desvio, ana pessoa & bernardo p. carvalho

Fotografia da minha autoria



Gatilhos: Referência a Famílias Disfuncionais e Luto


Os longos períodos de indefinição, que nos levam a questionar, por um lado, a nossa identidade e, por outro, aquilo que nos rodeia e que julgamos conhecer, não se fazem anunciar: vão-se manifestando em diferentes fases da vida. Por esse motivo, acredito que o livro da Ana Pessoa e do Bernardo C. Carvalho funcione quase como um espelho.


continuar a procurar um caminho

Desvio é uma novela gráfica que nos permite conhecer a história de Miguel, um jovem de dezoito anos, que se encontra naquele limbo estranho entre o fim da adolescência e a entrada na idade adulta. É suposto, nessa transição, sabermos o que estamos a fazer? Ou será que, independentemente dos anos que contarmos, nos sentiremos perdidos? Miguel, num tom fatalista, dirá que somos todos náufragos e talvez não esteja errado.

É verão e o protagonista fica sozinho: os pais e os amigos vão de férias e a namorada pede-lhe um tempo na relação. Em simultâneo, continua a gerir um ano conturbado, com uma perda, uma operação e uma nota menos conseguida. É neste cruzar de situações que sentimos o seu desencanto e, acima de tudo, a sua necessidade de fazer uma pausa. Aliás, existem tantas coisas a mudar à sua volta, tantas alterações que não controla, que apenas quer que algo permaneça igual, para ter alguma estabilidade.

Existe uma sensação de suspensão, mas toda a gente espera alguma coisa: do mundo, daquele dia, de Miguel. E o próprio debate-se com essa dificuldade, uma vez que compreende que há um percurso a seguir e que, inevitavelmente, terá de tomar decisões. Esta gestão, ainda assim, nem sempre é justa e fácil de calibrar, não só porque pode ser um processo inconstante, mas também por demonstrar que não estamos isentos de expectativas - criadas pelos outros e por nós. Como a nossa travessia é feita de inúmeros desvios, teremos de aprender as novas coordenadas.

«E às vezes é difícil perceber onde estamos. Andamos perdidos nas mesmas ruas, nos mesmos labirintos, nos mesmos dramas»

Curioso estar a escrever este texto enquanto tenho o calendário aberto na página de agosto, porque contém a seguinte frase a acompanhar uma ilustração: «Viver no presente e confiar no futuro». Em que é ela se relaciona com o livro? Porque sinto que o Miguel nem estava a viver um, nem estava a confiar no outro. Estava, isso sim, tão preso às suas divagações e às suas angústias, que isso o deixava a deambular num tempo próprio, só dele, quase como se se movimentasse num plano exterior, fora do corpo. Creio que esta imagem é muito relacionável, porque já passamos todos por isto (ou estamos a passar). Sejam mudanças mais ou menos expressivas, já todos fomos confrontados com esta impressão de desnorte, que nos obriga a reconsiderar tudo. Sem qualquer juízo de valor, é uma história que retrata uma realidade transversal.

Com uma escrita introspetiva e um ritmo mais lento (e necessário), acho fascinante como a arte gráfica contrasta com os sentimentos do protagonista: o seu discurso é melancólico, enquanto o desenho explode de cor, mostrando a dicotomia do seu presente; mostrando como as ruas e os dias se revestem de movimento, enquanto as palavras tornam claro que o jovem se isola em si, mesmo quando sai e vai viver. Ana Pessoa e Bernardo P. Carvalho combinam na perfeição e aqui está mais uma prova.

Nós vamos travando várias batalhas connosco, por uma infinidade de razões, mas também acho que há um momento em que conseguimos respirar e ter alguma lucidez - caso não seja possível fazê-lo sozinhos, procurar ajuda profissional deve ser uma prioridade, sempre que possível. Acho que este livro também nos empatiza para esse cenário, porque parece que temos de ter tudo resolvido ao segundo, mas não é verdade. O Miguel sentiu-o na pele e nós revemo-nos nele, porque já estivemos (ou estamos) no seu lugar. Afinal, continuamos todos a procurar o nosso caminho.

Desvio explora os medos, a angústia, a procura por um sentido. Embora seja indicado para um público mais adolescente, sinto que também se encaixa numa faixa etária mais velha, atendendo a que não há bem uma idade para nos sentirmos à deriva, para precisarmos de nos desviar da estrada que estamos a percorrer. Ainda hoje, existem momentos em que sinto que também tenho uma ilha no coração. E isso talvez seja uma boa definição para o que é crescer. Portanto, este é mais um dos livros que ficam.


🎧 Música para acompanhar: Desavindos, Deolinda & Foge Foge Bandido



Disponibilidade: Wook | Bertrand

Nota: Esta publicação contém links de afiliada da Wook e da Bertrand 

Comentários

  1. Gosto tanto de novelas graficas *.* Vou guardar esta sugestao :)

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    1. Acho que ias gostar de ler esta! Boas leituras, minha querida

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  2. Nunca me experimentei novelas gráficas, mas fiquei com vontade de saber mais sobre a história do Miguel.

    Beijinho grande, minha querida!

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    1. Estou cada vez mais rendida ao género, aconselho imenso! Acho que conseguimos ter o melhor de dois mundos: a leitura do texto e as ilustrações que nos transportam para a ação.
      Sou suspeita, mas vale bem a pena descobrir

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