Entre Margens

Fotografia da minha autoria



A minha lista para a Feira do Livro do Porto, à semelhança do que aconteceu em 2023, incluía um livro escolhido pela Sofia. Inicialmente, ela tinha pensado noutro exemplar para mim, mas foi preciso ajustar e, assim, voltei ao mundo de Ondjaki, do qual já tinha saudades.


 um livro de pessoas

Os Transparentes retrata a «Luanda atual do pós-guerra, das especificidades do seu regime democrático, do "progresso", dos grandes negócios, do desenrasca». E fá-lo através do que faz pulsar a sua história: as pessoas.

A riqueza deste livro passa, claro, pela capacidade imaginativa do autor, exímio contador de histórias, mas acima de tudo pelas personagens tão antagónicas, tão humanas, tão credíveis. São elas que dão corpo e alma a diferentes grupos sociais, às desigualdades, ao sentido de comunidade, à pertença. Num universo muito marcado por tantas disparidades, é impressionante como impera o amor, a irmandade, o espírito de resiliência.

«- você vem calado de triste ou calado de pensar no coração?»

Estas páginas também são feitas de dor, de injustiças, de desumanidade, mas é apaixonante perceber como cada uma destas pessoas prefere viver, encontrar alternativas e ser a força que impulsiona a avançar, e sem perder a capacidade de rir. E, por isso, este livro é cru, é sarcástico, é cómico e é emotivo. Compreender o significado do título é duro e revolta, mas depois estas personagens têm tanta luz que é impossível não nos agarrarmos a essa imagem, a essa forma de encarar tudo o que lhes acontece.

Os Transparentes não romantiza nada, não obstante, traz saudade, nostalgia e um forte desejo de futuro. Nunca estive em Angola e, de repente, é como se fosse capaz de sentir os cheiros, a agitação, o gingar que nos convida a dançar. É um romance muito realista, que não queremos largar e que nos deixa marcas.


 notas literárias
  • Gatilhos: Morte, violência
  • Lido entre: 9 e 15 de novembro
  • Formato de leitura: Físico
  • Género: Romance
  • Personagem favorita: O coletivo
  • Pontos fortes: A vivacidade e proximidade de cada história, de cada pessoa; ser humano e realista
  • Banda sonora: Minha Terra, Ruy Mingas | Maka, Elias Diá Kimuezo | Velha Chica, Waldemar Bastos | Reencontro, Paulo Flores

Fotografia da minha autoria


A ideia de se prescrever literatura para determinadas maleitas é, por um lado, poética e ligeiramente utópica, mas, por outro, é uma imagem fidedigna do quanto as palavras nos podem nutrir de formas que mais nenhum outro recurso é capaz. Numa dimensão paralela, usar a literatura como escada para mudarmos os nossos hábitos alimentares parece despropositado e, ainda assim, uma estratégia entusiasmante, porque existem acasos transformadores, como podemos comprovar com o protagonista desta história.


 de revelação poética em revelação poética

Dieta da Poesia permite-nos conhecer Bazulaque, «alguém que gosta muito de comer e que come tudo o que pode». Quando não consegue alcançar os potes mais altos, serve-se dos livros para lá chegar, mas, certo dia, sofre um acidente que inverte a narrativa e a sua fome deixa de estar direcionada para a comida e passa a ter as palavras como foco. Numa tentativa de saciar «essa nova fome pela leitura», António de Lousada vê o mundo com mais atenção e, inclusive, «a forma como os outros o veem transforma-se».

É a partir deste momento que a aventura começa, não só porque o protagonista se vai reencontrando consigo e com as suas verdadeiras prioridades, mas também porque se vai cruzando com histórias que o ajudarão a inverter a sua compulsão alimentar. Neste caminho que passa a trilhar, ainda assim, ecoa a noção de que, por vezes, se transita de uma obsessão para outra, o que pode não ser o hábito mais saudável, no entanto, os benefícios que Bazulaque elenca, ao construir uma dieta tão particular, demonstram resultados. E sinto que isso se deve, em grande parte, à sua mudança de mentalidade.

De revelação poética em revelação poética, conhecemos personagens secundárias que embelezam a travessia e que acrescentam uma pitada delicada — ora doce, ora amarga — à certeza de que a literatura nos deixa com mais saúde física e mental. Mas a magia deste livro, para mim, não está na dieta, nem no ato de emagrecer, está no modo como um segundo de espanto planta uma semente de mudança, como uma decisão nos pode libertar ou aprisionar, como, por vezes, estamos conscientes da verdade e preferimos acreditar numa ilusão que nos apazigua o medo, a dúvida, a ausência, a dor; está no modo como todas as nossas camadas reaparecem como se despíssemos uma magnólia.

«(...) de repente, o Bazulaque descobriu a adolescência, não porque as suas hormonas o ditavam, mas porque a poesia o despertava e o transformava»

Apaixonada por palavras desde que aprendi a combinar letras, este livro escalou muito rápido para um lugar especial. Talvez não entre nos favoritos dos favoritos do autor, mas sei que dificilmente esquecerei a paixão com que Bazulaque abraçava os acasos, os pequenos milagres, as coincidências, os pedidos mais inusitados. Porque há, aqui, um sentido de humanidade e comunidade impressionantes, há um cuidado com o outro que comove e que nos mostra que o melhor lado da vida é este que se constrói em laços sociais. Sinto que Afonso Cruz trouxe o ânimo das palavras e a certeza de que a prosa e a poesia fazem muitas perguntas sem terem a obrigação de dar qualquer resposta, porque trazem algo mais importante: mater-nos em movimento constante.

Dieta da Poesia é uma narrativa que se lê num sopro e que se revela encantadora por interligar imaginação, humor e fragmentos para reflexão, porque a literatura condensa todos estes ingredientes e tem o poder de nos transformar por dentro. Ademais, creio que é uma história que nos mostra que nos agarramos sempre ao que nos alimenta, ao que nos dá alento. A vida está cheia de angústias, de vazios e de áreas cinzentas e isso pode ser um excelente gatilho para a escrita, mas a poesia — e a literatura, no geral — também se pode transformar a partir da alegria. Entre a crise e o deslumbramento, é uma obra que evidencia as dualidades do ser humano e a vontade de saciar essa fome.


 notas literárias
  • Lido a: 8 de novembro
  • Formato de leitura: Físico
  • Género: Romance
  • Pontos fortes: Os detalhes, a construção do livro, a escrita sempre fabulosa
  • Banda sonora: Comida, Slow J | Águas de Março, Elis Regina & Tom Jobim | Postcards From Italy, Beirut | Tudo no Amor, Clã | Pode Chover Um Poema, Flor-de-Lis

Fotografia da minha autoria


A minha relação com os livros de Afonso Reis Cabral tem sido irregular: por um lado, adorei a sensibilidade de O Meu Irmão, mas, por outro, fiquei desiludida com o tom de Pão de Açúcar. E fui adiando o reencontro, até que o mais recente chamou por mim.


 abrir o quarto trancado

O Último Avô centra a sua ação num prestigiado escritor português, Augusto Campelo. Quando este decide «queima[r] o manuscrito no qual trabalhou durante anos», não só deixa uma aura de mistério a pairar, como também abre a porta a feridas antigas, até porque o neto, «herdeiro do nome e da memória familiar», assume a missão de tentar descobrir a verdade, quer em relação à «experiência traumática da Guerra Colonial», quer em relação às motivações que deram origem a este gesto tão definitivo do avô.

As perguntas sucedem-se, quase em simultâneo, de uma assentada, como se houvesse a necessidade de preencher silêncios e vazios com urgência, porque as dúvidas vão-se tornando maiores à medida que o neto cresce e entende as ausências, querendo atar os nós de uma história que, para ele, permanece por contar. Sendo essa dor visível, oscila entre a imagem que construiu do avô e aquela que se vai revelando conforme descobre quem foi Augusto: na guerra, nas conversas com a filha, nos segredos que não contou a mais ninguém, na escrita e na identidade que foi cimentado, talvez, para se proteger.

Palmilhar este terreno pantanoso abriu «um quarto trancado na casa», atravessando a «intimidade de três gerações». O mais fascinante é que, vivendo em tempos distintos e tendo acesso a diferentes partes da mesma pessoa, avô, filha e neto sofrem todos com a ausência, com a complexidade das relações, com o peso de escolhas exteriores a si — sobretudo a filha e o neto. Aliás, é curioso acompanhar o narrador a traçar o retrato da mãe, cuja presença lhe foi negada precocemente, através das memórias e perceber que Campelo tem o mesmo comportamento: um fâ-lo pelas saudades, enquanto o outro o faz pelas saudades e pelo sentimento de culpa. Portanto, pouco a pouco, há camadas a serem desbravadas neste caminho curvilíneo, surpreendente e de emoções ambíguas.

«O enamoramento é primeiro uma libertação, uma fuga. Já não queria guardar-me dentro de mim mesmo. Como é bom fugir de mim para ela, pensei»

Mais do que a história em si, sinto que a magia deste livro passa pelas personagens e, também, pela linha ténue que separa a cobardia da coragem, a realidade daquilo que é implantado para se alcançar um pouco de dignidade. E, por esse motivo, oscilamos em relação à verdadeira identidade deste avô; e, por esse motivo, vemos um neto a tentar conciliar a figura de um génio literário com o homem que era dentro de casa: como é que consegue ser as duas versões? Como é que somos capazes de amar aquela pessoa na mesma medida em que a odiamos? Como é que aceitamos esta herança agridoce?

O Último Avô insere-nos num plano familiar para nos fazer refletir acerca da ideia de perfeição com que revestimos aqueles que nos são próximos, até porque, dependendo do vínculo afetivo, temos a tendência de os colocarmos num pedestal — lugar de onde não serão retirados, a menos que algo abale essa convicção. Sinto que o autor nos puxa para a realidade, ainda que essa realidade sirva a ficção em inúmeras circunstâncias, e que nos faz pensar sobre a dificuldade que é saber quando insistir e quando desistir. Com passagens bordadas com cuidado, comoção e amor, descobrir a verdade pode ser sombrio, porque «há solidões onde o amor não entra», mas pode trazer alguma clareza.


 notas literárias
  • Gatilhos: Luto, linguagem explícita
  • Lido entre: 28 e 31 de outubro
  • Formato de leitura: Digital
  • Género: Romance
  • Pontos fortes: O lado emocional, a complexidade das personagens, os limbos
  • Banda sonora: Este Seu Olhar, Nara Leão | No Teu Poema, Simone de Oliveira | Reza, Rita Lee & Roberto de Carvalho | Obá, Lá Vem Ela, Jorge Ben Jor & Trio Mocoto

Fotografia da minha autoria



A quantidade de vezes que me cruzei com este livro e adiei aventurar-me na sua descoberta é absurda. Por isso, aproveitei a boleia do Livra-te e rendi-me a Olga Tokarczuk


 um confronto com a nossa moralidade

Conduz o Teu Arado Sobre os Ossos dos Mortos leva-nos até uma remota aldeia polaca, onde podemos conhecer Janina Duszeiko, «uma professora reformada, [que] divide os seus dias a traduzir a poesia de William Blake e a observar os sinais da astrologia». Excêntrica e solitária, vê a pacatez dos seus dias ser «interrompida quando começam a aparecer mortos vários membros do clube de caça local» e decide investigar.

O livro tem uma aura de estranheza a pairar, porque se sente que o que não é dito pesa. Além disso, o humor peculiar e sombrio da protagonista fomenta essa sensação, sobretudo se o entrelaçarmos a um estado de alma em luto permanente por todos os animais que morreram. Muito mais próxima da Natureza do que de pessoas, Janina tem uma teoria muito vincada em relação ao que está a acontecer e tentará prová-la junto das autoridades — que parecem pouco dispostas a ouvi-la.

Esta mulher intriga, desconcerta-nos e vai abalando as nossas convicções. Fiquei fascinada com o seu percurso de vida e, apesar de não me rever totalmente em algumas das suas posições, consegui perceber o que a motiva e o que está disposta a fazer para defender as suas causas. E achei muito interessante que desse voz a coisas que parecem pouco óbvias e nas quais encontramos um sentido, um propósito.

«Nós temos uma visão do mundo e os Animais têm um sentido do mundo, sabias?»

Bem escrito, filosófico e cómico, este livro parece um puzzle. Acho que fica claro, desde o início, para onde é que a narrativa escalaria, mas a experiência de leitura não fica condicionada por isso, porque queremos unir cada detalhe e perceber a sua função e importância no todo. E esse todo está fabuloso, até porque nos faz refletir sobre direitos, justiça, tradição e responsabilidades.

Conduz o Teu Arado Sobre os Ossos dos Mortos perdeu-me um pouco a meio, porque se focou em linhas que não me pareceram assim tão relevantes para o enredo, mas o final compensa. Adorei como abordou o sentimento de culpa e que vingasse aqueles que nem sempre têm a capacidade para se defender. E é curioso como não existem arrependimentos, mas tudo tem uma justificação.


 notas literárias
  • Desafio: Clube do Livra-te
  • Gatilhos: Linguagem gráfica e explícita
  • Lido entre: 5 e 7 de outubro
  • Formato de leitura: Digital
  • Género: Policial e Thriller
  • Personagem favorita: Janina
  • Pontos fortes: A construção das personagens e os significados
  • Banda sonora: Saturno, Lhast | Riders On The Storm, The Doors | Walking In The Hair, Aurora | Deathbed, Anna Von Hausswolff

Fotografia da minha autoria



A capa do livro de Kaveh Akbar estava muito presente no meu pensamento. Depois de saber a opinião tão positiva de algumas pessoas cujo gosto literário se aproxima do meu, decidi incluí-lo na lista da Feira do Livro do Porto. E que viagem intensa que me proporcionou.


 a ideia de ser mártir

Mártir! narra a história de Cyrus Shams, «um jovem a lidar com a herança de violência e perda». Órfão e filho de imigrantes, o nosso protagonista é-nos apresentado como alcoólico, viciado e poeta, mas é a sua obsessão por mártires que sobressai, até porque é ela que o leva «a investigar os mistérios do seu passado».

Com mais ou menos consciência disso, creio que passamos a nossa vida à procura de significados — quer para entendermos determinados conhecimentos, quer para encontrarmos algum conforto, alguma paz. Cyrus é a personificação perfeita disso e acho que é também por essa razão que nos apaixona, que nos prende às suas vivências. Embora aparente não ter qualquer propósito, socorre-se da bebida, da arte e dos mártires para encontrar um sentido.

Há um tom triste a pairar nestas páginas, mas a narrativa é frenética, porque, de repente, parece estar em todo o lado. Enquanto lida com o luto, vai refletindo sobre religião, emigração, ancestralidade e guerra; equaciona o significado da vida e procura reinventar-se, nunca escondendo o desejo de ter uma morte grandiosa. E nós, leitores, acompanhamos cada um dos seus pensamentos sem um segundo de descanso.

«Depois daquele primeiro beijo, eu não teria duvidado de nada. Possibilidades, liberdade. Se um grande anjo alado tivesse emergido do solo e rebentado em pedaços, eu teria recolhido as suas penas»

Às vezes, torna-se difícil acreditar que Cyrus é apenas um jovem, tendo em conta a profundidade do seu discurso, da mesma maneira que parece impossível ficarmos indiferentes à sua viagem, a tudo o que ultrapassou, à sensibilidade que consegue ser força e vulnerabilidade. É uma narrativa muito bem construída, comovente, que me prendeu do início ao fim.

Mártir! não tem uma estrutura comum. Aliás, um dos aspetos que mais me fascinou foi a quantidade de perspetivas e de conversas paralelas — uma, em particular, deixou-me sem palavras por ser tão absurda e bonita. Com várias camadas, é um livro que precisa de ser abraçado com a perspetiva certa, uma vez que é dramático, sombrio e com doses de humor mordaz. Há alturas em que se torna afletivo, mas mostra-nos que nada é linear. Colou-se à minha pele.


 notas literárias
  • Desafio: Clube do Livra-te
  • Gatilhos: Alcoolismo, morte, luto
  • Lido entre: 12 e 16 de setembro
  • Formato de leitura: Físico
  • Género: Romance
  • Pontos fortes: Os diálogos, a capacidade de ser vulnerável, o ritmo
  • Personagem favorita: Zee
  • Banda sonora: Faryad, Black Cats & Kamyar | Don't Worry Be Happy, Bobby McFerrin | Gallery Piece, Of Montreal | Cotto Crown, Sonic Youth | True Love Will Find You In The End, Daniel Johnston

Fotografia da minha autoria


A lista para a Feira do Livro do Porto foi-se compondo e estava praticamente fechada, até ver que haveria um livro de Júlio Machado Vaz como livro do dia. Sendo uma das vozes que tento escutar com uma certa regularidade, estava curiosa para descobrir a sua escrita. Outonecer continua a chamar por mim, mas senti que seria a oportunidade perfeita para recuar um pouco mais no tempo e aproximar-me da sua prática clínica.


 a importância de ouvir o outro

À Escuta dos Amantes é o resultado daquilo que o médico psiquiatra aprendeu com os seus pacientes, ao longo de «quarenta anos passados num consultório médico à escuta de histórias de dilemas e desesperos, paixões e reencontros». No entanto, esse foi só o ponto de partida para refletir «sobre si mesmo e sobre a medicina que pratica, ensina e sonha», através de um discurso sempre franco e cheio de ramificações, como a vida.

A estrutura não é propriamente linear, atendendo a que se sustenta no pensamento caleidoscópico do autor. Se, por um lado, pode tornar a leitura algo confusa, porque nunca deciframos o caminho para onde nos deslocamos, por outro, creio, essa é uma das maiores belezas desta obra, porque é como se o ouvíssemos a pensar em voz alta. Além disso, sendo a escuta uma das premissas, sinto que nos convida mesmo a ouvir, a interiorizar, a parar para interpretar o que acabou de ser dito. Nós vamos saltando de fragmento em fragmento, avançando e recuando sempre que necessário, até sabermos que cada palavra vem de um lugar muito íntimo. E, por isso, pode ser oscilante, mas é, também, maravilhoso presenciar este exercício em que se entrega sem qualquer filtro.

O tom de Júlio Machado Vaz é benigno, no sentido em que as suas análises não são feitas para ferirem, para diminuírem, muito menos para nos fazerem acreditar que há só uma forma de observar o mundo. Antes pelo contrário, partindo da sua experiência e, por vezes, das suas falhas e indecisões, mostra-nos que vamos construindo a nossa identidade na partilha, na capacidade de reconhecermos que não sabemos tudo e que não detemos a verdade. A sua jornada foi feita de tentativas, de áreas que encontraram uma forma de se complementarem e de vários amigos que se tornaram âncoras neste processo de autodescoberta. Sinto que a sua lucidez também vem do modo como os abraçou ao longo da vida e como permitiu que cada uma das suas pessoas o moldasse.

«Tinha razão, a árvore de Cantelães apenas simbolicamente permitirá que as nossas cinzas se abracem. Mas a saudade, essa, ainda arde»

O autor vai oscilando nas memórias e eu sei que me fui aproximando por isso mesmo. De repente, a sensação predominante era a de que nos conhecíamos há anos e este era só mais um momento em que privávamos e colocávamos o outro a par da nossa vida — é uma das falácias mais belas da literatura, para mim. Assim, embora coloque a tónica nas relações interpessoais, não deixou de ter espaço para falar sobre o romance que foi adiando e sobre a sua digressão poética. E tão depressa me fez rir, como me comoveu.

À Escuta dos Amantes tem passagens que gostava de eternizar pela beleza e, sobretudo, pela pertinência. Ao mostrar que o «silêncio não é sinónimo de vazio», mas, antes, «o colo em que se instala a voz do Outro», alerta-nos para a importância de aguçarmos os ouvidos, porque só dessa forma conseguiremos compreender aqueles que nos rodeiam.


 notas literárias
  • Gatilhos: Linguagem Explícita
  • Lido entre: 21 e 22 de outubro
  • Formato de leitura: Físico
  • Género: Não Ficção
  • Pontos fortes: O tom próximo, franco, sem receio de ser vulnerável; as divagações tão pertinentes
  • Banda sonora: Yellow Submarine, The Beatles | Forever Young, Alphaville | Private Investigations, Dire Straits | Down By The River, Neil Young & Crazy Horse | Olhos nos Olhos, Maria Bethânia | The Dark Side Of The Moon, Pink Floyd

Fotografias da minha autoria



Novembro prometeu chegar com agenda cheia e cumpriu, porque foi rara a semana em que não houve mais do que um programa pelo meio. Aliás, um lanche ajantarado entre amigas abriu as festividades e os restantes dias do mês seguiram a folia.

Gosto muito desta sensação de estar a viver momentos únicos, sozinha ou na companhia das minhas pessoas, não porque sinta que tem de ser tudo aproveitado ao segundo, no limite, mas porque são estas as memórias que ficam; porque, no final do dia, é este quebrar da rotina que nos dá alento e que nos mostra que o caminho não tem de ter apenas um sentido. Acredito, cada vez mais, que são estes planos que nutrem o nosso património afetivo e que nos mostram quem somos, mesmo quando tudo parece enevoado ao nosso redor.

Admito, ainda assim, que também sinto falta de fins de semana caseiros, serenos, sem preocupações logísticas. Só que não trocava todas as experiências que tive o privilégio de viver ao longo destes trintas dias, porque foram realmente especiais. No fundo, sou pelo equilíbrio que me permite recuperar energias e aproveitar os várias planos que vão surgindo e que contrariam a preguiça, trazendo aconchego.

Novembro foi bastante generoso.


as coisas maravilhosas de novembro


 os fragmentos aleatórios

Eu continuava a comprar cd's, apesar de já não ter onde os ouvir, visto que era uma forma de apoiar os meus artistas favoritos — tantas vezes colo sem saberem. Mas isso mudou, não porque pense de outra forma, mas porque finalmente investi num leitor de cd's portátil, que entrou diretamente para o pódio de compras mais incríveis que fiz este ano (e talvez na vida). Para além de cumprir a sua principal função, ainda funciona como coluna e rádio. Estou mesmo rendida às funcionalidades e à qualidade do som.

Mantendo-me no universo musical, há muito que queria ter o vinil do Carta de Alforria. O artigo não estava disponível para venda online, mas, para celebrar um ano de lançamento do álbum, o Plutonio agraciou-nos com este mimo. Além disso, não podia perder a oportunidade de ter o Lux, da Rosalía, nesta versão física que inclui três temas extra. Está um trabalho fabuloso e tem sido a banda sonora de várias ocasiões do meu dia.

Tenham alguém na vossa vida que fale de vocês com o mesmo entusiasmo com que a minha amiga Sofia fala do tiramisu do Il Fornaio. Eu nem sou muito fã desta sobremesa — talvez por, em todos os sítios que provei, sentir que exageram no álcool — e estava tentada a ir ao restaurante só para a provar. Num dos nossos mil programas em conjunto, acabamos mesmo por ir almoçar ao Il Fornaio e posso garantir-vos que agora percebo todos os elogios — não só em relação ao tiramisu —, porque a equipa é muito atenciosa, a comida é deliciosa e a sala é encantadora. Estreei-me com um Risotto de Carbonara, um copo de sangria rosa e o aclamado tiramisu e mal posso esperar para regressar.

      

      

Outros fragmentos aleatórios: o íman de Tenerife, receber o mais recente livro da Ana Rita Areias, o outono no Porto, o mural «Quem És, Porto?», o Toffe Nut Latte do Starbucks.


 as músicas e os álbuns

A playlist de novembro foi bastante preenchida, sendo difícil chegar a um consenso em relação aos temas favoritos. Por outro lado, sinto, isso só demonstra a qualidade e versatilidade do panorama musical. Continuo muito mais atenta aos artistas portugueses e é um enorme privilégio viver na mesma era que muitos deles.

As músicas que marcaram o mês: Offline, Ajazz, Plutonio & L7NNON | Avisem Que Eu Cheguei, Sara Correia | Ex Certo, Johnny Virtus | depressa, Pikika | Sereia, Lázaro | Labirinto, Murta | Devia, Dengaz.

Os álbuns e o EP's que marcaram o mês: Lux, Rosalía | Wonder, Papillon | Pequenos Gigantes, Satiro | Bouquet, Mei Rose.


 os filmes, as séries e os podcasts

Para este segmento trago um solo, uma série, uma série documental, o regresso de um projeto, um podcast e um short film.

Falha Minha: É o primeiro solo do Ricardo Maria, portanto, é natural que existam arestas para limar, mas creio que se continuar a falhar desta forma irá longe. Além disso, permitam-me só destacar aqui um detalhe que achei interessante: podia ter gravado o espetáculo no Sá da Bandeira ou no Tivoli, visto que a sua tour passou por salas maiores, mas optou por filmar na Piscina — e não meteu água (é por estas e por mais algumas que não sou comediante). Como disse antes, é apenas um pormenor, mas prima pela originalidade e humildade.

Tó Madeira - Em Busca de Uma Lenda: O Championship Manager não fez parte da minha lista de videojogos, porém, houve um nome que não passou despercebido, sobretudo pela sua aura de mistério: Tó Madeira. O avançado que «marcou golos, ganhou títulos e conquistou milhares de jogadores» começou a levantar suspeitas, isto porque, aparentemente, nunca existiu. Será que esta figura tão lendária não passa de uma invenção, de um mito digital? Luís Franco-Bastos quis solucionar o enigma e embarcou «numa busca improvável, contra todas as probabilidades», e o resultado desta investigação exímia foi contado em três partes. Ainda que não estejam familiarizados com o assunto — ou não sejam particularmente fãs de videojogos/futebol —, acho que é um conteúdo que vale a pena ver. Terminei em lágrimas.

Conversas de Miguel: Os miúdos Pedro Teixeira da Mota e Carlos Coutinho Vilhena estão de volta, com uma imagem mais adulta, mas os pensamentos insanos de sempre, unindo o melhor de dois mundos, porque a energia deles continua ótima. Por isso, temos encontro todas as quartas.

As Pessoas Têm de Se Acalmar, Imediatamente: A Tia Bli é extraordinária e eu tenho-me rido imenso com as suas observações. Que lufada de ar fresco ouvi-la todas as quintas-feiras com As Três da Manhã.

Sonhos: Neste pequeno filme, Rui Pereira, mais conhecido como Papillon, mostra-nos de onde partiu e onde chegou. Mostra-nos a felicidade contagiante de alguém que está a um passo de alcançar o que mais ambiciona, abraçando um futuro promissor no futebol, ao mesmo tempo que nos confronta com a mágoa e a frustração de ver essa realidade a desmoronar numa questão de segundos. E como é grande a dor de empacotar sonhos, sobretudo quando colocamos todo o nosso esforço para os tornarmos em algo real. Sonhos, por muito que não acompanhem o percurso do rapper português, impacta pela honestidade e pela vulnerabilidade; impacta porque conseguimos rever-nos naquele miúdo que tem o mundo à sua frente e porque torcemos para que os imprevistos não o impeçam de lá chegar. Além disso, acredito que nos deixa a refletir sobre a constante dualidade em que vivemos, porque, num momento, podemos estar a desfrutar de uma data que se abre no Coliseu e, noutro, podemos esta a receber uma chamada que nos tira o tapete. Vamos dos zero aos cem num ápice, até porque a vida não para de girar.

Porta Premium: A crise da habitação é uma realidade preocupante e os «consultores da maior agência imobiliária do país revelam os segredos do sucesso, convencidos de que está a ser feito um documentário sobre o incrível trabalho deles». O que eles não estavam a contar era que a realizadora tivesse «outros planos» pouco abonatórios para a imagem de todos. Porta Premium recebe-nos em condições duvidosas, com uma dinâmica de fachada que nos tentam vender como genuína. Fazer-nos rir de algo tão sério pode ser difícil, uma vez que o acesso à habitação deveria ser um direito, mas é o lado do negócio que torna tudo risível. Ao explorar este conflito, como explicou a realizadora Tota Alves, «dá-nos espaço para rir de um problema real», sem que o mesmo seja esquecido ou diminuído.


 os livros

O ritmo oscilante de novembro não deu margem para grandes descobertas, mas permitiu-me concluir a TBR que defini e ainda acrescentar mais duas histórias.

Os favoritos do mês: Dieta da Poesia, Afonso Cruz | A Subtração, Alia Trabucco Zerán | Pátria, Fernando Aramburu.

Outros livros lidos: Crime na Aldeia, Lourenço Seruya | Os Transparentes, Ondjaki | As Oito Montanhas, Paolo Cognetti | As Invisíveis, Rita Pereira Carvalho | As Aventuras Completas de Dog Mendonça & Pizzaboy, Filipe Melo, Juan Cavia & Santiago Villa | Pátria, Fernanda Aramburu.


 os momentos

Celebrei os 18 anos do meu afilhado e o aniversário de pessoas que estimo muito. Voltei ao Estádio do Dragão e é doce esta sensação de estar em casa. Fui a concertos, a um espetáculo de comédia e ao teatro. E, pelo meio, fui comprando bilhetes para eventos que quero muito ver.

      

      

      

Volto Já, António Raminhos
Foi a primeira vez que o vi a atuar ao vivo e, primeiro, deixem-me só partilhar o meu espanto quando o vi a entrar em palco, porque eu sei que o Raminhos é alto, mas não estava preparada para o quão alto ele é. Segundo, e focando-me naquilo que importa, quero apenas dizer-vos que adorei a cadência do espetáculo, a maneira como encaixou todos os assuntos, garantindo que «o seu habitual humor nonsense» tinha propósito e que trazia um dialeto transversal à plateia. Na sala do Sá da Bandeira estavam pessoas muito diferentes, que podiam não se rever em determinadas crenças e, mesmo assim, sinto que abraçamos cada pedaço das suas histórias de peito aberto, disponíveis para, pelo menos, tentarmos compreender a origem daqueles pensamentos e/ou daquelas atitudes. Houve muita vulnerabilidade e franqueza na partilha e isso conquistou-nos — experiência completa aqui.

   

30 Anos de Silence 4
Emocionalmente falando, acho que oscilei durante todo o espetáculo: por um lado, porque estava hipnotizada, quase como se não acreditasse bem que os tinha à minha frente, com a viagem visual e auditiva que construíram e que me levou até fases muito específicas da minha jornada e, por outro, porque desejei que demorasse a chegar ao fim. Não fui às lágrimas, mas comovi-me imenso e senti na pele o privilégio de estar naquela sala a ver tudo aquilo a acontecer, a redescobrir a magia de certas canções — experiência completa aqui.

      

À Primeira Vista
O silêncio foi tudo o que me abraçou na noite de sexta-feira, quando saí do Teatro Sá da Bandeira, porque ver o monólogo interpretado por Margarida Vila-Nova foi ainda mais duro e impactante do que aquilo que idealizei. E, por isso, continuo a processar.

À Primeira Vista é um valente e necessário murro no estômago, porque precisamos de mudar o paradigma, porque precisamos de rever a maneira como a lei se posiciona. Os meus pensamentos permanecem dispersos, visto que este texto com tom de denúncia aborda demasiadas camadas revoltantes.


Porto Sounds Secret: A Garota Não
Foi através da canção Dilúvio, em 2022, que fiquei a conhecer o trabalho da artista e o álbum 2 de Abril, lançado no mesmo ano, ficou-me com o coração, não só pela sua voz, não só pelas letras que transbordam poesia, não só pelas melodias que nos embalam e que multiplicam pensamentos, mas também pela combinação de todos estes fatores e da capacidade de transformar a sua arte em intervenção. Ferry Gold, o seu mais recente trabalho discográfico, prima por esse tom interventivo, pela poesia mais declamada e, confesso, foi o que mais demorei a interiorizar, talvez por sentir que não é um álbum para ouvir de seguida, mas, antes, para descobrir devagar, para saborear cada palavra e cada mensagem. Por isso, queria muito ouvi-lo ao vivo e perceber o impacto que teria.

Nesta viagem pessoal e intimista ao seu passado e àquilo que lhe pesa do futuro, ainda houve tempo para recordar temas antigos. Foi um final de domingo muito bonito, que me deixou cheia de vontade de a ver noutros palcos, até porque fui arrebatada pela sua voz e pela interpretação tão expressiva, emotiva e honesta. Na despedida, percebi que o concerto cumpriu a premissa que «seja gentil a nossa viagem, e cheia de flores».

      


Dezembro, sê gentil ✨

Fotografia da minha autoria



O ritmo de leitura, em novembro, foi oscilando, algo que já tinha sentido no mês anterior. Embora tenha começado com vontade e motivada, houve vários dias em que não me apeteceu pegar em livros e não forcei. Além disso, ter um mês com tantos planos não ajudou a encontrar o equilíbrio certo para incluir histórias novas.


 a tbr de novembro: expectativa
  • Crime na Aldeia, Lourenço Seruya;
  • Os Transparentes, Ondjaki;
  • As Oito Montanhas, Paolo Cognetti;
  • As Invisíveis, Rita Pereira Carvalho;
  • A Subtração, Alia Trabucco Zerán;
  • As Aventuras de Dog Mendonça & Pizzaboy, Filipe Melo, Juan Cavia & Santiago Villa.

a tbr de novembro: realidade

Li a TBR definida e acrescentei dois livros:

  • Dieta da Poesia, Afonso Cruz;
  • Pátria, Fernando Aramburu.


 algumas curiosidades

Em novembro, li
  • 8 livros: 1 policial/thriller, 5 romances, 1 não ficcão e 1 novela gráfica;
  • 2 autoras e 6 autores: 4 portugueses, 1 italiano, 1 angolano, 1 chilena e 1 espanhol;
  • 3 autores lidos pela primeira vez: Paolo Cognetti, Rita Pereira Carvalho e Fernando Aramburu.

Favoritos do mês:
  • Dieta da Poesia, Afonso Cruz;
  • A Subtração, Alia Trabucco Zerán;
  • Pátria, Fernando Aramburu.


 vamos a contas?

A Wook, em novembro, tem feito a campanha dos 100% e, já a pensar em desafios literários futuros, acabei por aproveitar e trazer poesia para a estante dos não lidos. Assim,

  • Comprei 3 livros físicos — O Real Arrasa Tudo, Uma Falha nos Dentes e A Axila de Egon Schiele —, gastando 41,05€;
  • Ativei a subscrição do Kobo Plus, que me custou 7,99€. Li 5 eBooks, o que me permitiu poupar 74,33€;
  • Comecei novembro com 24€. Como li 8 livros, amealhei 8€, partindo para dezembro com 32€.


 tbr de dezembro
  • Um Tempo a Fingir, João Pinto Coelho;
  • A Blogosfera Portuguesa, Sérgio Barreto Costa;
  • Dar a Volta aos Medos, Ana Rita Areias;
  • Ensaio Sobre a Cegueira, José Saramago;
  • O Real Arrasa Tudo, Isabel de Sá.

Fotografias da minha autoria


As minhas primeiras referências musicais fui buscá-las ao meu pai, mas os Silence 4 não vieram agregados a essa bagagem. Apesar de não os ter abraçado profundamente durante o meu crescimento, havia letras que não sabia cantar, por serem numa língua que não me é tão intuitiva, mas que sabia sentir como se fossem um pedaço da minha história em construção. E isso não se pode esquecer.

Quando anunciaram um reencontro para celebrar os 30 anos da sua formação, admito, hesitei um pouco antes de comprar o bilhete, porque questionei-me se fazia sentido estar presente, tendo em conta que não vivi de perto o crescimento da banda. Só que, depois, questionei-me se estaria disposta a perder a oportunidade de cantar ao vivo a Borrow ou a To Give, por exemplo, e se estaria disposta a desperdiçar um momento que talvez não se voltasse a repetir. A resposta negativa às duas foi bastante esclarecedora.

      

Tinha três anos quando o David Fonseca, a Sofia Lisboa, o Tozé Pedrosa e o Rui Costa se juntaram e se tornaram num «dos maiores fenómenos da música portuguesa», mas isso não impediu que existissem versos seus a ecoar na minha memória. Demorei mais do que devia a incluí-los na banda sonora da minha vida, mas o concerto a que assisti no domingo (16/11) foi a prova perfeita de que ainda cheguei a tempo, porque estarem ou não no ativo não altera a intemporalidade dos temas que lançaram na sua carreira.

Emocionalmente falando, acho que oscilei durante todo o espetáculo: por um lado, porque estava hipnotizada, quase como se não acreditasse bem que os tinha à minha frente, com a viagem visual e auditiva que construíram e que me levou até fases muito específicas da minha jornada e, por outro, porque desejei que demorasse a chegar ao fim. Não fui às lágrimas, mas comovi-me imenso e senti na pele o privilégio de estar naquela sala a ver tudo aquilo a acontecer, a redescobrir a magia de certas canções.

30 anos depois, é maravilhoso poder celebrá-los desta maneira emotiva e memorável.

Fotografia da minha autoria


O meu percurso escolar começou na primária e, embora as memórias se esbatam, sei que o abracei com todo o entusiasmo. Há uma certa magia nas possibilidades, no facto de podermos aprender coisas novas, de se construírem vínculos com aquilo que vem nos manuais, mas também no recreio, na interação com os pares e com aqueles que assumem a responsabilidade de ensinar, educar, orientar. Só que esta realidade não era transversal a todos, algo que podemos verificar em mais um dos Retratos da Fundação.


 uma escrita que dignifica

Um Dedo Borrado de Tinta conta-nos histórias de quem não pôde aprender a ler. Assim, Catarina Gomes leva-nos até à freguesia de Casteleiro, no distrito da Guarda, que tem «a maior taxa de analfabetismo», para nos mostrar o quotidiano dos habitantes desta aldeia «que não tiveram oportunidade de aprender a ler a escrever» e de que forma é que esta ausência se tornou um entreve nas suas vidas e nas tarefas do quotidiano.

Ninguém tem particular interesse em expor as suas fragilidades, por isso, existe uma tentativa evidente para arranjar mecanismos de defesa que desviem a atenção desse lado vulnerável. Apesar de os entrevistados aceitarem conversar com a autora, sente-se que há um certo desconforto por revisitarem o passado, a falta de oportunidades, o que se perdeu porque tiveram de seguir noutra direção, sem que pudessem ser eles a escolher. E, neste ponto, tornam-se ainda mais notórias as desigualdades sociais e de género, que afetam sempre os mesmos grupos. Não obstante, Catarina Gomes escuta sem pressionar, questiona sem a intenção de diminuir e cria espaço para que tenham voz e contem a sua história exatamente como a viveram, sem mascararem mágoas.

«Ao aceitar desenhar a primeira letra do seu nome para mim, e depois as seguintes, é como se concordasse viajar no tempo»

Há, em todas estas pessoas, uma sensação de incompletude, atendendo a que não são capazes de trabalhar as letras, de compreender as suas múltiplas funcionalidades e cruzamentos, mas, por outro lado, partilham uma inteligência e um brio práticos, que lhes permitiu sobreviver e encontrar alternativas. No fundo, creio que este livro nos mostra que lhes roubaram uma parte da liberdade, mas que não se tornaram mártires. Através destes testemunhos preciosos, compreendemos que existem diferentes graus de analfabetismo e que o ensino é um privilégio que continua a não ser para todos.

Um Dedo Borrado de Tinta traz-nos uma nova perspetiva acerca do nosso país e mostra-nos que a pobreza, a ruralidade e os métodos de ensino não são conceitos dissociáveis: influenciam-se e deixam marcas a longo prazo. Com uma escrita que dignifica, é uma obra que também nos mostra que estas pessoas semearam para colher, mas que nunca o puderam fazer pelas palavras, pela independência que vem agarrada à tinta, ao papel.


 notas literárias
  • Lido entre: 13 e 15 de outubro
  • Formato: Digital
  • Género: Não ficção
  • Pontos fortes: Dar voz a quem nem sempre a tem, a escrita que dignifica, o tom claro, objetivo e reflexivo
  • Banda sonora: Escola dos 90, Dealema | Quero é Viver, Humanos | Sete Mares, Sétima Legião | Nasce Selvagem, Resistência

Fotografia da minha autoria


O entusiasmo estava um pouco adormecido, devo confessar, porque as últimas duas experiências a ler Lourenço Seruya não foram tão positivas. No entanto, sendo um dos nomes do desafio que tenho com a Sofia — 5 autores para 2025 —, queria descobrir a direção que seguiu neste livro, que nos leva até uma das aldeias mais bonitas do país.


 plantar pistas com subtileza

Crime na Aldeia trouxe-me uma sensação de familiaridade, por estar a palmilhar ruas que reconheço, embora não como a palma da minha mão. Esta proximidade, acredito, tem impacto na maneira como nos relacionamos com o enredo, porque torna as ações credíveis, sustentadas num espaço físico. As pessoas com quem me cruzei em todas as vezes que fui a Piodão não são as que aparecem retratadas neste livro, não obstante, as casas de xisto podiam muito bem esconder todos os segredos que vamos desvendando.

Quando «uma das habitantes da aldeia morre num desastre de viação», não existe uma pessoa que duvide de que «se tratou de um despiste acidental», tendo em conta o piso molhado e o facto de ser uma estrada sinuosa. A aparente pacatez do lugar é quebrada pela tragédia e pelo resultado da peritagem, que comprova que o carro foi sabotado». Portanto, o que parecia um acidente, transforma-se numa investigação de homicídio.

A partir deste momento, e já com a presença da Polícia Judiciária em Piodão, há uma sequência de acontecimentos e comportamentos suspeita: por um lado, porque nos deixa alerta, a questionar motivações e a potencial implicação no crime, e, por outro, porque todos se conhecem e isso parece fazer-nos andar em círculos, sem conseguir atar as pontas soltas. Torna-se evidente que há meias verdades a serem partilhadas, mas não descortinamos as razões e acho que continuamos sempre à margem do que aconteceu — de repente, estamos só a lançar teorias e a sentir que nenhuma encaixa.

«Mas ali estava uma situação que lhe contradizia a crença. Mais uma verdade escondida por entre as ruas estreitas e as casas de xisto acastanhado e portas azuis»

Notei uma grande diferença nesta história, quer em relação à construção da narrativa e das personagens, quer em relação à escrita, que me pareceu mais coesa, só retirava as partes que se centram na vida dos inspetores, porque são as únicas que me parecem pouco conectadas, com um tom exagerado e, por vezes, superficial. Embora entenda o propósito e reconheça que até possam justificar decisões a longo prazo, não senti que fizessem assim tanto sentido para a história central. Além disso, estava tão investida na resolução do crime que preferia não encontrar qualquer tipo de distração paralela.

Crime na Aldeia constrói-se nos detalhes e na atenção que lhes reservamos. Não sei se a concretização é óbvia, mas tornou-se evidente que os sinais estavam lá todos, que as pistas foram sendo plantadas com subtileza, mas que nem sempre somos capazes de os ver — pelas mais diversas razões. Fazendo-nos refletir sobre dinâmicas familiares, a ambiguidade dos nossos valores, os limites da decência e até onde estamos dispostos a ir para esconder os nossos segredos, também nos mostra que há sempre uma altura em que o passado nos pesa e que o silêncio deixa de ser a resposta. Os monstros não habitam apenas lugares distantes, mas nem sempre chegamos a tempo de os travar.


 notas literárias
  • Desafio: 5 autores para 2025
  • Gatilhos: Luto, referência a abuso, linguagem explícita
  • Lido entre: 3 e 5 de novembro
  • Formato: Digital
  • Género: Policial e Thriller
  • Personagem favorita: Lucas (fui-me aproximando ao longo da leitura)
  • Pontos fortes: Evolução na escrita, não ser óbvio, provocar tantas teorias
  • Banda sonora: Suspicious Minds, Elvis Presley | Everybody’s Got To Learn Sometime, The Korgis | Silhouettes, Of Monster and Men | In The Air Tonight, Phil Collins | Bad Habit, The Kooks
Mensagens mais recentes Mensagens antigas Página inicial

andreia morais

andreia morais

O meu peito pensa em verso. Escrevo a Portugalid[Arte]. E é provável que me encontrem sempre na companhia de um livro, de um caderno e de uma chávena de chá


o-email
asgavetasdaminhacasaencantada
@hotmail.com

portugalid[arte]

instagram | pinterest | goodreads | e-book | twitter

margens

  • ▼  2025 (193)
    • ▼  dezembro (8)
      • os transparentes, ondjaki
      • dieta da poesia, afonso cruz
      • o último avô, afonso reis cabral
      • conduz o teu arado sobre os ossos dos mortos, olga...
      • mártir!, kaveh akbar
      • à escuta dos amantes, júlio machado vaz
      • as coisas maravilhosas de novembro
      • notas literárias novembro '25
    • ►  novembro (12)
      • 30 anos de silence 4
      • um dedo borrado de tinta, catarina gomes
      • crime na aldeia, lourenço seruya
    • ►  outubro (14)
    • ►  setembro (16)
    • ►  agosto (1)
    • ►  julho (18)
    • ►  junho (19)
    • ►  maio (21)
    • ►  abril (22)
    • ►  março (21)
    • ►  fevereiro (19)
    • ►  janeiro (22)
  • ►  2024 (242)
    • ►  dezembro (24)
    • ►  novembro (17)
    • ►  outubro (17)
    • ►  setembro (18)
    • ►  agosto (12)
    • ►  julho (23)
    • ►  junho (20)
    • ►  maio (23)
    • ►  abril (22)
    • ►  março (21)
    • ►  fevereiro (21)
    • ►  janeiro (24)
  • ►  2023 (261)
    • ►  dezembro (23)
    • ►  novembro (22)
    • ►  outubro (22)
    • ►  setembro (21)
    • ►  agosto (16)
    • ►  julho (21)
    • ►  junho (22)
    • ►  maio (25)
    • ►  abril (23)
    • ►  março (24)
    • ►  fevereiro (20)
    • ►  janeiro (22)
  • ►  2022 (311)
    • ►  dezembro (23)
    • ►  novembro (22)
    • ►  outubro (21)
    • ►  setembro (22)
    • ►  agosto (17)
    • ►  julho (25)
    • ►  junho (30)
    • ►  maio (31)
    • ►  abril (30)
    • ►  março (31)
    • ►  fevereiro (28)
    • ►  janeiro (31)
  • ►  2021 (365)
    • ►  dezembro (31)
    • ►  novembro (30)
    • ►  outubro (31)
    • ►  setembro (30)
    • ►  agosto (31)
    • ►  julho (31)
    • ►  junho (30)
    • ►  maio (31)
    • ►  abril (30)
    • ►  março (31)
    • ►  fevereiro (28)
    • ►  janeiro (31)
  • ►  2020 (366)
    • ►  dezembro (31)
    • ►  novembro (30)
    • ►  outubro (31)
    • ►  setembro (30)
    • ►  agosto (31)
    • ►  julho (31)
    • ►  junho (30)
    • ►  maio (31)
    • ►  abril (30)
    • ►  março (31)
    • ►  fevereiro (29)
    • ►  janeiro (31)
  • ►  2019 (348)
    • ►  dezembro (31)
    • ►  novembro (30)
    • ►  outubro (29)
    • ►  setembro (30)
    • ►  agosto (16)
    • ►  julho (31)
    • ►  junho (30)
    • ►  maio (31)
    • ►  abril (30)
    • ►  março (31)
    • ►  fevereiro (28)
    • ►  janeiro (31)
  • ►  2018 (365)
    • ►  dezembro (31)
    • ►  novembro (30)
    • ►  outubro (31)
    • ►  setembro (30)
    • ►  agosto (31)
    • ►  julho (31)
    • ►  junho (30)
    • ►  maio (31)
    • ►  abril (30)
    • ►  março (31)
    • ►  fevereiro (28)
    • ►  janeiro (31)
  • ►  2017 (327)
    • ►  dezembro (30)
    • ►  novembro (29)
    • ►  outubro (31)
    • ►  setembro (30)
    • ►  agosto (17)
    • ►  julho (29)
    • ►  junho (30)
    • ►  maio (24)
    • ►  abril (28)
    • ►  março (31)
    • ►  fevereiro (28)
    • ►  janeiro (20)
  • ►  2016 (290)
    • ►  dezembro (21)
    • ►  novembro (23)
    • ►  outubro (27)
    • ►  setembro (29)
    • ►  agosto (16)
    • ►  julho (26)
    • ►  junho (11)
    • ►  maio (16)
    • ►  abril (30)
    • ►  março (31)
    • ►  fevereiro (29)
    • ►  janeiro (31)
  • ►  2015 (365)
    • ►  dezembro (31)
    • ►  novembro (30)
    • ►  outubro (31)
    • ►  setembro (30)
    • ►  agosto (31)
    • ►  julho (31)
    • ►  junho (30)
    • ►  maio (31)
    • ►  abril (30)
    • ►  março (31)
    • ►  fevereiro (28)
    • ►  janeiro (31)
  • ►  2014 (250)
    • ►  dezembro (31)
    • ►  novembro (30)
    • ►  outubro (28)
    • ►  setembro (23)
    • ►  agosto (13)
    • ►  julho (27)
    • ►  junho (24)
    • ►  maio (18)
    • ►  abril (16)
    • ►  março (14)
    • ►  fevereiro (11)
    • ►  janeiro (15)
  • ►  2013 (52)
    • ►  dezembro (13)
    • ►  novembro (10)
    • ►  outubro (9)
    • ►  setembro (11)
    • ►  agosto (9)
Com tecnologia do Blogger.

Copyright © Entre Margens. Designed by OddThemes