capicua na casa da música

   

As minhas referências musicais foram-se alicerçando àquilo que tentava descobrir do mundo. Ou, antes, tornaram-se mais evidentes por serem espelho de espaços e temas que, pouco a pouco, despertaram o que, pela maturidade, permanecia adormecido por dentro. E encontrei esse dialeto em bandas como os Dealema e os Mind Da Gap, por exemplo, às quais ainda acrescia o vínculo de trazerem sempre a Invicta nas canções.

O fascínio pelo hip hop foi-se fortalecendo, muito pelo seu traço democrático e por usar a palavra como arma: não de arremesso gratuito, mas como forma de intervenção e/ou de cura, tendo em conta os estilhaços que nos fragmentam. Não obstante, admito, não estava assim tão enturmada no meio para identificar os nomes menos conhecidos e comecei a sentir falta dessa representatividade no feminino. Não me interpretem mal, os artistas que mencionei antes continuam a ser importantes na minha trajetória, aliás, moldaram o meu crescimento, deixando-me mais atenta a questões sociais, no entanto, também queria ter mulheres a pisar os mesmos palcos e ouvi-las a cantar as dores e os sonhos que eu sentia na pele - ainda que não soubesse dar um nome a esta inquietação, ainda que não tivesse consciência plena desta necessidade. E foi através de uma «Ana só? Sim, só Ana», que queria ser pirosa, vestir de cor-de-rosa e ser prof. de windsurf que fui sentindo a mudança a chegar. E, de repente, senti-me ouvida.

A poesia da Capicua entrou-me em casa, fazendo morada em mim. Não pediu licença, mas soube sempre dar voz às minhas sombras, aos rasgos de luz, ao desconhecido, aos valores que fui ancorando à minha essência. Nunca fiz um Gaudí, mas já colei alguns caquinhos a partir dos seus versos. E esse, para mim, será sempre um dos maiores poderes das canções e dos seus compositores/interpretes: a capacidade de nos darem alento. Curiosamente, ainda não tinha tido oportunidade de marcar presença num dos seus concertos, mas não podia perder o de apresentação do seu mais recente disco.

Um Gelado Antes do Fim do Mundo traz esperança, interligando a arte e a natureza nas palavras, servindo quase como um «antídoto […] num mundo em colapso». A doçura da imagem não a impede, mesmo assim, de tocar em todas as feridas, porque foca-se no patriarcado ainda tão audível, na carência de espírito crítico, na angústia de um futuro incerto, nas cidades que parecem empurrar para longe as suas pessoas, na cultura da imagem, nas exigências que permanecem díspares, nos direitos que, pouco a pouco, nos parecem retirar sem piedade. Por outro lado, não descarta a empatia, o encanto, a humanidade de quem faz da sua arte uma porta aberta para não deixarmos de lutar.

Numa semana em que ser mulher estava particularmente difícil (porque um crítico crê ser aceitável julgar uma obra pelo físico da sua autora, porque uma fã acha correto criticar uma mulher por se ter relacionado com vários músicos, porque um humorista se sente no direito de tecer as maiores barbaridades sobre uma colega), o concerto na Casa da Música veio na altura perfeita. Como canta a Capicua, «por cada grunho, um punho no sentido contrário», por isso, fui fazer parte deste combate/debate musicado.


A Sala Suggia esgotou para receber a rapper portuense e foi extraordinário assistir a este momento, a este feito, não só por ver uma das minhas artistas favoritas ao vivo, mas também por ver a forma como desconstruiu por completo a energia do lugar. A sala é linda e associo-a sempre a espetáculos mais estáticos, se é que é justo dizê-lo desta forma, talvez pela necessidade de permanecer sentada. A Capicua não ficou deslocada naquele palco, mas, como lhe confidenciamos no final, foi bom ver a sua arte a chegar a uma sala que parece estar mais adaptada a outros estilos musicais.

Com um tom de intervenção, mas sem perder um traço intimista, «como quem conta um segredo», o espetáculo alternou entre canções e poemas, contando com projeções de André Tentúgal. Para abrilhantar ainda mais a noite, teve as Sopa de Pedra como convidadas. Numa cadência sonora que explora «guerras, alterações climáticas, crises sociais, crescimento de tensões e de movimentos de extrema-direita», torna-se difícil, para não dizer impossível, ficarmos indiferentes à mensagem e aos cenários criados. E, por esse motivo, senti-me a ficar de pele eriçada, comovida e embalada na fluidez do discurso. Por isso, recuei de bom grado a Madrepérola e senti-me com vontade de dançar. Não estava a desfrutar menos do concerto por estar sentada, mas parece que renascemos todos naquela sala quando a Capicua pediu ao público para se levantar.

A teenage Ana só pode estar orgulhosa do percurso construído com passos firmes e da sua arte. Quando penso em poesia e no quanto esta tem a força de nos impulsionar, o nome da Capicua surge sempre associado à sua matriz, porque borda as palavras com mestria, associando-nos a uma luta que, cada vez mais, é urgente ser de todos nós.

Vi-a em palco e gritei «fogo, fogo», como pede na canção. E, acima de tudo, voltei a casa convicta de que, em ascensão, a Capicua chegou mesmo com a caneta certeira.

Comentários

  1. Deve ter sido um espectáculo memorável. *.*

    Beijinho grande, minha querida!

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  2. Parece ser um disco grandioso. Adorei o post. Obrigado por compartilhar.

    Boa semana!

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    Até mais, Emerson Garcia

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  3. Que legal deve ter sido o incrível o show Andreia bjs.

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