torto arado, itamar vieira júnior

Fotografia da minha autoria



Gatilhos: Violência, Escravatura, Racismo, Morte, Luto; Linguagem Explícita


O primeiro livro de Itamar Vieira Júnior esteve anos na minha lista de desejos. Tantos que achei que, se calhar, nunca o descobriria, embora todas as críticas maravilhosas me aguçassem a vontade. Foi preciso ser uma das escolhas do Livra-te, para agosto, para que esse encontro se proporcionasse.


 uma forte presença feminina

Torto Arado leva-nos até Sertão da Bahia, para conhecermos a história de Bibiana e Belonísia: irmãs, filhas de trabalhadores da fazenda e descendentes de escravos. Esta herança desumana perdurou não só na família delas, como também no território brasileiro. Ainda assim, Bibiana e Belonísia pareciam ver para além dessas restrições, alimentando a curiosidade própria de uma criança. Sempre juntas, há um dia em que o atrevimento de ambas muda as suas vidas para sempre, entrelaçando com mais força os laços que as uniam. Ou será que sofreram uma reviravolta inesperada?

A escrita é muito bonita, com uma cadência que nos embala e que quase nos faz acreditar que é uma história leve. Porém, está longe de o ser, até porque traz várias reflexões sobre escravatura, submissão e desigualdades sociais e de género; traz reflexões sobre (a ausência de) liberdade, sentido de comunidade e laços familiares. Através de um conjunto de personagens carismático, o autor traçou um retrato de uma vida dedicada à terra, enquanto foi dando voz a todos aqueles que foram (e permanecem) silenciados.

A realidade da roça de Água Negra era dura, mas o mais impressionante era que ninguém desistia. No meio da pobreza, das tormentas e da ganância dos proprietários, agarraram-se ao que lhes trazia alento: a religião, que, aliás, tem um peso bastante significativo para estas pessoas, sendo norte no meio do caos, sendo paz e caminho. Talvez por isso tenham encontrado razões para lutar, talvez por isso acabemos por encontrar uma ramificação destas irmãs, que trouxeram perspetivas distintas para o futuro da população, ainda que se mantivessem alicerçadas aos mesmos valores.

«Sem a comunicação era como se nos silenciássemos mutuamente. Era silenciar o que tínhamos de mais íntimo entre nós»

Confesso, no entanto, que esta narrativa não funcionou muito bem comigo, por um lado, porque achei as três partes um pouco desiguais, desequilibradas na envolvência e na emotividade (a minha favorita foi a segunda, sem dúvida) e, por outro, porque me parece que a falta de conhecimento prévio sobre o Jarê - «religião de matriz africana com ritos e símbolos do Candomblé, da Umbanda Omolocô e do Catolicismo» - pode condicionar a nossa interpretação dos acontecimentos e criar um certo afastamento. Percebemos a importância, mas será que percebemos todas as implicações? Reconheço, também, que posso ter feito uma má gestão de expectativas, mas estava à espera de uma história mais impactante.

Torto Arado não foi tudo o que esperei, mas não posso deixar de destacar a figura de Zeca Chapéu Grande, nem a dinâmica daquela família, que, apesar de algumas revezes, funcionou sempre como um todo e por um bem maior. Com um texto rico sensorialmente, há passagens que guardarei. Ademais, fiquei a pensar, graças a Bibiana e Belonísia, que é preciso coragem para ir, mas que também é preciso tê-la para ficar.


🎧 Música para acompanhar: Torto Arado, Rubel, Liniker & Luedji Luna


Disponibilidade: Wook (Livro | eBook | Audiolivro) | Bertrand (Livro | eBook | Audiolivro)

Nota: Esta publicação contém links de afiliada da Wook e da Bertrand

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