três histórias de esquecimento,
djaimilia pereira de almeida

Fotografia da minha autoria


Gatilhos: Linguagem Explícita


O meu plano inicial, este mês, para o desafio Ler Djaimilia, era focar-me na versão autónoma d’ A Visão das Plantas. No entanto, estava a ter dificuldades com a encomenda e fiz uma troca, lendo na mesma o título pensado. Confuso? Já explico.


obra tríptica

Três Histórias de Esquecimento compila as novelas A Visão das Plantas, Maremoto (ambas com edições independentes) e Bruma (uma novela inédita). Na origem destas histórias temos a afirmação do filósofo Peter Geach: «Talvez um homem possa perder a sua última chance quando é novo, e depois viver até ser velho: viver contente e sentir-se em casa no mundo, mas aos olhos de Deus estar morto». Portanto, este tríptico concentra-se na noção de desperdício que influencia a vida dos três protagonistas.

É interessante perceber como três narrativas aparentemente distintas conseguem interligar-se no trato, na forma como estes homens encaram o passado e no facto de a escravidão, o tráfico de escravos e a Guerra Colonial continuarem a pesar no presente.

Celestino, Boa Morte e Bruma partilham uma série de tormentos: uns por serem causa de sofrimento, outros por sentirem as atrocidades cometidas. Em simultâneo, conseguem espelhar a culpa, a ausência de remorsos, a sensibilidade e a noção de liberdade, mesmo quando não se é livre. O ser humano não é só feito de bondade, poderá alguém responsável pela dor ser digno de um final de vida descansado?


a visão das plantas

O Capitão Celestino é uma personagem d’ Os Pescadores, de Raul Brandão. Quando o leu, Djaimilia Pereira de Almeida ficou com vontade de explorar a sua história, por isso, conheceremos melhor o homem que viveu como pirata, que foi traficante de escravos e que regressou a casa para morrer. Solitário e relativamente introspetivo, há algo que se torna evidente: o seu amor pelo jardim - motivo de cobiça na vizinhança.

«O vulto tocou nas rosas, admirou-as, palpando as pétalas com os dedos. Depois, sentou-se ao sol na cadeira e recostou-se. (...) Celestino deixou de querer saber se o espreitavam, se não lhe falavam»

Tendo em conta a idade da personagem e o facto de viver tão atormentado pelo passado, afinal, foi capaz dos comportamentos mais hediondos, a sequência narrativa pode tornar-se um pouco confusa, porque não é linear. Creio que a construção de Celestino é bastante credível, humana. E adorei que o tornasse antagónico: como é que alguém que fez coisas terríveis tem esta sensibilidade toda para cuidar das suas plantas e amá-las? Contudo, estava à espera de encontrar uma escrita um pouco mais acessível, com outra abordagem, para ser mais simples de acompanhar a evolução.


maremoto

Maremoto é uma história vulnerável, triste e poética, que nos inclui nas trivialidades do quotidiano, no mesmo compasso em que nos desarma através de pensamentos e observações de uma beleza singular. Levando-nos até Lisboa, ficamos a conhecer Boa Morte, um ex-combatente da guerra colonial e arrumador de carros na Rua António Maria Cardoso, e a sua amiga, que vive na Rua do Loreto, na paragem do 28. É ao tentar arrumar a sua vida que ele vai escrevendo cartas a uma filha que não conhece.

Apesar de todas as micro catástrofes que pautam o caminho do protagonista, há um cuidado com o outro que nunca é descurado. Em simultâneo, ao termos acesso à correspondência para a filha, fazendo-a presente nas mais diversas circunstâncias, percebemos o quanto a ama e o quanto lhe pesam as feridas e um passado sombrio, que ditou a ausência. Nesta história, marcada por uma escrita com uma certa musicalidade, a autora obriga-nos a olhar para aqueles que nos rodeiam e a reconhecer a diferença. Aliás, sacode-nos para que a abracemos e, sobretudo, para que compreendamos os pedidos de auxílio. Numa cidade que se reveste de tanta vida, é inconcebível que tantas pessoas permaneçam invisíveis, a viver do que a rua lhes dá.

«Já é tarde para chorar meus erros, foi tarde no instante em que os cometi»

Maremoto confronta-nos com vidas complexas, com o peso da solidão, com as marcas da marginalização, com o impacto da pertença que se manifesta de um modo unilateral. Mas, acima de tudo, mostra-nos que o amor é a bússola que norteia os nossos valores e tudo aquilo que trazemos de mais puro no lado esquerdo do peito.


bruma

Bruma é um duplo fantasioso do escudeiro negro que lia histórias ao pequeno Eça de Queiroz. Ávido leitor «da literatura de cordel» e dos «contos tristes das águas do mar», talvez seja, dos três homens desta obra, aquele que tem uma aura mais misteriosa.

«A floresta era ele. Indicava o caminho, alimentava desgraçados, fazia-lhes companhia, disfarçando com a máscara da solidão que sentiam. Sozinhos, errantes, esquecidos, restava-lhes como família o que traziam dentro, reserva que a floresta esvaziava com o tempo, enchendo-os com o seu ritmo, perigos, sombras e graças»

O que mais me fascinou nesta novela foi, sobretudo, a noção de liberdade, porque Bruma não era livre. Antes pelo contrário, era cativo, vivia submisso, levando-nos a refletir sobre a dignidade humana e, uma vez mais, sobre a invisibilidade e «a amnésia estrutural». Através desta personagem, Djaimilia Pereira de Almeida pretendia mostrar que uma pessoa submissa também pode permanecer livre no seu interior.


em resumo

Já tinha lido a versão independente de Maremoto, por isso, concentrei-me nos outros dois títulos - A Visão das Plantas e Bruma. Embora também tenha gostado de os descobrir, sinto que Maremoto é mais coeso, mais relacionável. Por outro lado, creio que a autora construiu três personagens com quem facilmente poderíamos conviver.

Três Histórias de Esquecimento mostra-nos nuances do mesmo problema, socorrendo-se da memória, do tempo e de estratégias para apaziguar o sofrimento e encontrar rumo.


🎧 Música para acompanhar: Lembrança, Miguel Carmona



Disponibilidade: Wook | Bertrand

Nota: Esta publicação contém links de afiliada da Wook e da Bertrand

Comentários

  1. Mais um para a lista *.* Tenho dois livros da Djaimilia para ler nas ferias e ja os leste :) Adoro os livros da Fundação :)

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    1. Confesso que os da Fundação são os que me têm custado mais a ler, embora sejam curtinhos, por dispersar por tantos géneros. Ainda assim, tem sido uma descoberta interessante
      Boas leituras, minha querida

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    2. Eles têm um catálogo muito interessante

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  2. Parece-me bem interessante! :)

    www.amarcadamarta.pt

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