UMA SURPRESA CHAMADA ANA PESSOA
[inclui uma reflexão sobre ler mulheres e a minha opinião sobre os livros Mar Negro, Mary John, Aqui é Um Bom Lugar
& O Caderno Vermelho da Rapariga Karateca]

Fotografias da minha autoria



«Mas ela era uma daquelas pessoas que brilham no escuro»


As primeiras referências literárias femininas que tive foram Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada, graças à coleção Uma Aventura. Há muitos títulos que me faltam, mas as narrativas abriram portas para um mundo de possibilidades. É certo que a minha relação com a leitura demorou a florescer, mas tenho procurado torná-la consciente das minhas fragilidades: não no sentido de correr atrás do prejuízo, mas de diminuir distâncias.

Ler mulheres tornou-se, neste comprimento de onda, um processo de escolha intencional, propositado. Quando era questionada sobre os meus autores favoritos, a resposta surgia sempre no masculino e, embora não me aflija, porque MEC e Afonso Cruz são extraordinários, fiquei a pensar nos motivos para não ter nomes femininos debaixo da língua, com exceção de Sophia, e compreendi que andava a ler poucas mulheres.

Na música, por exemplo, nunca verifiquei esta discrepância, mas na literatura sim, na literatura esse fosso era maior. Enquanto mulher que escreve, quero rodear-me de autoras que me inspirem, que se tornem numa referência consistente, que me mostrem o mundo de perspetivas que sinto na pele - ou que possam ser próximas. Por isso, fui à procura dessa realidade, até que se tornou natural olhar para as estantes e ver uma representação mais equilibrada. Não quero deixar de ler homens, quero cruzar-me com mais vozes femininas.

Enquanto mulher que lê, também quero quebrar o estigma e contribuir para um elo de sororidade. Não acredito que o género seja sinónimo de qualidade ou de ausência dela, mas torna-se cansativo ter de combater a imagem de uma escrita leve, com temas superficiais, quando a história é assinada por uma mulher. Se isso poderá acontecer? Claro. Mas também há homens a seguir o mesmo registo e não lhes é imposto esse rótulo. E ainda bem, podíamos era evitar a dualidade de critérios. Portanto, quando decido ler uma escritora, sei que continua a ser um ato de afirmação, sei que também é um convite para verem como há tantas mulheres incríveis na literatura. Imaginem a quantidade de vozes que perdemos por alimentarmos estereótipos.

Hoje, quando me questionam sobre os meus autores de referência, tanto o MEC, como o Afonso Cruz são mencionados, mas não vêm sós: a título de exemplo, Dulce Maria Cardoso, Filipa Leal, Susana Amaro Velho, Rita da Nova, Djaimilia Pereira de Almeida surgem lado a lado, com a mesma facilidade e importância.

Foi através deste compromisso de aumentar a lista de escritoras que leio que me cruzei com Ana Pessoa. Quando vi a alusão a Mar Negro, estava longe de imaginar o impacto das suas palavras e, ainda assim, escalou rapidamente para as surpresas do meu ano. De um ponto de vista racional, sei que não sou o público-alvo das suas obras, mas acredito que a qualidade de um livro também se mede pela capacidade de nos agregar, de nos fazer sentir acolhidos, como se lhe pertencêssemos. E eu senti que pertencia às suas histórias.

No decorrer deste ano letivo, percebi que havia um excerto de Mary John num manual de 9º ano de Português e rejubilei de alegria. Acho que o grupo a quem dou explicações não percebeu o entusiasmo, mas isso não me demoveu. Já tive a idade deles e, na altura, ainda não tinha descoberto a magia da leitura, no entanto, se tivesse analisado textos com esta proximidade, que retratam dilemas sociais/emocionais iguais aos meus, teria sido mais prazeroso. Não lhes quero impor um caminho, mas, às vezes, gostava de lhes conseguir explicar a sorte que têm por poderem crescer com estas referências. Quem sabe, um dia não teremos essa conversa.

O objetivo desta publicação era focar-me nos livro que li da autora, mas precisei de uma contextualização emocional sobre ler mulheres, porque acredito que ela traz esperança, porque acredito que é mais uma voz a quebrar barreiras e a mostrar que merecemos estar neste lugar - e, sim, escrevo no plural porque ainda não desisti de lá chegar. Nomes como o da Ana Pessoa motivam-me a continuar, a fazer das palavras um lar.

Até ao momento, li quatro livros da sua autoria e é sobre eles que escrevo de seguida.


MAR NEGRO


Gatilhos: Morte, Relações Tóxicas, Cenas Explícitas

Mar Negro é o 100º livro editado pela Planeta Tangerina e volta a reunir Ana Pessoa e Bernardo P. Carvalho, numa novela gráfica que aborda o tema da identidade. Transportando-nos até ao Conchas, o bar da praia onde trabalham os protagonistas (e que é o cenário da cena final de Desvioa obra anterior desta dupla), ficamos a conhecer JP, Inês e tudo aquilo que os diferencia, até que um acontecimento dramático acaba por os unir.
[para não me repetir, podem ler a opinião completa nesta publicação]


MARY JOHN


Gatilhos: Linguagem Explícita

A adolescência pode ser um lugar turvo, que nos deixa à deriva, sobretudo, quando procuramos descobrir quem somos e nos sentimos a gerir um turbilhão de sentimentos. Conforme vamos crescendo, aprendemos a relativizar algumas situações, mas, nesta faixa etária, há muitas emoções à flor da pele, tudo é mais intenso e isso também se percebe no livro de Ana Pessoa - cuja obra quero ler toda.

Mary John é uma longa carta dirigida a Júlio Pirata, na qual Maria João, a protagonista, faz um balanço de tudo o que viveram juntos. O relato é melancólico, é engraçado, é comovente, por esse motivo, transforma-se numa viagem de reencontro, de despedida, de mudança e, inclusive, de catarse. Acho que a Andreia adolescente teria beneficiado de um livro assim, porque é um retrato verosímil do desnorte, da dificuldade que é construirmos a nossa identidade, do impacto que certas relações/pessoas têm na nossa vida e do quanto parecem pairar em todos os nossos passos.

Numa travessia entre o passado e o presente, é evidente que são mais as ocasiões em que nos debatemos entre aquilo que desejávamos que acontecesse e a necessidade de esquecer alguém. É um processo complexo, com várias recaídas e sombras, portanto, sentimos que «o mundo é muito grande e muito pequeno. A vida é muito longa e muito curta». Neste limbo, talvez nem tudo seja para perceber, mas arranjaremos forma de unir as pontas soltas.

Mesmo que já não nos encontremos na faixa etária da personagem principal, é fácil recuarmos no tempo e sentirmo-nos representados, porque, de uma maneira ou de outra, todos nós já lidamos com o desgosto, com a saudade, com os estilhaços de um coração ferido. Maria João dá-lhes voz e leva-nos nas suas palavras.


AQUI É UM BOM LUGAR


A escrita de diários também acompanhou a minha adolescência, porque sempre adorei escrever e, sobretudo, porque sentia que o caderno era um espaço seguro, onde podia depositar pensamentos e emoções que não me apetecia partilhar com mais ninguém. Neste formato, não havia filtros e nem tudo precisava de ser entendido, isso ficava para mais tarde.

Neste livro, temos acesso ao diário de Teresa Tristeza, com observações sobre vários temas, com diferentes formas de escrita, de desenho, de narração, num processo evolutivo, que demonstra bem como a nossa personalidade se molda consoante ficamos mais conscientes de quem somos e do que nos rodeia - ou como há retrocessos, quando enfrentamos pequenas crises de identidade.

Li Aqui é Um Bom Lugar num sopro, contudo, acho que há muitos pontos com os quais nos conseguimos relacionar. Já não tenho dezassete anos, mas tentei pensar na pessoa que era com essa idade e era provável que manifestasse alguns dos dilemas aqui representados - essa transversalidade não só é comovente, como também demonstra que andamos todos a derrubar os mesmos muros. Com atenção ao detalhe, ao mundo que a rodeia, à capacidade de se espantar, é um retrato muito humano, cheio de camadas, referências literárias e familiares. No meio de tantas dúvidas e descobertas, é mesmo um bom lugar.


O CADERNO VERMELHO DA RAPARIGA KARATECA


Gatilhos: A Adolescência

A escrita, para alguns, é um aborrecimento. Aliás, os escritores, no mínimo, devem ser «as pessoas mais secantes do mundo». Mas, depois, há quem encontre no meio do aborrecimento um certo gosto pela arte de escrever. E foi esta espécie de epifania, ainda que subtil, que se manifestou na protagonista deste livro.

A N é karateca, está na transição dos 14 para os 15 anos e tem muita graça. Eu não sou karateca e arrisco-me a dizer que, com a idade dela, não encadeava os meus pensamentos com tanta destreza - ou com tantas ramificações. A imaginação sempre teve espaço para se desenvolver, mas, se calhar, não me permiti validar pensamentos que, à partida, não faziam assim tanto sentido. A N fê-lo e ainda bem: porque pode ajudar a que tantos jovens se sintam representados e, melhor, compreendidos. Por outro lado, há algo que partilhamos: o fascínio por cadernos, pela página em branco, pelos mundos novos e pela ideia «de qualquer coisa por ser».

Estou cada vez mais rendida à autora, porque consegue criar cenários transversais, mesmo que a nossa faixa etária já não seja a mesma das personagens. Além disso, nestas páginas, temos um universo inteiro para descobrir. Temos muitas histórias, imaginação e uma viagem de autodescoberta. Temos a banalidade dos dias e sentimentos que arrebatam. Temos uma certa dose de rebeldia, de insegurança, de «páginas movediças» e alguns sonhos. Para além de tudo isto, encantou-me a lealdade de N, que resgatou aquele que se tornou o seu objeto favorito. Este livro tem um tom autobiográfico, por isso, a leitura acabou por ser ainda mais credível.

A vida pode ser feita de manifestações caóticas, de vivências que nos deixam o coração acelerado, mas também tem muitos apontamentos bonitos nas coisas mais simples. Teria gostado, na minha adolescência, de ter tido um caderno vermelho como este, que não é um diário, mas que podia ser tudo aquilo que eu quisesse.

8 comments

  1. Identifiquei-me imenso com a tua reflexão, porque também eu raramente apresento nomes femininos de autores preferidos. Fiquei com muita vontade de conhecer a obra da Ana Pessoa.
    Vou guardar as tuas sugestões para ler em 2024.
    Beijinho grande, minha querida.

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    1. Obrigada, minha querida 💜 foi um exercício de consciencialização que me permitiu descobrir autoras incríveis. Espero que também consigas descobrir as tuas inspirações.

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  2. Mais uma autora para descobrir em 2024. Muito obrigada pela partilha, minha querida *.* É sempre bom valorizar o trabalho das mulheres e a escrita pode ser a nossa voz como forma de divulgacao. Como ja te disse na adolescencia li a coleçao toda de Uma Aventura da minha melhor amiga, durante um Verao inteiro e ainda hoje tenho boas referencias das duas escritoras *.*

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    1. Há autoras tão incríveis, é mesmo um desperdício não serem mais valorizadas!
      Aconselho muito, minha querida
      Tão bom termos estas referências 😍

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  3. Que me parece ser mais uma boa sugestão de livros para se conhecer, mas nem sempre acabamos por conhecer tudo no meio de tanto livro que é lançado no mercado
    Beijinhos
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    1. Sou suspeita, mas recomendo todos 😊 sim, é verdade, nem sempre é fácil acompanhar todas as novidades

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