o meu treinador, joana bértholo

Fotografia da minha autoria



Gatilhos: Referência a Distúrbios Alimentares, Doença Oncológica e Abusos


O livro Ecologia mostrou-me que Joana Bértholo seria uma autora para explorar e A História de Roma reforçou essa certeza/vontade, porque a forma como borda as suas narrativas é versátil e arrebatadora. Uma vez que estava com saudades de a ler, e tinha curiosidade em relação a este retrato da Fundação, alinhei o melhor de dois mundos.


um equilíbrio muito bem desenhado

O Meu Treinador é um ensaio sobre o quotidiano de um desportista, desde os treinos às dores, desde os horários preenchidos às expectativas e à possibilidade de subir ao pódio, através das memórias de uma ex-atleta de natação e triatlo. A autora viveu na primeira pessoa as oscilações de todas essas condicionantes, retratando experiências positivas e negativas, «dos anos 1990 até hoje», onde o eixo de todas elas é o treinador.

Nunca fui uma pessoa atlética. O mais perto que estive dessa designação foi, durante um curto período da minha adolescência, ter integrado um grupo de aeróbica, com treinos semanais, salvo erro, e algumas competições pelo meio. Mas nunca encarei essa modalidade com seriedade, até porque não era um objetivo para o futuro, era apenas o concretizar de algo que me satisfazia: dançar. Por outro lado, sempre adorei basquetebol e não me ter inscrito numa equipa daqui da zona continua a ser um dos meus maiores arrependimentos. Não porque fosse brilhante, não porque tivesse um futuro promissor graças ao meu talento, mas porque era feliz a jogar e porque acredito que os desportos de equipa desenvolvem muitas competências, nomeadamente ao nível da comunicação, da entreajuda, da noção de espaço e de tempo e na formação de caráter. Portanto, parti para este livro não com a intenção de me rever nas suas páginas, mas pela curiosidade de perceber como é que é a dinâmica de um atleta.

Ter acesso a estes testemunhos é valioso, atendendo a que nos fornecem perspetivas novas, nos envolvem no processo, na disciplina e na paixão. Além disso, acho-os de uma enorme generosidade, porque também são feitos de vulnerabilidade e nem sempre é fácil abrir essa porta, sobretudo, a pessoas que não conhecemos - ou será que facilita não sabermos quem está do outro lado? Divagações à parte, foi fascinante compreender as pontes que Joana Bértholo estabeleceu entre o desporto e a escrita e a maneira como articulou as suas vivências com factos histórico-culturais e entrevistas. Há um equilíbrio bem desenhado e creio que isso também é possível por causa da sua escrita: leve, lúcida e com um toque poético. Há uma luz que nos inebria e que nos faz querer continuar a ler, mesmo que o tema em si possa não nos ser assim tão próximo.

«O treino expõe. Mesmo num desporto individual, até solipsista, como pode ser o triatlo - ou talvez por isso -, é essencial ter quem olhe por nós, para nós, brade o nosso nome nos quilómetros que custam mais, de garrafa de água em punho ao chegar, um abraço pronto (...) Eu tive-o e fez toda a diferença. Deu-me chão para além do âmbito desportivo e recursos para a vida»

A base deste livro é, como o nome indica, a figura do treinador, que tanto pode ser o nosso maior aliado, como ser quem mais nos prejudica, mas é impressionante como, a partir do seu papel, consegue estabelecer reflexões pertinentes sobre pertença, sobre cansaço, sobre distúrbios alimentares, sobre privações, sobre a importância da saúde mental e do saber parar; sobre como os apoios são escassos, a instabilidade financeira é uma realidade constante, sobre questões de género e sobre diferentes tipos de abuso e a urgência de denunciar e proteger. É um ensaio extremamente versátil, plural e que nos faz perceber que todas estas partes autónomas constituem um processo maior.

É notória a emoção que ainda a embala a ver as provas, no entanto, não é por destacar o fascínio do Olimpismo que não está ciente das fragilidades que existem e, em demasiados casos, da podridão que se esconde nos pactos de silêncio. Joana Bértholo foi trocando de pista, descobrindo a sua vocação conforme foi crescendo, mas é bonito perceber que há atitudes que adquiriu a treinar que a influenciam na escrita e na criação. Talvez essa seja uma das memórias mais bonitas que se podem guardar.

O Meu Treinador é a prova de que nos aliarmos das pessoas certas faz toda a diferença. E não só no desporto. Aliás, considero que a mensagem deste livro consegue ser transversal, porque todos nós, em algum momento, já tivemos quem nos inspirasse a dar o nosso melhor e quem nos diminuísse de tal maneira que só aumentou o som das nossas inseguranças. Atletas de alto rendimento ou não, acho que esta obra nos agrega e, acima de tudo, nos mostra que a confiança, o respeito e o compromisso são vitais.


🎧 Música para acompanhar: Passive Aggressive, Placebo

📖 Outros livros lidos: Ecologia | A História de Roma


Disponibilidade: Wook (Livro | eBook | Audiolivro) | Bertrand (Livro | eBook | Audiolivro)

Nota: Esta publicação contém links de afiliada da Wook e da Bertrand

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