enquanto lisboa arde, o rio de janeiro pega fogo, hugo gonçalves
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Fotografia da minha autoria |
O livro Filho da Mãe impulsionou a minha vontade de explorar toda a obra de Hugo Gonçalves e tenho feito uma travessia inversa, ou seja, ir primeiro aos títulos mais recentes e, aos poucos, recuar aos mais antigos. Aproveitando que a Companhia das Letras reeditou o seu quarto livro, fui descobrir uma história entre Portugal e o Brasil.
a capacidade de observar o mundo
Enquanto Lisboa Arde, o Rio de Janeiro Pega Fogo permite-nos conhecer «um homem sem nome», que foge da capital portuguesa para uma das cidades brasileiras mais emblemáticas, com a intenção de recomeçar noutro lugar. Percebemos, de imediato, que está a fugir de algo - ou será de alguém? -, mas não sabemos os motivos. Apenas sabemos que pretende deixar o passado para trás e que leva consigo uma encomenda.
A premissa aparenta ser simples, no entanto, somos confrontados por uma imagem antagónica: se, em Portugal, estava afundado «na depressão coletiva da grande crise financeira do século», na Cidade Maravilhosa é recebido pelo ritmo frenético das ruas, pela Natureza, pela facilidade da conversa, pelas festas, pela cor, pela leveza dos dias. Num curto espaço de tempo, é como se tivesse entrado numa realidade alternativa e aquele fosse o melhor sítio onde poderia estar. E era, porém, a excentricidade da vida boémia e o contacto com as pessoas erradas alterou por completo o curso da sua vida.
«É mesmo preciso queimar tudo para começar de novo?»
Não me consegui relacionar a cem porcento com as personagens, ainda assim, o que mais me fascinou nesta narrativa foi o processo de amadurecimento do protagonista, foi a sensação de proximidade e o facto de dois países tão diferentes conseguirem ter vários pontos em comum, mesmo quando estão a viver períodos socioeconómicos distintos. Além disso, achei interessante que nos mostrasse que, independentemente da nacionalidade que figura no nosso cartão de cidadão, há situações/reações que são transversais ao ser humano, principalmente quando os ciúmes são o gatilho das ações.
Nas entrelinhas vão ficando o impacto das migrações e as diferentes faces de uma fuga. Se, num ponto inicial, cremos assistir a uma fuga geográfica, rapidamente verificamos que este homem sem nome, espelho de tantos outros, procura fugir de quem é, por isso, oscila entre a obsessão e a esperança, entre o receio da perda e o entusiasmo do desconhecido; por isso, oscila entre a prontidão de uma resolução e as constantes provações a que fica sujeito, por culpa de decisões menos ponderadas.
«És tantas coisas e não consegues ser nada.»
Há muita coisa a acontecer em simultâneo, o que pode tornar o enredo confuso. Aliás, sinto que foi essa dinâmica que condicionou a minha envolvência com a história. Por outro lado, a escrita do Hugo Gonçalves fascina-me sempre, porque consegue ter um tom quase cinematográfico, ao mesmo tempo que nos leva a refletir sobre as pessoas com quem nos cruzamos, sobre as suas vidas, sobre as dificuldades que passam e, até, sobre os sonhos que vão deixando guardados na gaveta. A partir de vivências pessoais, o autor traça um cenário duplo, no qual a incompreensão e a impaciência coabitam.
Enquanto Lisboa Arde, o Rio de Janeiro Pega Fogo não me arrebatou como esperava. Não obstante, deixou-me a pensar na quantidade de coisas que construímos dentro de uma ilusão, no que cabe no vazio e em todas as reviravoltas que abraçamos no momento em que deixamos «os nossos lugares de origem». Quando partimos, há uma aura de mistério em relação ao que poderemos encontrar, mas talvez o amanhã compense.
notas literárias
- Gatilhos: Violência, Drogas, Cenas Explícitas
- Lido entre: 26 e 28 de fevereiro
- Formato de leitura: Físico
- Género: Romance
- Pontos fortes: A metaliteratura, não ser uma narrativa datada e ser uma obra de formação, que nos permite acompanhar o crescimento do protagonista
- Banda sonora: Oba, Lá Vem Ela, Jorge Ben Jor | Brasil Pandeiro, Novos Baianos | São Paulo, Yuri NR5 | Samba da Bênção, Maria Bethânia | Jacarandá, Ana Moura
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