LIVROS PEQUENOS, MENSAGENS GIGANTES (II)

Fotografia da minha autoria



«(...) a ficção é uma necessidade»


O impacto de um livro não se mede pelo número de páginas que tem e é por isso que existem obras relativamente pequenas que continuam a ecoar na minha memória. Conseguir construir uma narrativa com poucas palavras é uma arte que me fascina, até porque preserva o ritmo certo e a capacidade de emocionar.

Em setembro, cruzei-me com um exemplar que encaixa neste grupo de livros pequenos com mensagens gigantes. Na reta final de 2023, descobri mais três. Assim, para não revelar demasiado, decidi agrupá-los.


SAL, JOÃO ANDRADE


A fotografia desta novela gráfica apareceu-me numa publicação no Instagram e despertou-me curiosidade. A capa é apelativa, enigmática pela expressão do rosto, mas foi o tema que me impulsionou a lê-la.

Sal é uma jovem de 14 anos, que vive na Ilha da Madeira com os pais. O ambiente familiar negligente implicou a intervenção da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens. De modo a conseguirem analisar o caso, o tribunal decidiu retirá-la para uma casa de acolhimento temporário. Confesso que houve algumas partes que achei um pouco confusas e a necessitarem de uma contextualização mais clara, no entanto, a forma como aborda uma realidade, por vezes, desconhecida, a forma como dá voz aos desafios que muitos «dos jovens enquadrados nessa realidade enfrentam» é uma chamada de atenção vital.

Num contexto negligente, onde impera a revolta, as oscilações de humor, o medo, a vergonha, até a culpa, esta obra deixa-nos a pensar sobre aquilo que se passa a dois palmos de nós e nós não vemos, sobre os traumas que encontram ainda mais conforto na dor, sobre as vidas que ficam desfeitas. Há muitas áreas cinzentas nestas personagens e achei isso interessante, porque quebra certos estereótipos.

Este é o primeiro volume e creio que existirão mais segredos. Fiquei com vontade de ler mais - não só para saber o desfecho, mas também pela possibilidade de ver desfeitas as dúvidas que ficaram por esclarecer.


LEVA-ME AO TEU LÍDER, AFONSO CRUZ


A Missão Democracia, coleção de livros ilustrados para crianças lançada pelo Parlamento, surge a propósito dos 50 anos do 25 de abril de 1974 e pretende abordar vários temas. Afonso Cruz é o autor do terceiro.

Leva-me ao Teu Líder parte de uma premissa simples, mas intrigante : o encontro entre um menino e um extraterrestre. A partir desse momento, encetam um diálogo sobre a «forma como cada um deles vive» e sobre os seus líderes. Atendendo a que o visitante não percebe o conceito de viver em sociedade, ainda para mais, «numa sociedade em que as decisões não são tomadas por uma única pessoa», o menino mostra-lhe essa realidade, em todos os compartimentos que «definem a sua essência».

Assim, conversam sobre eleições, sobre multidões que se manifestam na rua, sobre representação e sobre a importância de fazer perguntas, porque são elas que promovem a democracia. Aproveitando questões como «o que querem comer?», explora-se o seu significado, ao mesmo tempo que se destaca a universalidade dos direitos humanos, da própria dignidade humana e do quanto é fundamental «manter viva a plasticidade da democracia, para diminuir injustiças e assimetrias».

Neste livro, temos duas histórias a serem contadas em simultâneo: uma através das palavras, outra através das ilustrações. É na sua simbiose que os conceitos se tornam reais e que nos fazem sentir como parte de um todo. Nenhum deles «é uma invenção moderna», mas qualquer um deles pode ser comprometido.


O PRINCIPEZINHO E A MULHER MAIS FEIA DO MUNDO, AFONSO CRUZ


O Principezinho foi um dos primeiros livros que li e continua a ser um favorito de vida: pela delicadeza e pela intemporalidade. No entanto, há sempre um contraponto e é isso que Afonso Cruz traz para este ensaio.

O Principezinho e a Mulher Mais Feia do Mundo parte de um problema ético: «Quando o principezinho diz que são os laços criados com o Outro que importam e que é por eles que lutamos, nos trocamos, damos a vida, o que acontece a todos os seres que sofrem mas com os quais não criamos laços?». Nunca tinha analisado as coisas desta perspetiva, mas é uma questão pertinente. É aceitável o seu sofrimento? Não merecem a nossa empatia? Serão os seus problemas menores? Acho natural que nos magoe mais a dor dos nossos, por isso é que os vínculos que estabelecemos com eles têm esta magnitude, que tanto nos envolve em felicidade, como nos parece sufocar - ou deixar num estado de impotência, quando queremos ajudar e parece que não há algo que possamos fazer -, mas não deveríamos tentar ser mais isentos, enquanto sociedade?

O texto foi escrito em torno de uma ideia de justiça, a convite das Comédias do Minho, mas torna-se evidente que, embora o amor, a empatia ou qualquer outra emoção ajudem a corrigir o mundo, nunca poderão ser justas, porque haverá sempre «uma rosa mais importante», porque esta visão será sempre condicionada pelos nossos sentimentos. E, na maior parte dos casos, nem existe uma tentativa de diminuir os outros, é apenas uma maneira de cuidarmos daqueles que, ao descermos a montanha, percebemos que são a nossa raiz.

Em simultâneo, Afonso Cruz trouxe para a discussão a mulher mais feia do mundo, uma vez que «a beleza é uma conversa» e que complementa a ideia dos laços explorada por Saint-Exupéry. Há uma certa complexidade neste tema, porque a beleza depende de vários fatores, a começar pela ligação que estabelecemos com as pessoas. Cada um de nós tem um conceito de beleza ou fealdade interiorizado, mas a fronteira que os separa nunca é clara. Aquela pessoa pode, visualmente, ter um rosto que considero bonito, mas se tiver comportamentos inadequados passarei a olhá-la de outra forma. No fundo, é como se se transfigurasse, como se nunca a tivesse achado bonita. Este ensaio está muito interessante e mostra-nos que, nestas questões, não é a racionalidade que tem a palavra final: são os laços que criamos e que nos cativam.


ESTE INVERNO, ALICE OSEMAN


Gatilhos: Distúrbios Alimentares

Uma narrativa que nos permite refletir sobre a pressão que «a época mais mágica do ano» pode exercer, as dinâmicas familiares e o quanto um distúrbio alimentar não afeta só a pessoa, mas todos à sua volta.

Gostei que este livro apresentasse três perspetivas diferentes, mas acho que também beneficiaria se tivesse a voz dos pais - principalmente, a da mãe -, porque talvez nos ajudasse a compreender melhor as suas angústias e comportamentos; talvez nos ajudasse a perceber determinadas reações.

Os momentos em família nem sempre são um ponto de conforto e os motivos podem ser os mais diversos: podem existir incompatibilidades, pode existir falta de interesse, pode existir desconhecimento. Seja como for, nenhuma relação deve ser unilateral, deve existir comunicação, honestidade, cedência e respeito mútuos. Por mais complicado que seja, por mais que queiramos que os outros nos compreendam, não é justo pedir-lhes isso se não lhes mostrarmos como. Acredito que esta história contribui para encontrarmos esse equilíbrio.

Comentários

  1. Não vou ter espaço para tantas sugestões boas.
    Fiquei curiosa com o livro Sal e o do Principezinho.
    Beijinho grande, minha querida!

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    1. Revi-me totalmente nessa primeira frase. Culpada ahah
      Duas narrativas muito interessantes

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  2. Só boas sugestoes *.* Gosto muito do Principezinho :) E quero muito ler Este Inverno *.*

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  3. Respostas
    1. Aconselho, lê-se muito bem. Caso ainda não tenhas lido, também tens acesso ao primeiro capítulo de Solitário

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  4. Que acaba mesmo por ser umas boas sugestões para se ler
    Um Feliz Natal
    Beijinhos
    Novo post
    Tem Post Novo Diariamente

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