ONDE PARECE CABER O MUNDO INTEIRO
[livros de Valter Hugo Mãe, Dulce Maria Cardoso, Guilherme Fonseca, Miguel Esteves Cardoso, Ondjaki e Bruno Nogueira]

Fotografia da minha autoria



«Ler é uma paixão que me acompanha»


É sempre um pouco injusto escrever sobre determinados subgéneros literários, como é o caso dos contos, das crónicas e, até, do texto teatral. Penso já ter partilhado este pensamento antes, porque se revestem de um toque mais pessoal, principalmente as crónicas, ou restrito, dificultando a construção do nosso parecer.

Enquanto leitora, não me interessa analisar a narrativa de um ponto de vista técnico, porque não tenho conhecimento académico para tal, mas importa-me refletir sobre os temas presentes, sobre as emoções que a narrativa desperta, sobre os vínculos que se criam (ou não). E gosto muito de escrever sobre isso. Quando o faço sobre livros de contos ou de crónicas - teatro não é usual -, sinto sempre que estou a um passo de revelar em demasia, portanto, policio-me nesse sentido, para não estragar a experiência de leitura a alguém. Por consequência, tendo a desenvolver menos a minha opinião, preferindo compilá-las numa publicação única.

Como sinto que parece caber o mundo inteiro nestes livros, fez-me todo o sentido agrupá-los, mesmo tendo um pouco mais a dizer sobre cada um deles. Além disso, curiosamente, há pontos que acabam por se cruzar.


CONTOS DE CÃES E MAUS LOBOS, VALTER HUGO MÃE


Gatilhos: Morte, Luto

Os detalhes guardam mundos infinitos, tecidos a sonhos, a imaginação e a corações fragmentados, porque tudo isso faz parte. No seu jeito particular de contar histórias, Valter Hugo Mãe desarma-nos pela sua prosa poética e por enaltecer cada um desses detalhes - dos mais transformadores aos mais banais.

Nestes contos, acompanhados por ilustrações de diferentes artistas, são várias as vidas que nos abraçam e que nos levam a refletir sobre uma série de questões. De olhar atento, o autor parece contar a nossa história e ler-nos a alma, mesmo quando se distancia do nosso quotidiano. Mia Couto, no prefácio, referiu que há algo na escrita de VHM que «nos desconcerta e fragiliza» e é bem verdade, até porque nos convida a revisitar o passado, a escutar silêncios, a ultrapassar fronteiras, para questionarmos as «nossas certas mais fundas».

É sempre maravilhoso regressar às suas palavras.


AUTOBIOGRAFIA NÃO AUTORIZADA, DULCE MARIA CARDOSO


Gatilhos: Referência a Morte, Aborto e Pandemia

Este livro compila as crónicas que saíram na Visão, cuja intimidade e transparência são transversais a cada uma delas - e, em boa verdade, a cada um de nós, visto que reflete sobre assuntos que nos são próximos.

Assim, nestas crónicas, faz-nos transitar entre vários cenários e sensações, como se estivéssemos sentados ao seu lado, numa conversa que se desenrola entre amigos. Comovi-me, particularmente, com os textos que escreveu sobre a mãe, uma vez que incorporam diferentes declarações. De uma maneira ou de outra, há um traço de saudade que se repete e é impossível não nos revermos. Depois, surge tudo com equilíbrio, nem demasiado cru, nem demasiado lamechas: há emoções nas doses certas, tornando a partilha mais honesta e sem filtros. Conhecer as suas histórias, o seu percurso, as suas perdas e os seus medos reforça um vínculo de empatia. É sempre transformador lê-la, porque Dulce Maria Cardoso é uma contadora de histórias nata.


QUE POUCA VERGONHA, GUILHERME FONSECA


Gatilhos: Pessoa que se acha com imensa graça, mas que deveria ter vergonha na cara

Este livro deu-me muitas coisas: Em primeiro lugar, deu-me a ofensa, porque ainda escrevo à mão e senti-me atacada; em segundo lugar, deu-me o conforto da representatividade, porque pessoas que não param de dar toques no nosso braço durante as conversas também me irritam profundamente; em terceiro, deu-me um dos textos mais incríveis de sempre: Eu que não sei ser tio. Eu nunca o serei, visto que sou filha única. O mais próximo que tenho deste cenário é o facto de ser madrinha. Quando recebi o convite, acho que pensei o mesmo: eu não sei ser madrinha. Ao fim de 16 anos, talvez continue sem saber. Mas uma coisa é certa: continuo aqui, a dar o meu melhor, para que o meu afilhado saiba que poderá contar comigo para tudo.

Que Pouca Vergonha centra-se, então, nas pequenas e insignificantes questões que movem a sociedade. É por essa razão que divaga sobre pessoas que dobram sacos em triângulos, pessoas que estão viciadas em true crime, pessoas que tomam banho de imersão, entre tantas outras. No fundo, visa-nos a todos e a ele na mesma medida, porque também se foca na «sua própria estupidez». Já tinha adorado Deve Ser, Deve, mas parece-me que conseguiu brilhar ainda mais nesta obra. O Guilherme tem imensa graça e acho que isso está à vista de todos, mas deixem-me só evidenciar outro aspeto: a capacidade que tem para equilibrar o humor e a comoção. Não força a piada, nem procura emocionar-nos, mas isso acaba por ser natural naquilo que escreve. Além disso, as observações que desenvolve são exímias e um exercício criativo muito interessante.

Eu sei, é uma pouca vergonha estar a elogiá-lo desta maneira, ainda assim, não podia fugir desta sina.


ESCRÍTICA POP, MIGUEL ESTEVES CARDOSO


Gatilhos: O risco de criticar artistas que adoramos

Escrítica Pop compila duas obras numa só: Escrítica Pop, que dá nome ao livro, e O Ovo e o Novo, «um texto pouco conhecido», mas que é «um dos melhores guias musicais», talvez por não ter a pretensão de analisar esta arte de um ponto de vista técnico; talvez por ter sido escrito pelo MEC, que tem visões fascinantes sobre assuntos plurais, mesmo quando estamos em desacordo - aprecio essa dinâmica: alguém que, através da escrita, me transporta para as suas observações sobre o mundo e me mostra possibilidades distintas.

Nas páginas deste livro, avancei pela discografia do Rock (entre 1970 e 1980), vi a sua fusão com outros géneros, percebi «as limitações não reconhecidas e as criatividades interrompidas»; assisti ao declínio de bandas de renome, a exemplos de vaidade, à luta entre a qualidade e a quantidade e à incapacidade manifesta de lutar contra o conforto, que levou ao desaparecimento de tantas bandas, porque se limitaram a repetir fórmulas. Por outro lado, temos acesso a crónicas dedicadas à carreira de músicos/grupos específicos. E deixem-me só referir que a segunda sobre Amália Rodrigues é um pedaço de amor. Porque Miguel Esteves Cardoso tem um sentido de humor acutilante, irónico, mas também consegue puxar ao sentimento.

O autor teve a oportunidade de rever o que escreveu há quarenta anos e acho interessante que também seja percetível a admiração por haver músicas dos anos 70 e 80 que continua a ouvir, porque sinto que esta noção é transversal e agregadora: todos nós temos exemplos que permanecem inabaláveis nas nossas playlists. E partilhar isto não deixa de ser um ato generoso, um ato de confiança para com o outro. É um livro para voltar.


OS VIVOS, O MORTO E O PEIXE FRITO, ONDJAKI


Assim que vi a adaptação cinematográfica desta obra, para o projeto Contado Por Mulheres, transmitido pela RTP, fiquei cheia de vontade de ler o texto e não desiludiu. É uma narrativa teatral com muito humor, que tanto dá voz aos «fatores da convivialidade africana em território europeu», como nos permite refletir sobre arrogância, o quanto o futebol move multidões, costumes, memórias, burocracia e saudades.

É um exercício criativo de ficção, mas que cativa pelos elos que se criam entre desconhecidos. Acho que existe uma pureza nesta imagem que, apesar de todas peripécias altamente surreais, nos comove.


AQUI DENTRO FAZ MUITO BARULHO, BRUNO NOGUEIRA


Gatilhos: Referência a Abusos Sexuais

As palavras pesam, mas também têm o dom de nos deixarem mais leves. São impulso e são conforto. São uma forma de tornar os nossos pensamentos mais justos, mais lúcidos, mas também nos comovem. E é esta viagem dicotómica, tão bem entrelaçada, que encontramos nas crónicas do Bruno Nogueira.

Fui sem bagagem, porque não as tinha lido na Sábado, e acho que foi melhor assim, visto que consegui desfrutar da novidade, do espanto que é lermos alguém que admiramos e que, em 2/3 páginas, nos desperta tantas emoções e pontos de reflexão. Preparar este livro fê-lo perceber que as coisas dentro da sua cabeça fazem muito barulho; a mim, ajudou-me a compreender que também partilho desse barulho e que, acima de tudo, nem tudo é ruído: é só uma maneira de nos aproximarmos daquilo que está perto e nos inquieta.

Acho mesmo fascinante a forma como observa o mundo e como não nos apresenta essa visão polida, apenas com cuidado nas palavras. Ri-me muito e revoltei-me na mesma medida. Também me comovi, porque há um traço vulnerável e nostálgico que é transversal, ainda que as nossas vivências sejam distintas. Que bom que é ter Aqui Dentro Faz Muito Barulho na estante e saber que o poderei revisitar as vezes que quiser.

12 comments

  1. Achei esta publicação muito pertinente por nos apresentar livros de um género diferente, mas cheios de conteúdo. Vou guardar esta publicação, para ler estes livros em 2024.

    Beijinho grande, minha querida!

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    1. Nem sempre o faço com a maior regularidade, mas gosto muito de ler livros de contos e de crónicas, sobretudo crónicas, por nos mostrarem várias perspetivas.
      Boas leituras, minha querida

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    1. São mesmo, Francisco, aconselho todos!
      Obrigada e igualmente

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  3. Que me parece ser um bom conjunto de livros para se conhecer e ler
    Beijinhos
    Novo post
    Tem Post Novo Diariamente

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    1. Recomendo :) também podem ser uma excelente opção para oferecer

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  4. Andreia livros com títulos bons , ler é Muito gratificante bjs.

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  5. Neste post estão 3 dos meus escritores portugueses preferidos que ja deves estar a adivinhar alguns deles, VHM, MEC e Bruno Nogueira *.* vamos a ver se o Pai Natal se vai lembrar de me oferecer um dos muitos livros do MEC que estao na minha wishlist da Wook :D Comecei agora a ler o livro do BN e a minha primeira opiniao vai de encontro à tua. Vai ser daqueles livros que vai dar vontade de ler vezes sem conta, pois o Bruno vai de encontro o meu pensamento muitas vezes e eu gosto tanto disso. *.*

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    1. E que trio maravilhoso esse 😍
      Espero que o Pai Natal seja mesmo generoso, porque receber livros do MEC é sempre valioso.
      É incrível, não é? Não consiga parar de ler o livro dele!

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  6. Nunca li nenhum, embora já me tenha cruzado com alguns. :)

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