mãe, doce mar, joão pinto coelho

Fotografia da minha autoria



Gatilhos: Saúde Mental


O Alma Lusitana (uma proposta literária para lermos mais autores portugueses), este ano, dividiu-se em duas categorias: autores para descobrir e autores que já tinha lido e recomendava. Focando-me, sobretudo, no primeiro grupo, o denominador comum entre eles era o facto de já estarem no meu radar há imenso tempo, porém, como seria expectável, a minha curiosidade era maior em relação a alguns dos nomes, tendo o de João Pinto Coelho nos lugares cimeiros da lista. O sorteio ditou que apenas o lesse no final do ano, portanto, foi uma longa espera, no entanto, valeu por cada segundo.


infância, reencontro e coração apertado

Mãe, Doce Mar conta-nos a história de Noah: um rapaz que viveu toda a sua infância num orfanato e que aos doze anos conheceu a mãe, Patiente. Esse encontro ocorreu no átrio de um aeroporto de Luisiana e, a partir desse instante, a vida deles mudou. Só que, rapidamente, compreenderemos que há pontas suspensas que (n)os inquietam.

Os motivos do abandono nunca são proferidos e sinto que isso influencia a forma como avançamos na leitura: com a sensação de que existe algo a ser omitido, de que talvez seja preferível encontrar outros focos de atenção, para que se construa um presente menos condicionado pelo passado. E, pelo menos para mim, essa sensação ampliou-se pelo facto de haver um terceiro narrador, para além de Noah e de Patiente: Frank O’Leary, um padre jesuíta excêntrico. Através das suas vozes e dos seus pontos de vista, teremos acesso a fragmentos de narrativas que não sabemos se se cruzarão.

A maneira como o autor estruturou a história embala-nos por um mar ora leve, ora revolto, com uma carga de tristeza e de ternura que se complementa. Se, por um lado, vemos uma família a procurar compensar ausências, a lamber as feridas e a estreitar laços, por outro, vemos uma barreira muito ténue a querer impedir essa aproximação. Mesmo que não saibamos definir o que é, existe um prenúncio a pairar nas palavras. E, depois, temos a força de cada um dos lugares mencionados - por exemplo, Cape Cod, o teatro de Connecticut, Boston -, que emana uma aura ainda mais misteriosa, imprevisível, como se o destino daquelas personagens dependesse inteiramente deles.

«Afinal, pouco passávamos disso, dois rochedos no oceano que se tinham à distância, banhados pelos silêncios e todas as meias-palavras que lançávamos à sorte como garrafas à água»

Num plano um pouco metafísico, somos confrontados por notícias e detalhes que compõem os cenários. Achei mesmo engenhoso o modo como João Pinto Coelho foi atando todos estes nós, como nos manteve a navegar, mas sem sabermos bem para onde estávamos a ir. E foi essa uma das razões que me fez apaixonar por este livro. Ademais, achei fascinante que tenha partido de algo pessoal para criar um enredo tão surpreendente. Enquanto leitores, ficamos sempre na dúvida sobre as partes que poderão ser ficção e as que poderão ser biográficas, contudo, isso não compromete a experiência, até porque somos inebriados pelo que é dito e pelo que ecoa no silêncio.

Mãe, Doce Mar seria extraordinário se fosse apenas a história de um reencontro entre uma mãe e um filho, mas vai muito para lá dessa barreira. Talvez seja um pouco sobre aquilo que tentamos recuperar e que nos vai escapando como uma brisa, talvez seja sobre como a literatura nos liberta ou sobre a própria noção de família. Talvez seja um manifesto sobre tudo isto e sobre a necessidade de sabermos onde atracar. Com um tom honesto e uma escrita lindíssima, fui arrebatada do início ao fim, uma vez que nada nos prepara para as reviravoltas, nem para tudo aquilo que nunca chegou a ser.


🎧 Música para acompanhar: Dear Old Donegal, Irish Lads Of Limerick


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