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Fotografias da minha autoria |
É praticamente impossível traduzir o que me pulsa por dentro quando penso na Feira do Livro do Porto. E essa dificuldade talvez caminhe de mãos dadas com o amor às palavras que vem quase do berço, com o fascínio de descobrir histórias escritas/contadas por outros que foi crescendo devagar e com o facto de este evento ter feito morada num dos meus lugares favoritos da cidade.
Razões à parte, a Feira do Livro do Porto faz-se anunciar e há um brilhozinho nos olhos que não se esconde mais. E, nem de propósito, o autor homenageado na edição deste ano foi Sérgio Godinho, figura incontornável do nosso panorama musical e que me acompanhou — e acompanha — em tantas ocasiões da minha trajetória.
Sinto que esta foi a edição que mais aproveitei: não só porque consegui ir a dez dos 17 dias, mas também porque há uma magia acrescida quando o homenageado pode estar presente. E foi contagiante ver a felicidade de Sérgio Godinho por ter recebido uma Tília e por chegar aos 80 com um programa que fez justiça ao seu legado. Sorte a minha por ter lá estado!
as sessões a que assisti
Atribuição da Tília de Homenagem
A cerimónia de atribuição da tília de homenagem é um momento simbólico, que eu acho sempre comovente e com um toque poético: porque é uma maneira de eternizar aquela figura na cidade. Sérgio Godinho é um nome incontornável, que reconhecemos como extensão desta margem, e esta árvore é uma forma de lhe dar ainda mais raízes. Na Avenida das Tílias haverá sempre um brilhozinho nos olhos difícil de esquecer.
Durante este momento especial, que contou com palavras elogiosas por parte de Rui Moreira e a partilha de memórias, também lhe foi entregue a Medalha Municipal de Honra, num gesto que comprova o quanto Sérgio Godinho é uma personalidade com um impacto extraordinário na comunidade - não só da cidade, mas da nação inteira.
Justiça reposta, como referiu o Presidente da Câmara do Porto ao dizer que a cidade devia esta homenagem ao «homem dos sete instrumentos», foi uma bela celebração.
Sérgio Sobre o Porto
A voz de Cristiana Sabino encheu a sala com a leitura de poemas de Sérgio Godinho. E, assim, a sessão prosseguiu, com copos de vinho na mesa e uma dinâmica de quem está entre amigos, em casa, a partilhar recordações, histórias de um passado que não é tão longínquo como aparenta ser e a certeza de que foi preciso lutar pela liberdade.
Francisco José Viegas moderou a conversa, João Gobern fez uma viagem «sergiana», que se esperava isenta, mas que transbordou de emotividade, de intimidade (e que me comoveu em certas passagens, devo confessar), e Rui Moreira foi quase a ponte entre estes universos, num simbolismo que não passou despercebido e que interligou a cerimónia de atribuição da Tília de homenagem. Não contabilizei o tempo passado no Auditório da Biblioteca Municipal Almeida Garrett, mas a conversa foi tão preciosa que ficaria mais um par de horas a escutar todas as histórias que ficaram na gaveta.
Numa travessia que passou pela censura, pela necessidade de ser criativo, pelo gosto de Sérgio Godinho pelas artes partilhadas e pelas memórias do Porto que o ajudaram a criar as suas canções e as suas narrativas ficcionais, foi o coração que marcou o tom.
Ciclo «E o Coração Que o Conte / Quantas Vezes Já Bateu Pra Nada» com Luís Severo
A voz de Luís Severo tem ecoado menos cá por casa, mas continuo fascinada pelo seu timbre, pela sua serenidade, pela sensação de leveza que imprime em cada canção. Por isso, fiquei muito feliz quando percebi que era um dos nomes a atuar na Feira do Livro.
Houve uma certa poesia a embalar a passagem do tempo e as melodias. O pôr do sol foi conselheiro e paisagem do concerto e, para mim, tornou a experiência ainda mais encantadora, até porque me voltei a apaixonar pelos temas escolhidos: não sei se por já não os escutar há algum tempo, se por terem sido tocados num dos meus lugares favoritos, se pela junção de ambos, o certo é que este momento me encheu as medidas.
No reportório incluiu três temas de Sérgio Godinho, numa homenagem sentida. A interação com o público talvez tenha tido pequenas fragilidades, mas estou curiosa para o ouvir numa sala preparada para a tranquilidade da sua obra. E não esqueço o privilégio que foi escutar Primavera ao vivo. O coração há-de contar esta memória.
O Labirinto da Beleza com Martim Sousa Tavares
A sensibilidade de encontrar beleza naquilo que não é propriamente belo talvez seja um dom ao alcance de poucos. Ou talvez só precisemos de habituar esse músculo, só precisemos de o ir treinando para a aceitação, para aquilo que sai um pouco da caixa.
O olhar que o Martim Sousa Tavares tem sobre a beleza é fascinante de escutar, acima de tudo, devido à sua capacidade para nos incluir na explicação, na análise, no prisma para o qual nos quer mediar. Aliás, o mais bonito da sua comunicação, além de toda a cultura e conhecimento que a revestem, é a empatia, é o saber colocar-se no lugar do outro, acolhendo-o sem suscitar culpa. Independentemente de quem estiver na sala, ele será sempre capaz de adequar o discurso sem ser condescendente, o que denota as várias camadas da sua inteligência - que se estende para lá da erudição, que integra.
N’ O Labirinto da Beleza voltei a ser arrebatada pela eloquência, pela proximidade e pela forma harmoniosa como interliga temas diversos. Desde o valor estético ao valor ético, passando por referências a David Bruno, fica uma pergunta: para onde olhar?
Ciclo «E o Coração Que o Conte / Quantas Vezes Já Bateu Pra Nada» com Manel Cruz
A neblina foi-se aproximando, mas Manel Cruz estava a jogar em casa, portanto, ao envolver-nos na névoa tão típica (e mística) da cidade, soube ser colo e aconchego.
Nome incontornável do panorama musical português, tive-o sempre como banda sonora de inúmeras ocasiões, através dos projetos que abraçou nas últimas décadas, Ornatos Violeta, Foge Foge Bandido, Pluto e Supernada, mas, curiosamente, nunca o tinha escutado ao vivo e, apesar de ser num contexto muito particular, sei que este momento escalará para um dos meus favoritos do ano. Que privilégio que foi assistir.
Sentada na minha manta, na Concha Acústica dos Jardins do Palácio de Cristal, tive alturas em que me permiti fechar os olhos e ser embalada pela sua voz inconfundível e pelo misto de luz, sombras e poesia que revestem as suas canções. Independentemente do formato, existe um lado intimista, por vezes visceral, nos versos que compõe; existe uma ausência de filtro para esconder a vulnerabilidade. Nas suas palavras sentimo-nos acolhidos, como se tivesse a capacidade de, com delicadeza, contar a nossa história.
O palco nem sempre foi uma vontade, mas assenta-lhe bem. E não o digo apenas pelo lado interpretativo, digo-o, também, pela forma como comunica com o público, que é próxima, cómica e muito franca. Além disso, senti que o seu concerto nos permite ter uma viagem individual, explorando as emoções que melhor nos servirem no momento.
No tema Constelação, canta que as «Estrelas/São mesmo assim/Vivem/Para brilhar», tal como ele. Sorte a minha por ter visto, finalmente, este génio de perto. É para repetir.

Quantas Faces Ocultas na Face Visível da Lua? com Valério Romão
A voz de Sérgio Godinho ecoou na minha memória ao recordar-me do verso «nasce um novo dia e no braço outra asa», quando estava a entrar no Auditório da Biblioteca Municipal Almeida Garrett para assistir a outro ciclo de conversas da Feira do Livro.
A associação talvez seja rebuscada, mas o verso anterior ocorreu-me por duas razões: três anos depois, reencontrar-me-ia com Valério Romão neste evento (correspondendo ao «nasce um novo dia») e sabia que a conversa escalaria sempre para a sua obra mais recente e para a que sairá em outubro (que serve o «nasce […] no braço outra asa»). Não é óbvio, no entanto, talvez ajude a personificar as faces ocultas na face visível da lua.
Maria João Costa mediou a conversa e Valério Romão foi igual a si próprio: honesto, sem filtro, sem a pretensão de cair nas boas graças de quem o ouve. E, apesar de ainda só ter lido Autismo, O da Joana e Cair Para Dentro, que compõem a trilogia Paternidades Falhadas, sinto que é o mesmo registo que encontramos na sua escrita, o que me atraiu de imediato. Existe um tom cru que povoa o seu discurso e que pode abalar as nossas esperanças, mas, por outro lado, acho que é esse mesmo tom que nos permite refletir sobre direitos/deveres, condições de trabalho, processos de escrita, a memória curta e a estupidificação humana como se se interligassem. O autor só desenrolou o novelo.

Tudo no Amor Faz do Nada um Tudo com Rui Couceiro e Alberto Manguel
A figura carismática de Alberto Manguel fascina-me, embora continue a adiar o meu encontro com a sua obra (e sem conseguir justificar a razão). Por outro lado, gosto da forma como o Rui Couceiro comunica, apesar de não ter ficado rendida ao seu livro de estreia. Assim, achei que fazia todo o sentido marcar presença na sessão entre ambos.
Nesta conversa fluida, com espaço para provocações e histórias encantadoras, gostei particularmente do tom descomplicado e descomprometido. Não me interpretem mal, os intervenientes estavam inteiros na partilha, quando refiro descomprometido é no sentido de não pretenderem acariciar egos e deixar as críticas de parte. Em nenhum momento procuraram transformar a sessão num apontar de dedos, mas falaram das fragilidades de alguns projetos, daquilo que demora para acontecer, das burocracias que atrasam sempre ideias concretas. Podiam ter-se retraído nessa análise, porém, de uma maneira muito cordial e cuidada, mostraram-nos os diversos lados das questões.
Refletindo sobre a biblioteca do autor, a importância de eventos literários numa altura em que somos tão digitais e a necessidade de não existirem barreiras na literatura, dei por mim a anotar algumas frases proferidas por Alberto Manguel, visto que tocaram num nervo emocional, como é o caso de «a literatura obriga-nos a ver a ambiguidade das histórias», «os verbos ler e amar não podem ser usados no imperativo» e, ainda, «o campo da literatura não pode ter fronteiras ou os autores não têm passaporte».

Como Se Não Houvesse Amanhã - Histórias Suicidas: Apresentação do Livro
As palavras de Sérgio Godinho continuam a entrar cá em casa através das canções, mas não podia perder a oportunidade de o ouvir falar sobre o seu mais recente livro.
À semelhança do que aconteceu na sessão Sérgio Sobre o Porto, Cristiana Sabino leu excertos de Como Se Não Houvesse Amanhã e, de seguida, João Carlos Barros convidou-nos a conhecer o homem dos sete instrumentos através do seu olhar e de uma análise cuidada acerca da forma como constrói as suas narrativas. Achei bonito que tivesse encontrado pontes entre a ficção e a música, até na própria estrutura das frases, uma vez que me parece corroborar o gosto de Sérgio Godinho em interligar diferentes manifestações artísticas. E saber que o faz com naturalidade deixa-me entusiasmada.
É provável que ainda demore a chegar a estas histórias suicidas, mas foi bom perceber de onde partiram, qual a sua intenção nestes contos e como é que os foi construindo. Sérgio Godinho é mesmo um contador de histórias exímio, ficaria horas a escutá-lo.

Toda a Faca Tem o Seu Fio com Inês Meneses e Filipa Leal
O Auditório da Biblioteca Municipal Almeida Garrett, a propósito do ciclo «Toda a Faca Tem o Seu Fio», reuniu em palco duas mulheres que admiro pela forma como comunicam: Inês Meneses e Filipa Leal. Enquanto a primeira entra em minha casa através de formatos como
O Coração Ainda Bate, a segunda fá-lo através da poesia.
A conversa começou com a ligação a Sérgio Godinho, autor homenageado da Feira do Livro do Porto, e foi escalando para aquilo que nos leva a escrever, para a necessidade de ir testando e procurando novas fórmulas e para o facto de usar a poesia para fazer perguntas — mais do que para encontrar respostas. Ademais, nesta partilha intimista, houve espaço para se falar sobre medos, sobre eventuais bloqueios criativos e sobre a vontade de que as palavras e a poesia continuem a aparecer na vida da Filipa Leal.
Para tornar este momento entre amigas ainda mais encantador, a poetisa brindou-nos com a leitura de poemas de Adrenalina, a sua obra mais recente, e versos inéditos.

Tudo no Amor Faz do Nada um Tudo com Rui Couceiro e Lídia Jorge
O meu contacto com Lídia Jorge aconteceu através do extraordinário Misericórdia, que me arrebatou por completo durante a leitura e ainda mais quando percebi o propósito que lhe deu origem. Por isso, não podia perder a sua sessão na Feira do Livro do Porto.
A fila para entrar parecia interminável e, pela primeira vez enquanto frequentadora assídua do evento, senti que ficaria à porta, sem a possibilidade de assistir a este ciclo de conversas. Felizmente, deu tudo certo e pude escutar uma partilha que interligou o início de carreira da autora com questões históricas, políticas e sociais. A história vai apagando a memória e a literatura tem um papel imprescindível no combate contra o esquecimento. É por esse motivo que a literatura nunca se desatualiza, os temas estão sempre lá, a embalar as nossas ações, a fazer da palavra uma tomada de posição.
Com um discurso muito lúcido, mas sem perder a emotividade, Lídia Jorge falou-nos sobre como a escrita nos ajuda a organizar a vida, sobre a passagem do tempo e sobre a necessidade de termos compaixão por quem que já não consegue ser autónomo.

O Que Cresci Ouvindo com Ivan Lima e Rui Reininho
O podcast O Que Cresci Ouvindo, de Ivan Lima, não estava no meu radar e fiz por não o ir ouvir antes da sessão na Feira do Livro do Porto, para ser surpreendida quando me sentasse na Concha Acústica e escutasse a versão ao vivo com o icónico Rui Reininho.
Ponderei bastante se devia ou não incluir esta parte, mas a verdade é que não adorei a forma como a conversa foi conduzida. Entrevistar Rui Reininho é sempre imprevisível, até porque há uma capacidade inata para divagar e para interligar temas com leveza e naturalidade, mas, a certo ponto, senti que estava a assistir a intervenções paralelas. E, embora tenha valido a pena fazer parte deste momento, fiquei com a sensação de que o humor e as partilhas do músico não foram tão bem aproveitados e que as perguntas acabaram por ser monotemáticas. Também admito que possa ter sido uma má gestão de expectativas da minha parte, no entanto, estava à espera de algo mais fluído.
Apesar disso, é sempre delicioso escutar o Reininho e as suas saídas mordazes, ditas com um olhar inocente, quase como se não tivesse consciência do impacto daquilo que está a dizer. Mas magia é essa: é que sabe e di-lo com um tom que é um misto de poesia e provocação. Além disso, foi bom mergulhar na memória afetiva e descobrir a forma como a música entrou na sua vida e como o acompanha desde a infância.

Ciclo «E o Coração Que o Conte / Quantas Vezes Já Bateu Pra Nada» com os Napa
O acaso tem a capacidade de nos ir enredando a certos artistas. Embora já me tivesse cruzado com músicas dos Napa, foi só com a sua participação no Festival da Canção que me comprometi a descobrir melhor o reportório da banda — mas é curioso como a familiaridade de alguns temas se destacou. Por outro lado, como acredito que o ar na Avenida das Tílias «é bem melhor de respirar», regressei para os poder ouvir ao vivo.
Não estava preparada para ter uma casa tão cheia, mas senti-me orgulhosa por isso, senti-me orgulhosa por ver tantas pessoas juntas pelo mesmo grupo. A Deslocado é capaz de ter desbloqueado o interesse de muitos, mas foi bom sentir que não foi o único motivo e que éramos tantos a cantar outros versos. E, confesso, ouvir esse tema numa cidade que me corre no sangue foi comovente, porque reforçou o quanto não quero perder a sensação de lhe pertencer. Além disso, também partilho que, num lugar que tem os seus próprios advérbios de intensidade, achei poético cantarmos «às vezes sabe tão bem mandar alguém à merda» em plena Feira do Livro do Porto.
A energia foi contagiante e só tenho pena de não ter desfrutado de todos os pedaços da atuação, porque nem tivemos hipótese de entrar na Concha Acústica e vê-los em palco. Mal posso esperar para os reencontrar e revisitar cada um destes temas.

Concerto Sérgio Godinho & Os Assessores com Manuela Azevedo
O último dia de Feira do Livro do Porto reservou-nos uma despedida extraordinária, com o concerto de Sérgio Godinho & Os Assessores e Manuela Azevedo. Os últimos raios de sol pintaram o Rossio, enquanto a noite chegava sem pressas, e um mar de gente juntou-se para cantar temas que cresci a ouvir. Este dialeto é, de facto, mágico.
Entre versos que nos contam histórias quotidianas, inquietações, desejos e uma forte crítica social, ao mesmo tempo que nos permitem conhecer personagens icónicas, foi bonito de ver tantas gerações a acompanharem com o mesmo entusiasmo, a fazerem uma festa ainda mais bonita, a prolongarem a poesia que escutávamos desde o palco.
Não sei se foi o primeiro dia do resto das nossas vidas, mas partilhamos todos um certo brilhozinho nos olhos. E, acima de tudo, sentimos a liberdade a passar por ali.

No último dia de Feira do Livro do Porto, ainda fui à sessão de autógrafos do Hugo Gonçalves, que é sempre uma simpatia. Nota-se mesmo que a sua partilha é feita de coração, sem reações forçadas.
O Poeta de Todos os Poetas concedeu-nos boa estrela.