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| Fotografia da minha autoria |
O coração parece falhar uma batida perante a ausência, perante o silêncio do vazio, das feridas que continuam expostas pela perda. E, talvez por isso, não deixa de ser curioso o modo como se resguarda.
A escrita sempre foi a minha forma mais intuitiva de processar o que estava a viver, de alinhar pensamentos, de parar para sentir, muito na lógica do «não é terapia, mas é terapêutico», porque tenho mais facilidade em escrever do que em dizer em voz alta. Portanto, as minhas palavras adquiriram a força necessária para traduzir o que me ia por dentro, mas eram demasiado próximas, demasiado enevoadas pela situação. E por mais que saiba que não podia ser de outra forma, pelo menos numa fase inicial do caos que são as nossas emoções, também comecei a perceber que as palavras dos outros, um pouco mais distantes, conseguiam trazer uma camada de compreensão extra.
Quando me predispus a estabelecer paralelismos entre certas representações artísticas — reconhecendo que esta visão pode ter uma dose de egocentrismo — e a minha história, sobretudo por ter percebido que me retiravam do centro do furacão e me transportavam para um plano geral, quase como se me olhasse fora do corpo, compreendi que a arte talvez não nos salve completamente do abismo, mas que nos vai ajudando a curar as feridas.
educar a tristeza
O poema partilhar o mesmo céu, com particular destaque para a segunda estrofe, veio de um lugar onde tenho permanecido, atendendo a que, cada vez mais, acredito que o tempo não cura a dor, pelo contrário, intensifica a ausência, a carência, o que deixamos de poder partilhar, porque aquela pessoa já não está ali, por perto.
A ligação quebra-se pelo arco evolutivo da vida, mas nenhum processo de luto é linear. Podemos encontrar mecanismos de defesa, no entanto, os meses tornam-se cinzentos e, pontualmente, «têm dias verdes». E nós temos consciência de que é a ordem natural das coisas, ainda que continue a doer.
Há uns dias, dei por mim a verbalizar numa conversa que parece que cheguei à idade em que estamos sempre a um passo de uma despedida, se calhar, porque tive de me despedir de três pessoas num espaço de tempo relativamente curto; se calhar, porque as saudades têm sido mais evidentes. Depois, já sozinha com as minhas deambulações, percebi que isso também é consequência de um processo de luto que não começou no exato momento em que a notícia chegou — é provável que nenhum comece. Isso não foi óbvio para mim até chegar a este instante, até unir os fios invisíveis que interligam duas obras que têm sido um penso emocional.
O ano passado, tive de me despedir de uma das pessoas mais importantes da minha vida, mas a sensação que paira é a de que tive de adiar o momento em que o começaria a processar: não só pelo choque e pelo traço repentino da situação, mas também por algumas circunstâncias que exigiram que fosse eu a ser colo. E não há, aqui, qualquer tentativa de altruísmo. No fundo, se apenas for racional, até se torna conveniente, porque existe ali um período em que se eu não sentir essa perda é como se ela não tivesse acontecido. De repente, é como se pudesse viver um pouco mais dentro de uma bolha benigna. O problema, claro, vem depois, quando a realidade nos confronta e nos obriga a lidar com a tristeza.
O meu tio faleceu poucos dias antes do S. João e, como o referi nesta publicação, tínhamos tradições muitas nossas para comemorar a data. No segundo ano sem as concretizarmos, senti necessidade de ler o Educação da Tristeza, de Valter Hugo Mãe, para encontrar algum conforto. Sei que parece estanho, tendo em conta que este livro é, também ele, uma forma de lidar com o luto e a perda, mas sendo do autor que é sabia que podia ir sem reservas, porque encontraria sempre uma forma de validar a nuvem que pairava no meu peito.
De facto, não me enganei, visto que os textos me fizeram olhar para a despedida e para a saudade de outra perspetiva. Aliás, fizeram-me perceber que não há qualquer problema em trazermos a tristeza para a mesa, só não podemos ferir quem nos falta com essa tristeza. Ela não desaparece, mas nós continuamos cá para «continuar a lembrar, [para] continuar a amar». O vazio deixa-nos sombras como herança, mas é possível vermos — e vivermos — para além dele.
foguetes e a dor que reacende
Fui orbitando nesta noção de que «a saudade cresce para ser uma festa em redor de quem amamos», até que, dias depois do S. João, o Lhast lançou o seu mais recente álbum, o Violetta, e uma das música que o compõem me fez recuar e voltar a ficar dividida «entre a folia de ainda vivermos e o exercício da saudade». Comecei a ouvi-la e houve versos a ler-me por dentro. E, por esse motivo, precisei de um pouco mais de tempo para processar a canção — que, hoje, é uma das minhas favoritas.
Eu não tenho «manos [que] lançam foguetes lá fora na minha rua», mas havia foguetes na rua a relembrar que era dia de festa e que as festas em família são a «reiteração da força de estarmos juntos». Por outro lado, não «passou mais um ano, mais doze voltas à Lua», mas passou mais um S. João, mais um ano sem o manjerico à mesa, sem as conversas sobre a escrita, o Porto, o MEC, a quantidade de histórias que lhe contava em miúda, porque não conseguia estar calada. E a melodia foi-me embalando e eu fui ficando destruída com os versos «a ver que essa vida 'tá a passar num instante», «tive a dançar com a ideia de te voltar a ver/Mas o tempo não me dá o quanto eu queria dele», «E tudo o que me deste eu nunca vou esquecer», «Não muda nada daquilo que ficou/Eu vou contar a tua história até me faltar a voz», porque são demasiado próximos, porque traduzem a falta que me passou a habitar.
O Violetta tem sido presença constante nos meus dias, mas precisei de deixar a Foguetes num lugar distante. Ou, melhor, precisei de criar um filtro emocional até me sentir preparada para a escutar da forma em que me serviria: sabendo que esta ferida permanece exposta, mas que eu ainda cá estou para recordar. No fundo, precisei de um pouco mais de tempo para a ouvir e ser capaz de ir a todos os recantos sombrios que uma perda reabre.
O que chorei (e continuo a chorar) com esta música não está escrito, mas tem sido catártico — também quando penso em todos os simbolismos associados —, uma vez que me tem ajudado a pensar, a reorganizar por dentro, a encontrar os pontos de luz que recuperam a esperança e a capacidade de encontrar a beleza no caos — não com o intuito de romantizar a mágoa, mas com a intenção de mostrar que a tristeza «não se quer vencedora» quando falamos de quem amamos.
Existe, neste álbum, um dialeto que me parece vir de lugares muito íntimos, mas a forma como o Lhast construiu as narrativas dá-nos margem suficiente para as transportarmos para a nossa realidade. Eu não sei se a origem da Foguetes se reveste deste tipo de perda (talvez não, ou talvez não na totalidade), mas impactou-me desta maneira. Ele nunca o saberá, mas estar-lhe-ei eternamente agradecida por ter trazido este tema para a mesa e, sobretudo, que a partir da sua transversalidade e vulnerabilidade me tenha permitido colar alguns fragmentos que continuavam soltos, sem que os soubesse traduzir com esta precisão.
A primeira vez que ouvi a música, senti que tinha voltado ao ponto de partida, que a gestão emocional que consegui com o livro do Valter Hugo Mãe se tinha perdido, porque voltei a agarrar-me ao peso no peito, ao que ficou por dizer, ao lugar que nunca mais será ocupado, ao manjerico que nunca mais receberei do tio das barbas. Mergulhei nesta letra como quem fica numa divisão às escuras e depois entendi que o luto é sempre feito destas oscilações e que vamos navegando no ritmo que nos permite vir respirar à superfície.
A ligação sofreu uma metamorfose, mas eu sei que continuarei a escrever para que a história nunca se perca.
como a arte vai curando as feridas
A memória, como escreveu Valter Hugo Mãe, é a única possibilidade de regresso. E tanto ele, como o Lhast abriram essa porta. Aliás, através de cada uma das suas visões sobre o assunto, permitiram que eu voltasse a pontos que a mágoa ocultou, e fizeram-no de uma forma complementar, num diálogo que não foi intencional, mas que, para mim, resultou nessa simbiose.
A vida está «a passar num instante» e mesmo que a arte não venha para nos salvar, mesmo que o seu propósito seja outro, a voz destes dois artistas trouxe-me alento, porque me mostrou que não estou sozinha; porque me mostrou que as nossas dores podem vir de sítios distintos, mas que há alguém a compreender o limbo onde permanecemos, a saber que tudo o que é invisível nos dilacera. Acredito que a arte também nos nutre muito por isso: por dar voz ao que nem sempre sabemos comunicar (por ser demasiado recente, duro ou uma combinação de vários fatores).
Quando assumi que Educação da Tristeza e Foguetes estavam numa conversa silenciosa, foi precisamente por sentir que nem o livro, nem a canção ocultam a mágoa, foi por sentir que ambos optam por partir desse lugar sombrio para nos incentivar a lidar com todas as suas ramificações, porque só assim seremos capazes de avançar, independentemente do tempo que necessitarmos para esse efeito. Ademais, senti que nos dois trabalhos consegui libertar aquele grito que me estava a sufocar e sair apaziguada.
Continuarei a viver a minha vida com plena consciência de que a solidão se instala sem hora marcada, que, se tivesse essa possibilidade, pediria um pouco mais de tempo, que existirá sempre um detalhe a ativar as saudades; continuarei, sabendo que a linha entre a queda e o recobro é ténue e frágil. Mas, enquanto tiver as suas palavras por perto, nunca caminharei desabrigada, desamparada, como se fosse só eu nesta estrada curvilínea. Por isso é que a arte nos vai curando as feridas — e tanto o Educação da Tristeza e a Foguetes me puxaram para um abraço —, porque balançamos na dualidade, mas vamos percebendo que é no amor pelas nossas pessoas que nos encontraremos sempre — e que nenhuma ferida será superior à sua memória.