um processo de luto, no entanto, sabia que falar sobre este assunto não me deixava confortável. E acho que aquilo que ajudou a não sentir isto como um trauma foi ouvir falar do meu avô com tanto amor. Mentiria se dissesse que me recordo dos dias seguintes, mas tivemos todos de nos reerguer. Nunca conversamos muito sobre a morte, ainda assim, acredito que teria ajudado. Talvez por isso goste tanto de ler/ouvir sobre o assunto.



AS VÁRIAS MANIFESTAÇÕES DA MORTE

Enquanto Vamos Sobrevivendo a Esta Doença Fatal é um dos livros mais ambiciosos de Nelson Nunes. Depois de ter publicado Preciosa, inspirado na sua história, propôs uma obra que se divide pelas várias manifestações da morte. Apesar da qualidade, foi rejeitada por algumas editoras, tendo em conta o tema. Felizmente, insistiu o tempo suficiente para que a Zigurate, editora de Carlos Vaz Marques, lhe desse uma oportunidade e a incluísse no catálogo. Sorte a nossa, enquanto leitores, por termos acesso à sua concretização, porque sinto que precisamos de mais livros que nos mostrem a morte destas perspetivas.

«No dia em que estava pronto para morrer, apercebi-me de que já estava morto»

Penso que não será spoiler, até porque o autor fala sobre o assunto abertamente, se vos disser que tentou suicidar-se aos 19 anos. Não desenvolverei os contornos deste dado, claro, para não condicionar a leitura, no entanto, creio que esta informação, aliada ao facto de se ter deparado com a morte pela primeira vez muito cedo, alimenta a vontade de questionar, de investigar, de analisar o fim da vida através de componentes distintas. Porque, no fundo, parece que já tudo foi escrito sobre o assunto, mas ainda há muito por escrever.

«Não estejas um dia sem saber das tuas pessoas»

Neste livro, construído de uma forma cuidada e intimista, transitamos entre o lado científico e o lado humano da morte, observámo-la a partir de inúmeras vozes, visões e emoções. Com testemunhos que emocionam, Enquanto Vamos Sobrevivendo a Esta Doença Fatal também nos aproxima: no medo, na fragilidade, nas dúvidas e no facto de precisarmos todos de gerir o processo de luto. O objetivo não é ser mórbido, muito menos diminuir a maneira como podemos encarar a morte: o grande objetivo desta obra é, antes, diminuir o choque e deixar-nos mais conscientes. Através de cada um dos testemunhos reunidos, vamos compreendendo que não estamos sozinhos, que é possível prosseguir e que sentir saudades talvez possa ser algo bom.

«O luto não precisa de ser curado, mas precisa de ter paz»

Demonstrar fragilidades é uma possibilidade que nos melindra e considero que adiamos este género de conversas porque ficamos altamente vulneráveis. Em simultâneo, independentemente do quão bem estivermos resolvidos, não é fácil imaginar um mundo onde as nossas pessoas não estejam: ter esta noção de perda tão presente angustia-nos. Comovi-me bastante durante a leitura, no entanto, também me senti mais leve, porque este livro ajuda a relativizar certas questões e, sobretudo, a encarar a vida com outra sensibilidade.

«Quanto amor poderia ter sido espalhado antes de ser tarde demais?»

Com tantas encarnações, não sei se encontraremos respostas concretas para o «mistério mais insondável». Contudo, entre ser o elo que nos prende a algo ou uma das experiências mais transformadoras da nossa vida, sinto que este híbrido, que interliga testemunhos, factos e experiências pessoais, foi muito bem bordado.


🎧 Música para acompanhar: Death Is Not Defeat, Architects

📖 Do mesmo autor, li e recomendo: Com o Humor Não se Brinca e Preciosa


Disponibilidade: Wook | Bertrand

Nota: O blogue é afiliado da Wook e da Bertrand. Ao adquirirem o[s] artigo[s] através dos links disponibilizados estão a contribuir para o seu crescimento literário - e não só. Muito obrigada pelo apoio ♥

Comentários

  1. A memória mais próxima que tenho da morte é do falecimento da minha avó em 2015. Visitei-a no hospital uns 3 dias antes dela falecer e nunca mais vou esquecer a frase que disse: "deixa-me dar um beijo à minha neta". Foi a avó com quem passei parte da infância e adolescência, e assistir ao seu sofrimento custou-me imenso. Às vezes a vida é injusta.

    Vou levar esta sugestão de leitura, apesar do tema duro, tenho a certeza que iria gostar de ler.
    Beijinho grande, minha querida!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. A vida avança, mas essas imagens ficam sempre e acabam por nos pesar sempre de alguma forma. Percebo, até porque nos sentimos impotentes, queremos evitar o sofrimento dos nossos e não conseguimos. Nós sabemos que é inevitável, mas dói sempre.

      Aconselho, minha querida. O Nelson Nunes fez um excelente trabalho neste livro

      Eliminar
  2. Cresci a saber que o meu avo paterno tinha falecido antes de eu nascer :( Depois disso a esposa dele a minha avo morreu quando eu estava a entrar na minha adolescencia depois de ter padecido de muita demencia e eu sinto que ela encontrou finalmente a paz que precisava junto do marido. depois disso no final da minha adolescencia vi o meu avo materno falecer vitima de cancro de pele, ele espero que eu chegasse ao pe dele para dar o ultimo suspiro. Depois disso seguiu-se a morte da esposa dele tendo ja eu a tua idade actual. Como sabes perdi os meus pais nestes ultimos anos, sendo a ultima a minha mae que foi das primeiras vitimas do covid... e ainda hoje sinto a sua falta mas vivo com a certeza que ela é a nossa estrelinha que esta a olhar por nos *.* Fiquei muito curiosa com esta sugestao.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Cada uma destas perdas vai-nos moldando, mas também gosto de acreditar que encontram paz, estejam onde estiverem
      Acho que vale muito a pena!

      Eliminar
  3. Quero muito ler este seu livro desde que saiu.

    Obrigada pela tua sugestão, Andreia!

    Um beijinho,
    Carolina - The Ginger Bookworm

    P.s. não sei a razão de não estar a conseguir tirar o anónimo no meu pc. Mudei de computador e não está a dar.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Se tiveres oportunidade, aconselho, é um livro maravilhoso!

      Oh, que estranho 😔

      Eliminar
  4. Oh, que me parece até ser mais uma boa sugestão para se ler, mas ainda não tinha ouvido mesmo falar
    Beijinhos
    Novo post
    Tem Post Novo Diariamente

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. É um lançamento relativamente recente. Se tiveres oportunidade, recomendo a leitura, Sofia

      Eliminar
  5. Respostas
    1. É um lançamento recente. Se tiveres curiosidade, aconselho

      Eliminar

Enviar um comentário