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memória dois

by - abril 11, 2025

Fotografia da minha autoria



O sítio da minha infância amanheceu chuvoso, enegrecido, numa aparente apatia que desacelera os passos. É curioso como os nossos lugares acompanham o nosso estado de espírito, mesmo sem terem essa noção. São uma extensão subtil, ponderada, da alma que construímos com o tempo, mesmo quando já não o temos. O sítio da minha infância amanheceu desolado e em lágrimas, como eu.

Ouvi o sino da Igreja a bater três vezes e estremeci. Lá fora, ecoavam, ainda, as palavras em surdina de alguém enlutado, mas nenhuma daquelas pessoas tinha perdido o que eu perdi. Além do mais, desfrutavam de uma liberdade que me escapava por entre os dedos. Eu, deste lado, sentia na pele a clausura imposta, porque recusava-me a compactuar com aquele festival encenado. Não seria justo, não preservaria a tua memória, o pouco que ainda julgava conhecer de quem foste.

Tocaram à campainha, mas não abri a porta. Simulei uma ausência que ninguém compraria, porque a persiana permanecia levantada. E cá na terra todos sabiam que esse era o sinal de que a casa não estava desocupada – talvez não seja só aqui, apenas não tenho maneira de confirmar. Mas nem isso me preocupava mais.

– Talvez te arrependas de não ir, mulher. Deixa o orgulho de lado numa altura destas, vai por ela.

Revirei os olhos, mesmo que, em parte, concordasse com aquelas palavras. Só que ela não sabia do orgulho todo que engoli, nestes anos, para estar e não ser só uma fotografia perdida no álbum de memórias que já nem abrem.

– Eu fico no fundo na Igreja, mas não deixes de ir, mulher. Ali, não acontecerá nada, mas terás a tua despedida.

Nesta altura, senti o rosto molhado, lágrimas gordas de um sofrimento desigual, de uma revolta que tenho silenciado, mas que necessita de ser expiada. Encostei-me à porta, pronta para a abrir, porém, não fui capaz, algo me impediu. E deixei-me estar. Em silêncio, aparentemente conformada, só à espera que a vizinha desistisse e fosse ocupar um dos bancos de madeira.

– Eu sei que estás em casa, provavelmente a culpares-te por não apareceres. Abre lá essa porta, por favor. O que é que te mantém presa?

Não respondo, já nem respiro em condições, sentindo as palavras como acusações, como falhas, como se o erro tivesse sido meu. Não importa, não procuro culpados. Só quero que se apazigue o buraco que carrego no peito, porque me arrancaram a minha força motriz.

– Já percebi que não vais, vou eu. Eu faço a despedida pelas duas.

O que ela não sabe é que já me tinha despedido há muito tempo.


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6 comments

  1. A despedida é sempre um momento doloroso.

    Este texto deixa-nos um aperto no peito.

    Ansiosa pelo que se segue.

    Beijinho grande, minha querida!

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    1. Custa sempre imenso, até porque nunca estamos bem prepadados para esse momento

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  2. Estou curiosa com o que se segue! :)

    www.amarcadamarta.pt

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  3. Tu escreves tão bem, minha querida *.* Obgrgada por partilhares a tua escrita connosco *.*

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