![]() |
Fotografia da minha autoria |
O fenómeno Rabo de Peixe não me foi indiferente, nem tinha como, só que, na altura, ter uma subscrição da Netflix não era uma prioridade e, portanto, adiei a descoberta da série. Mais de dois anos depois, rumei ficcionalmente aos Açores para colmatar o atraso e ficar a conhecer as sombras de uma localidade onde nada parece acontecer.
Um veleiro carregado de cocaína, com dois mafiosos italianos a bordo, naufraga neste arquipélago no meio do Oceano Atlântico e a história desenvolve-se a partir daqui, até porque a droga surge como uma forma arriscada, mas rápida de ganhar dinheiro e de mudar de vida, tendo em conta que a população subsiste num cenário de pobreza, em alguns casos extrema. Eduardo, Rafael, Sílvia e Carlinhos serão os protagonistas desta tentativa de alcançar sonhos impossíveis e, no fundo, de ter uma perspetiva de futuro.
Isolados de tudo, presos a uma rotina sufocante, trabalhavam com o intuito de sair de Rabo de Peixe, acalentando o sonho americano. Depois de meia tonelada de cocaína dar à costa, abre-se aqui um precedente para também explorar algo que me interessa sempre: a influência que o lugar onde nascemos pode exercer no nosso destino. Acho que, acima de qualquer intenção mais ou menos legal, todas estas pessoas procuraram quebrar a corrente e escrever um desfecho diferente para as suas vidas. O problema é que ninguém passa por uma experiência desta dimensão sem sofrer consequências.
Os protagonistas eram pequenos peixes num mar imenso, que lhes exigia um tipo de jogo que não estavam habituados a jogar. Ainda assim, foram-se movimentando com mestria e inteligência, mesmo quando as emoções lhes toldavam a racionalidade. E um dos aspetos que mais me fascinou, para além de todo o contexto do narcotráfico, foi mesmo a relação de amizade que nunca perderam. Aliás, sinto que essa é uma das valências mais poderosas da série, não só porque humaniza o ambiente, mas também porque quebra a tendência subjacente das relações por conveniência tão associadas a este tipo de negócios obscuros. Eles estavam juntos no melhor e no pior, sem reservas.
Houve cenas que me parecem um pouco céleres e a necessitar de mais contexto para não perderem credibilidade. Não obstante, adorei como, no meio de tanta dor, trauma e descrença, pautaram o argumento com situações e diálogos cómicos, o que calibrou a energia da narrativa e a aproximou da vida fora dos ecrãs. Nem tudo é luz, nem tudo é tempestade, os nossos dias vão-se sucedendo num ponto intermédio, numa tentativa de manter essas duas metades equilibradas. Portanto, em nenhum momento senti uma visão paternalista. Senti, sim, a vontade de mostrar a pureza do lugar, das suas pessoas e a reação genuína «de um rapaz comum a quem aconteceu algo de extraordinário».
Vibrei muito ao longo dos sete episódios, comovi-me, fiquei surpreendida com certas decisões e revoltei-me na mesma medida. Porque há alturas em que parece que nada é suficiente, que não têm um segundo de sossego, que, inclusive, não podem relaxar, porque a vida das personagens está em perigo constante. Honestamente, queria que eles tivessem um pouco mais de sorte, que não sentissem o impacto das diferenças e do quanto o futuro é desproporcional. Há assimetrias sociais tão palpáveis que não podemos sentir outra coisa a não ser injustiça. Por tudo isto, dei por mim a refletir sobre o facto de nem sempre conhecermos quem nos rodeia, sobre a necessidade de não olhar a meios para atingir os fins, sobre tornarmo-nos invisíveis aos olhos de todos e, sobretudo, sobre o facto de não «serem apenas os degenerados a consumir».
Num cenário paralelo, pensei muito sobre vulnerabilidade, abandono e impunidade. Pensei muito sobre como o amor nos dá alento, sobre como nem sempre precisamos de soluções, só que alguém nos ouça e abrace os nossos medos, as nossas inquietações. Esta série agrega uma série de temas atuais e pertinentes e, por isso, entusiasma-nos.
Inspirada em factos verídicos, Rabo de Peixe «lembra cicatrizes», porém, acredito que vai para além do estigma: esta «vila é uma das mais pobres do país e da Europa», mas não é só isso, não é só aquele incidente. As memórias pesam, há problemas que ainda hoje se manifestam em várias famílias, porque as feridas são permanentes, mas a série talvez venha aligeirar o ambiente e reduzir os preconceitos, uma vez que também nos mostra a importância de sabermos quem somos ou quem não queremos ser. Embora ninguém saia ileso - fisicamente ou de consciência - preciso da segunda temporada.
6 Comments
Tenho muita curiosidade com esta série, mas não tenho Netflix.
ResponderEliminarEspero que um dia a passem em canal aberto.
Beijinho grande, minha querida!
Ainda não sei a data da segunda temporada, mas podes sempre esperar que saia essa e, depois, subscreves durante um mês, por exemplo.
EliminarGostava muito, mas, honestamente, tendo em conta que terá mais temporadas, não sei se acontecerá tão cedo
Vais sempre a tempo *.* Aguardo com ansiedade a segunda temporada :) Tenho amigos açorianos que não gostam muito de falar do acontecimento... o estigma de Rabo de Peixe ainda esta bem presente, e quando la estivemos recomendamos que nao passassemos la perto :(
ResponderEliminarTenho mesmo de regressar ao Paraíso, as saudades ja sao muitas *.*
EliminarTambém já estou em contagem decrescente 😍
EliminarSim, infelizmente, este acontecimento e a própria realidade do local deixarão marcas visíveis ainda hoje
Acredito!
Eliminar