as telefones, djaimilia pereira de almeida

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A civilização está em constante evolução e é interessante imaginar o quotidiano das pessoas sem o acesso a determinados recursos. Quando nasci, o telefone já era uma realidade, já existia essa facilidade de comunicar com os outros de uma maneira mais rápida - ainda que pudessem existir limitações. Contudo, nem sempre foi assim. E acho curioso traçar este arco de progresso, porque passamos de um tempo em que este objeto nem sequer era idealizado para um tempo em que é quase tudo feito a partir dele. O livro de Djaimilia Pereira de Almeida acaba por ser um espelho disso mesmo.


distância, chamadas e saudade

As Telefones, numa clara homenagem ao género literário da diáspora, narra a história de Filomena e Solange: mãe e filha que veem a sua relação a ser construída através de sucessivos telefonemas. Quando as dificuldades se tornaram evidentes e a fome chegou a sua casa, Filomena sentiu-se na obrigação de enviar Solange para casa da tia, para que as suas condições de vida fossem, pelo menos, mais confortáveis. A partir daqui, as conversas passaram a ser à distância, na tentativa de minimizar vazios.

A ideia de um vínculo cimentado nestes contornos intriga, até porque implica uma série de reflexões sobre o impacto da ausência, o desejo de pertença, a noção de compromisso, a disponibilidade, o respeito pelo tempo de cada um dos envolvidos. Por outro lado, contrasta a cumplicidade e a intimidade da chamada e a cerimónia no reencontro. No fundo, tornou-se claro que ambas procuram não se tornar estranhas, estrangeiras, mas que há coisas que um fio de telefone não é capaz de proporcionar.

Entre desassossegos, medos e uma certa utopia, as protagonistas alimentam o elo que as mantém perto, mesmo quando não sabem como chegar uma à outra, mesmo quando há um oceano a separá-las e várias diferenças que só podem imaginar. A imagem foi substituída pela voz e passam a existir pela incógnita, pelas recordações. Numa espécie de simulacro, tentam resistir a um distanciamento imposto pelas circunstâncias e nós vamos procurando compreender se conseguiram lá chegar.

«Onde fica a estrada que nos leva para longe? A casa do futuro, onde já não somos nós que envelhecemos? A casa anterior à confusão, onde, envelhecendo em descanso, ainda não nascemos? A estrada das coisas que a distância não resolve, onde, andando em frente, o meu chapéu voa, e eu não quero saber, não estou nem aí se fico ou não mais leve»

As relações à distância são sempre complexas, independentemente da sua natureza, e creio que Filomena e Solange não se representam apenas a elas: expõem a história de tantas pessoas que tiveram de partir, de assentar raízes noutro lugar, de aprender a organizar a rotina de modo a que o silêncio não seja demasiado prolongado. Todos esses ajustem têm peso e não deixam de sofrer com as barreiras que vão surgindo.

Gostei mesmo muito da premissa e de nos fazer pensar sobre temas tão centrais como a imigração, as ligações familiares e as desigualdades sociais, no entanto, confesso que não me consegui relacionar com todas as partilhas feitas por esta mãe e por esta filha. Acho que encontraram um mecanismo de defesa na forma como se expressavam - Filomena com um tom mais religioso e Solange sempre em fluxo de consciência - e naquilo que pretendiam contar uma à outra, mas isso criou uma espécie de fachada, que me impediu de as conhecer melhor e de sentir que fui crescendo com elas. Por outro lado, fico a questionar se esta sensação não será uma intenção da autora, para que compreendamos que nenhum vínculo é isento desta dança de omissões e desvios.

As Telefones retrata a dureza da distância, mas também o amor que subsiste apesar de todos os contratempos. Sem deixar de mostrar toda a importância das memórias, é uma narrativa focada nas aprendizagens e no quanto as saudades nos vão moldando.


🎧 Música para acompanhar: Amazing Grace, Aretha Franklin



Disponibilidade: Wook | Bertrand

Nota: Esta publicação contém links de afiliada da Wook e da Bertrand

Comentários

  1. Quero muito ler este :) Quando vier de ferias vou mandar vir da Fundação *.*

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  2. Já está apontado, obrigada pela sugestão! :)

    www.amarcadamarta.pt

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