ESTANTE CÁPSULA ◾ LEME, MADALENA SÁ FERNANDES

Fotografia da minha autoria

«Com os primeiros gritos da noite vinha o susto»

Gatilhos: Violência Doméstica e Psicológica, Luto, Saúde Mental, Linguagem/Cenas Explícitas

A nossa casa deveria ser um porto seguro. Quando há alguém que entra nesse espaço e abala o seu conforto, é de uma brutalidade difícil de gerir e o pior é quando tudo isso se manifesta de um modo violento e constante.

ENTRE A AUTOBIOGRAFIA E A FICÇÃO

Leme é um relato duro de violência doméstica, de uma relação tóxica que marcou o crescimento da protagonista. Durante anos, assistiu «à erosão dos pilares que sustentam as ligações humanas», viveu na pele a desconfiança e as palavras que ludibriam, sentiu o perigo, o desequilíbrio e a obsessão do homem que alimentava um relacionamento disfuncional com a sua mãe. No meio dos destroços, procura reconstruir-se.

«Mas não era um silêncio apaziguador. Era só alívio passageiro, antes de uma possível explosão»

O que mais me fascinou nesta obra, para além da escrita crua, melancólica e vulnerável, foi sentir a dualidade de pensamentos e sentimentos da narradora perante a figura agressora, que também a fazia sentir amada em certos detalhes, porque acredito que esse cenário seja o mais recorrente em crianças que passem por situações semelhantes. No fundo, têm de aprender a separar aquelas duas imagens, como se de duas pessoas diferentes se tratassem. Além disso, recupera partes da vida da própria autora - sem sabermos quais.

«Não é que não houvesse tristeza. Mas também havia o mar, as estrelas e as histórias»

Os capítulos são curtos e leem-se com bastante fluidez, mas não são leves as temáticas, os traumas e as mágoas que transparecem. Ainda assim, reconheço, estava à espera de encontrar um relato mais visceral. Consigo entender que a estrutura proporcione essa quebra, quase como se estivesse a recuperar fragmentos e não ocasiões concretas, mas achei que ia encontrar uma partilha mais intensa - a certo ponto, abre ligeiramente a porta, mas nunca nos deixa entrar por completo. Por outro lado, consigo perceber que tenha seguido esta linha, porque a revolta deu lugar à aceitação, porque as feridas ainda existem, mas parece ter feito as pazes com o passado. Portanto, acho interessante cruzarmo-nos com este ponto de equilíbrio.

«O esquecimento deveria ser o fim do seu nome»

Leme é um turbilhão, num constante antagonismo entre o bem e o mal, entre a esperança e as trevas, e cuja violência psicológica, creio, tem mais peso do que aquele que aparenta. Em simultâneo, combina memórias ternas e ciclos tóxicos que se repetem, por mais que a vida avance, porque há quem nos marque para sempre.

🎧 Música para acompanhar: Turbilhão, Toquinho & Vinicius

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