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| Fotografia da minha autoria |
O meu percurso escolar começou na primária e, embora as memórias se esbatam, sei que o abracei com todo o entusiasmo. Há uma certa magia nas possibilidades, no facto de podermos aprender coisas novas, de se construírem vínculos com aquilo que vem nos manuais, mas também no recreio, na interação com os pares e com aqueles que assumem a responsabilidade de ensinar, educar, orientar. Só que esta realidade não era transversal a todos, algo que podemos verificar em mais um dos Retratos da Fundação.
uma escrita que dignifica
Um Dedo Borrado de Tinta conta-nos histórias de quem não pôde aprender a ler. Assim, Catarina Gomes leva-nos até à freguesia de Casteleiro, no distrito da Guarda, que tem «a maior taxa de analfabetismo», para nos mostrar o quotidiano dos habitantes desta aldeia «que não tiveram oportunidade de aprender a ler a escrever» e de que forma é que esta ausência se tornou um entreve nas suas vidas e nas tarefas do quotidiano.
Ninguém tem particular interesse em expor as suas fragilidades, por isso, existe uma tentativa evidente para arranjar mecanismos de defesa que desviem a atenção desse lado vulnerável. Apesar de os entrevistados aceitarem conversar com a autora, sente-se que há um certo desconforto por revisitarem o passado, a falta de oportunidades, o que se perdeu porque tiveram de seguir noutra direção, sem que pudessem ser eles a escolher. E, neste ponto, tornam-se ainda mais notórias as desigualdades sociais e de género, que afetam sempre os mesmos grupos. Não obstante, Catarina Gomes escuta sem pressionar, questiona sem a intenção de diminuir e cria espaço para que tenham voz e contem a sua história exatamente como a viveram, sem mascararem mágoas.
«Ao aceitar desenhar a primeira letra do seu nome para mim, e depois as seguintes, é como se concordasse viajar no tempo»
Há, em todas estas pessoas, uma sensação de incompletude, atendendo a que não são capazes de trabalhar as letras, de compreender as suas múltiplas funcionalidades e cruzamentos, mas, por outro lado, partilham uma inteligência e um brio práticos, que lhes permitiu sobreviver e encontrar alternativas. No fundo, creio que este livro nos mostra que lhes roubaram uma parte da liberdade, mas que não se tornaram mártires. Através destes testemunhos preciosos, compreendemos que existem diferentes graus de analfabetismo e que o ensino é um privilégio que continua a não ser para todos.
Um Dedo Borrado de Tinta traz-nos uma nova perspetiva acerca do nosso país e mostra-nos que a pobreza, a ruralidade e os métodos de ensino não são conceitos dissociáveis: influenciam-se e deixam marcas a longo prazo. Com uma escrita que dignifica, é uma obra que também nos mostra que estas pessoas semearam para colher, mas que nunca o puderam fazer pelas palavras, pela independência que vem agarrada à tinta, ao papel.
notas literárias
- Lido entre: 13 e 15 de outubro
- Formato: Digital
- Género: Não ficção
- Pontos fortes: Dar voz a quem nem sempre a tem, a escrita que dignifica, o tom claro, objetivo e reflexivo
- Banda sonora: Escola dos 90, Dealema | Quero é Viver, Humanos | Sete Mares, Sétima Legião | Nasce Selvagem, Resistência







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