O PODER DAS HISTÓRIAS SEM PERSONAGENS HEROÍNAS

Fotografia da minha autoria



«Abrir um livro é abrir pessoas»


As boas histórias ficam connosco para sempre, mesmo quando nos esquecemos dos seus contornos mais profundos, porque há uma memória emocional que nos recorda desse vínculo, que nos relembra do seu traço. Mas será que essa categorização depende apenas do enredo em si ou é influenciada por outros fatores?

Quando inicio uma leitura, é evidente que a narrativa é relevante, caso contrário, não existe motivação para continuar. É, portanto, imprescindível que a ação seja estimulante, para nos impulsionar a unir as pontas soltas e a compreender cada uma das suas camadas. Isso não significa que seja sempre imprevisível, tem é de ser bem construída para nos envolver. E, grande parte das vezes, esse elo é conseguido pelas personagens.

Tal como escreveu Afonso Cruz, «o território inexplorado dentro de nós é acessível através dessa imersão em personagens que nunca fomos e jamais seríamos ou talvez venhamos a ser». É por isso que tanto nos deixamos cativar, como nos afastamos de certos protagonistas: porque despertam partes da nossa identidade que nos levam a repensar o mundo (o de dentro e o de fora). Além disso, sendo «um meio de transporte para o que não somos, ou melhor, para o que somos sem ser», também nos inspiram a ser mais do que aquilo que alcançamos - ainda que não passemos de um plano imaginário - ou a abraçar a normalidade que nos habita.

Na literatura, encontramo-nos com vários tipos de personagens, cada uma com a sua importância. Ainda assim, tenho percebido que há um grupo que me está a atrair muito mais: personagens que não são heroínas, que podem ser um retrato de uma pessoa comum, que se cruza connosco na rua e até passa despercebida, porque mesmo nos livros é importante ter acesso ao quotidiano - por mais desinteressante que aparente ser.

É claro que também adoro ler para descobrir cenários, por vezes, inalcançáveis, com culturas e mentalidades distintas do meu meio. Mas também preciso de abrir um exemplar e encontrar personagens com dilemas parvos como aqueles que eu tenho, com problemas ou conquistas que poderia experienciar. Quando conversei com a Rita da Nova, antes da apresentação da sua obra, em Gaia, repeti que a Ana Luis me fez lembrar Eliete por causa disso: por ser alguém credível, a viver a sua vida como qualquer um de nós, com medos, com poucas certezas, com rasgos de força e sem pretensões de maior. E isso não deixa de ser espetacular.

Personagens heroínas, cujas jornadas sofrem metamorfoses completas e encontram um novo propósito transformador, são fundamentais para sonharmos, para alargarmos horizontes, para não desistirmos e acreditarmos que as mudanças são possíveis - e tendo em conta que lemos, muitas vezes, para embarcar em realidades paralelas, distantes da nossa, elas impulsionam-nos nesse sentido. No entanto, histórias sem personagens heroínas têm o poder de nos acolher, de nos mostrar que nem tudo é fogo de artifício e que não estamos sozinhos na luta. Podíamos ser nós naquela história e não há algo de errado nessa simbiose. Sei que podemos ter a tendência de nos afastar das últimas por serem um espelho das nossas quatro paredes e nem sempre queremos ser confrontados por isso, mas estas chamadas de atenção também nos ajudam a crescer. 

Assim, trouxe cinco livros com personagens que tinham tudo para serem esquecidas, por não apresentarem curvas de vida memoráveis, mas que fizeram morada em mim por me provarem que há beleza no que é banal.


PESSOAS NORMAIS, SALLY ROONEY

📖 Dois jovens inseguros, com graves problemas de comunicação

Conta-nos a história de um casal adolescente, que tanto procura crescer em sintonia, como tenta distanciar-se, compreendendo a dificuldade que se encerra nesse passo. Porque, por maiores que sejam as diferenças, existem sentimentos inquebráveis. Com uma narrativa coesa, que nos embala em várias sensações, emoções e traumas, é percetível que esta relação reflete o impacto de uma comunicação débil, que constrói inúmeras barreiras e que acaba por condicionar o lado mais sóbrio e puro das nossas interações. (opinião completa)


ELIETE, DULCE MARIA CARDOSO

📖 Uma mulher a passar por uma crise de identidade

É a história de uma mulher de meia idade, que se movimenta num quotidiano pacato, trivial - pelo menos, assim se assemelha. No entanto, tal como uma brisa subtil, que não incomoda, há um vendaval que se vai aproximando. E mesmo que pouco aponte nesse sentido, ficamos presos aos seus contornos, a esse prenuncio de fatalidade prestes a mudar o rumo da personagem. (opinião completa)


AS COISAS QUE FALTAM, RITA DA NOVA

📖 Uma mulher à procura de algo, oscilando entre o conformismo e a persistência

É a história da Ana Luís, uma menina de oito anos que não conheceu o pai, porque nunca lhe foi concedida essa permissão por parte da mãe. Por esse motivo, é também um passaporte emocional para todas as respostas que procuramos, para todos os nós que vamos tentando atar na nossa história, para que nada seja ao acaso, ilógico. Em simultâneo, foi tantas vezes chão e tantas vezes colo. (opinião completa)


MAR ALTO, CALEB AZUMAH NELSON

📖 Dois jovens que procuram descobrir o seu lugar no mundo, que se vão conhecendo em simultâneo e conversando muito por entrelinhas - e através de silêncios que contam tanta coisa sobre eles e a sociedade.

A narrativa parece uma dança lenta e sedutora, ora envolvente, ora esquiva, fazendo-nos rodopiar por uma série de questões que nos moldam enquanto seres humanos, que nos obrigam a sair da nossa bolha e a compreender que nem todos sabemos o que é sair de casa a desconhecer como voltaremos - se voltaremos -, porque somos colocados num perfil único e correspondemos sempre «à descrição».


M TRAIN, PATTI SMITH

📖 Há dias na vida de Patti Smith que podem não parecer banais (pelas viagens que faz, pelas pessoas que conhece), mas a maneira como os descreve é tão despojada, que me fez todo o sentido incluir este livro. Ainda para mais, este diário tem muitos episódios triviais, com dilemas peculiares que qualquer um de nós tem.

É uma viagem muito bonita, porque a escrita consegue ser, simultaneamente, poética e comum, focada em pensamentos profundos ou dilemas peculiares. E acho que gostei tanto de ler este livro porque há um tom de normalidade na sua partilha, no qual não se leva nada a sério e quase parece esquecer-se que é a Patti Smith. Ter a oportunidade de descobrir estes textos é ter a sensação que estamos sentados ao seu lado, a escutar uma série de peripécias, viagens e memórias, enquanto desfrutamos de uma chávena de café.

8 Comments

  1. A personagens de um livro devem ser o mais reais possíveis e não têm que ser sempre heroínas, podem ser apenas personagens que passam as mesmas dificuldades que nós.
    Vou guardar as tuas sugestões para descobrir mais tarde.
    Beijinho grande, minha querida.

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    1. Concordo contigo, minha querida. Acho maravilhoso embarcarmos em histórias com personagens tão parecidas connosco, até porque nos fazem sentir mais acompanhados ou permitir que certos pensamentos sejam validados. É bom lermos livros com realidades distintas e percursos de superação, mas também é bom ter esse traço de normalidade

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  2. Existem personagens que sao autenticos herois sem capa *.* Quero muito ler o da Patti Smith.

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  3. Hum, que vou levar cada uma das suas sugestões, mas há sempre alguma personagem que nunca esquecemos
    Beijinhos
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    1. Verdade, Sofia, há personagens que se colam à nossa pele

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  4. Concordo plenamente com a premissa deste post!
    E alguns deles já li e posso dizer que sinto o mesmo...
    Beijinho *

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