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Fotografias da minha autoria |
A Elena Ferrante era uma das autoras que mais queria descobrir: não só por me cruzar com A Amiga Genial em todo o lado, quase a toda a hora, mas também por haver um grande mistério associado à sua verdadeira identidade. Continuo a assumir que é uma escritora, porque acho que há partes que só poderiam ter sido escritas por uma mulher (são muito fiéis a certas realidades que sentimos na pele), mas tudo o resto paira na incerteza. Ainda assim, a minha primeira experiência não correspondeu às expectativas que tinha criado.
Em 2020, a história impressionou-me em alguns aspetos, mas não me deixou com vontade de avançar para os próximos volumes da Tetralogia Napolitana, talvez por não ter criado uma ligação com a escrita. No entanto, como A Amiga Genial foi leitura conjunta no Livra-te, em janeiro, decidi dar-lhe uma nova oportunidade e avançar para a leitura com uma abordagem diferente: encarar este volume como o primeiro capítulo da história.
Fez toda a diferença pensar no primeiro livro como uma parte de algo maior. Embora a minha opinião inicial não tenha mudado por completo, o certo é que fiquei com vontade para descobrir as narrativas seguintes.
história do novo nome
O segundo volume, que começa após o casamento de Lila, permite-nos acompanhar a reta final da adolescência das protagonistas e o início da idade adulta. Tendo em conta tudo o que viveram antes, talvez já não reste qualquer traço de inocência, até porque existiram várias situações que as obrigaram a crescer rápido.
A sentirem-se «num beco sem saída», sufocadas pelo bairro e por um destino turvo, o que mais me impressionou nesta parte da história foi mesmo a pressão dos lugares: fora ou dentro deles, há aspetos que se colam a ambas e que acabam por influenciar cada decisão tomada - mesmo que nem sempre se apercebam disso. Por outro lado, intrigou-me a distância cada vez maior entre as duas amigas. Aliás, acho que isso trouxe outro fôlego ao enredo, porque me permitiu ter uma noção mais clara de ambas.
A instabilidade social e política, complementada por um clima de violência, funciona quase como uma personagem extra e é mesmo interessante tentar perceber os esquemas, as intrigas, os negócios dúbios e as ligações improváveis em prol de uma certa autoafirmação e de jogos de poder inesgotáveis e problemáticos.
História do Novo Nome abre-nos a porta para um lugar íntimo. Por um lado, deixou-me com a certeza de Lila estar a crescer enquanto uma das minhas personagens favoritas, por toda a sua complexidade, e, por outro, deixou-me a pensar que Lenù se está a libertar de algo que nem ela compreende. Gostei da vulnerabilidade.
história de quem vai e de quem fica
O terceiro volume permite-nos conhecer a versão de Lila e de Lenú num tempo intermédio, compreendido entre os 20 e os 30 e poucos anos, «no mar alto dos anos 70, num cenário de esperança e incerteza, tensões e desafios até então impensáveis». Além de tudo isto, sinto que nos permite fechar algumas teorias e começar a atar as pontas soltas, sobretudo em relação à verdade de algumas personagens.
Descobrir esta história através do olhar de Lenù poderia ser bastante enviesado, mas, confesso, tornou-se uma dinâmica interessante, porque acredito que ela vai desconstruído as certezas com que se revestiu e compreendendo os motivos que sustentam algumas decisões de Lila e de todas as outras personagens com quem convive. Em simultâneo, achei interessante sentir que, como as duas amigas se cruzam pouco, há uma certa calma a pairar, embora também persista a sensação de estarmos sempre a um passo do abismo.
O que mais me entusiasmou neste livro foi, por um lado, este constante entra e sai, esta noção de que a presença física é oscilante, e, por outro, que nunca ficam totalmente longe: quanto mais não seja, há sempre um pensamento que as recupera, que as faz idealizar o que a outra faria naquele lugar. Com estilos de vida que aparentam distanciá-las ainda mais, o bairro continua a exercer uma influência gritante nos seus destinos. Por mais que se movimentem num sentido contrário, há uma força que as atrai, que as derruba, que as prende àquele lugar e à sua história por contar.
O discurso, mesmo que não pareça, tem sempre um tom político e a verdade é que as lutas que travam, muitas vezes de um modo silencioso, são um reflexo disso mesmo. Aqui, é mais notório o crescimento do fascismo, as revoltas e as ligações poderosas da máfia. Sempre foi claro, por exemplo, que a sociedade é amplamente machista, opressiva, mas também percebemos que o feminismo começa a conquistar o seu espaço, ainda que lentamente. E Lila, uma vez mais, tem um impacto fabuloso em todas estas questões, porque sempre se preocupou em estar no lado certo da História. Podem faltar-lhe os meios, mas nunca as convicções.
História de Quem Vai e de Quem Fica aborda temas atuais e cenários que se continuam a repetir e a preocupar, ainda que possa explorar outras situações paralelas menos intensas. Ademais, mostra-nos o quanto duas vidas tão distintas conseguem ter elos comuns. E deixou-me a pensar na influência de uma personagem em particular.
história da menina perdida
O momento da despedida aproxima-se e, admito, este volume foi o que me deixou mais apreensiva, porque não sabia se estava preparada para descobrir todas as áreas cinzentas desta narrativa e os possíveis desfechos das personagens.
Lenù regressa a Nápoles «para viver com Nino Sarratore», o que me levantou muitas questões: por um lado, por não confiar em Nino e, por outro, por sentir que esta relação poderia desvirtuar todo o crescimento de Lenù, que parecia estar mais certa de quem era e das suas verdadeiras motivações. No fundo, sinto que ela estava a encontrar o seu caminho, mas que a figura deste homem a atirou para fora da rota. Mais tarde, de volta ao bairro que a viu crescer, nem tudo foi problemático, porque acabou por recuperar a ligação cúmplice com Lila, uma vez que engravidaram ao mesmo tempo.
Perante novos desafios, dentro de um ambiente sempre intenso e conflituoso, o que mais me entusiasmou foi perceber que há desígnios que se repetem, quase como se fossem uma passagem de testemunho (ou viessem colados ao ADN), e que há detalhes do passado que adquirem uma nova força neste enredo. Aquilo que poderia ter sido apenas um pormenor tem, na realidade, um significado maior.
A minha relação com a tetralogia foi evoluindo, tal e qual como as protagonistas, e este capítulo final acabou por conquistar um lugar de destaque no meu coração, porque interliga uma série de questões que me foram fascinando ao longo da história: o impacto dos lugares, das pessoas, do que se destrói e precisa de ser reerguido, da segurança que parece sempre comprometida; o impacto de não se ficar em silêncio e de se lutar, apesar do medo, das repercussões, das portas que se fecham sem piedade.
A escrita continua demasiado crua, mas a construção da narrativa conquistou um brilho diferente. E, verdade seja dita, Elena Ferrante traçou um retrato impressionante do país, das tensões políticas, da violência e das incoerências do ser humano. Não creio que as pessoas sejam só boas ou más, habitam espectros, e isso fica muito evidente nestes quatro volumes. Questionei muitas vezes a honestidade da amizade entre Lila e Lenù, porque espelham comportamentos competitivos levados ao extremo, toxicidade e, por vezes, pouca compreensão. Ainda assim, percebi que nem neste assunto conseguimos uma imagem consensual, porque há dinâmicas distintas dentro de diferentes relações. E, lá no fundo, sempre foram um espelho da sociedade, ainda que tentassem fazer o melhor que sabiam, com as ferramentas que tinham ao seu dispor.
História da Menina Perdida deixa-nos na dúvida e apreciei isso. E, até para mim, será difícil largar este bairro.
notas literárias
- Gatilhos: Violência, relacionamentos abusivos, saúde mental, luto, drogas, linguagem gráfica e explícita
- Lido entre: fevereiro e abril (um volume por mês)
- Formato de leitura: Digital
- Género: Romance
- Pontos fortes: O bairro, as questões sociais, a evolução
- Personagens favoritas: Lila e Enzo
- Banda sonora: My Brilliant Friend (soundtrack seasons 1, 2, 3 e 4)