memória um
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Fotografia da minha autoria |
Era capaz de reconhecer o teu sorriso em qualquer parte do mundo, mesmo que já nenhum fragmento de lucidez me restasse. Quando te vi do outro lado da janela, foi como se renascesse, foi como se este lugar fosse menos frio e castrador.
Observo os teus passos até te perder de vista, desejando, secretamente, que me tenhas visto, que venhas até mim. Agito-me na cadeira com a possibilidade, mas depois percebo que tal não seria possível. Ouço passos atrás da porta, mas não são os teus. Não poderiam ser. Estes são pesados, firmes, de quem vem com uma missão muito específica. Os teus eram leves, de quem flutua, porque sabe que a passada não precisa de ser funda para deixar marca.
Há uma hesitação que não consigo decifrar. Talvez seja arrependimento, talvez seja um sonho que me impeça de discernir a realidade. Apenas sei que permanece um hiato entre o som compassado e o lugar que me afasta do mundo. E eu deixo-me estar, porque não é como se tivesse para onde ir. Mas fico ausente, na expectativa, a escutar vozes que se vão diluindo em silêncio.
De repente, contemplo só esta réstia de memória e a profundidade do silêncio. Não há mais nada para lá destas paredes, só eu e um passado desatado, que já não reconheço. É tão bonito este lugar de fala muda, onde não me cobro qualquer entendimento. No entanto, há uma peça que me falha e eu acuso sempre essa ausência. De repente, o silêncio perde espaço e volto a escutar passos pontuados, passos de quem conhece este chão e não se perde da sua rota. Enquanto isso, mantenho-me imóvel, expectante, só para prolongar mais a fantasia destes pensamentos. E, então, os passos voltam a estagnar e, deste vez, entraram vozes.
– Como é que ela está hoje?
– Relativamente apática
– Falou alguma coisa?
– Não, só com o seu silêncio habitual.
[prólogo]
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