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Fotografia da minha autoria |
O mês de abril reencontrou-me com um autor que se tem tornado num caso sério de admiração. Depois de me perder de encantos por Mãe, Doce Mar e Perguntem a Sarah Gross, foi tempo de descobrir o seu segundo romance publicado, vencedor do Prémio LeYa, em 2017. Confesso, ainda assim, que a experiência foi ligeiramente diferente.
quando a realidade tem diferentes perspetivas
Os Loucos da Rua Mazur leva-nos até à Livraria Thibault, que será palco de memórias dolorosas e de uma tentativa de ajustar contas com o passado. Em 2021, Yankel, um livreiro cego, recebe a visita de Eryk, seu amigo de infância e um escritor famoso, com o propósito de escrever «o livro que o há de redimir». Os dois já não se viam «desde um terrível incidente, durante a ocupação alemã, na pequena cidade onde cresceram» e este reencontro colocará em evidência todas as feridas que ainda estão por sarar.
A abordagem de João Pinto Coelho pareceu-me interessante, atendendo a que quebra um pouco a unilateralidade do período histórico retratado e destaca a fragmentação da sociedade polaca, numa «cidade de cristãos e judeus, de sãos e de loucos, ocupada por soviéticos e alemães». No entanto, tive alguma dificuldade em relacionar-me com a história, talvez pelos protagonistas que escondem tantas sombras e discursos dúbios, talvez pela quantidade de personagens que vão desfilando nesta viagem no tempo. Só que dei por mim a ficar ancorada na travessia, porque, ao assentarem as cinzas, vamos descobrindo pequenos rasgos de lucidez, embora nos revoltem os cenários bárbaros.
«- (...) Tens coisas que me pertencem.
- Falas das sombras, Eryk? Os anos gastam-nas, não sobra nada.»
O contexto do massacre, afinal estamos perante a Segunda Guerra Mundial, já foi explorado de várias maneiras, mas, mesmo não sendo a leitora mais entendida nesse facto, creio que o autor encontrou uma perspetiva distinta, que não só nos impacta pela ausência de dignidade e de humanidade, como também nos faz questionar se existirão papéis que nos passaram despercebidos, se assumimos todas as alusões como certas e deixamos de procurar pelas micro verdades que se perdem com o tempo, com a morte, com as memórias que se esbatem. E mesmo que o seu objetivo não seja ter, aqui, um documentário escrito, porque não deixa de ser um romance, parece-me que nos abre a porta para que se encontrem novas formas de conhecermos a História.
Independentemente do contexto, interessa-me sempre observar o traço humano de cada narrativa e, para mim, Yankel e Eryk são uma metáfora perfeita das diferenças, das distâncias que se criam, do quanto a mágoa contamina as relações e do peso que a herança religiosa e cultural assume num vínculo de amizade. Se, pelo meio, a paixão ainda for colocada na equação, talvez se compreenda que os alicerces não tenham sido construídos com a solidez necessária. Portanto, estamos perante diferentes divisões.
Ficou o terror, o ressentimento, os estilhaços de uma confiança quebrada e os efeitos de todas essas camadas no quotidiano. Como é que se vive nestas condições? Como é que se restitui a esperança, os laços afetivos, a fé? Como é que se avança sabendo que, a qualquer momento, a nossa vida pode desabar? É esta voz da consciência que vamos encontrando ao longo do livro, ainda que nem sempre sejamos capazes de encontrar respostas animadoras. Ademais, através das vivências dos protagonistas, que se unem por causa de um terceiro elemento, Shionka, tentamos sacudir a inércia e bordar esta manta de retalhos que esconde tantos segredos e situações pessoais mal resolvidas.
«(...) acima da gargalhada havia dois olhos molhados, comovidos pelo tanto que podiam as palavras, mesmo nas mãos de quem poucas palavras tinha.»
Ser quase um livro dentro de outro livro é entusiasmante, no entanto, sinto que se perdeu na quantidade de camadas que procurou explorar, condicionando a minha envolvência e, até, aquilo que considero ser a parte mais valiosa da história: o facto de as personagens terem resistido, mas estarem emocionalmente debilitadas. Nota-se que continuam a ser assombradas pelo passado, mas gostava que, ao recuperarem certas memórias, não ecoasse a sensação de terem ficado à superfície. Não creio que o ideal fosse mergulhar sem critério no sofrimento, mas, se calhar, se as mantivesse mais tempo no presente conseguiria ter compreendido melhor os seus fantasmas.
Os Loucos da Rua Mazur não deixa, ainda assim, de dar voz àqueles «que viram o inferno de frente», até porque se baseia nos acontecimentos iniciados a 10 de julho de 1941. E vale muito pela escrita de João Pinto Coelho, que tem a capacidade de nos transportar para diferentes emoções e estados de espírito. No fundo, apenas queria que existisse uma ligação maior entre as histórias, no entanto, talvez seja esse o seu propósito: mostrar que existem várias faces e ângulos para os mesmos acontecimentos.
notas literárias
- Gatilhos: Linguagem gráfica e explícita
- Lido entre: 14 e 18 de abril
- Desafio: 5 autores para 2025
- Formato de leitura: Físico
- Género: Romance
- Pontos fortes: A forma como nos transporta para diferentes emoções/estados de espírito
- Banda sonora: La Vie en Rose, Édith Piaf | Irreal Social, Ban | A Morte Saiu à Rua, Bezegol
2 Comments
Parece ser um livro fabuloso e inesquecível!
ResponderEliminarBoa semana!
O JOVEM JORNALISTA está no ar cheio de posts novos e novidades! Não deixe de conferir!
Jovem Jornalista
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Até mais, Emerson Garcia
Tem aspetos muito interessantes, mas confesso que não é o meu favorito do autor
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