E SE FOSSE COMIGO?

Fotografia da minha autoria



- título sugerido pela Ana Ribeiro -


Os gritos são ensurdecedores, mas tentei calá-los na minha cabeça. Fechei os olhos, como se isso me protegesse, como se isso apagasse o que se passa na porta em frente, porque acabaria por desaparecer.

A ausência de uma resposta concreta é clara. Aliás, é engraçado como nos cobrimos de desculpas, para nos apaziguarmos: se ela nunca pediu auxílio, porque teria de ser eu a dar o primeiro passo? Talvez até estivesse a perceber mal! Aquilo que não vemos pode ser deturpado pelos sons que vêm de longe. Talvez fosse isso, talvez estivesse a tecer cenários improváveis, a aumentar uma realidade que me foge do controlo e que nunca se manifestou à minha frente. Mas quando, à noite, a cabeça repousava na almofada, havia uma culpa a aquecer o corpo, porque os gritos persistiam, até que o silêncio cobria, por fim, os vazios que nos separam.

É curioso o jogo que se estende na manipulação e o tanto que se esconde num sorriso construído a charme. Aprendi a reconhecer isso e a permitir que essa imagem me ludibriasse. Nos poucos encontros casuais à porta do prédio, nem um sinal de desalinho, nem o mais pequeno indicativo de paz podre. E quando ela me olhava, nenhum resquício de julgamento se manifestava. Ela sabia-o, pressentia que não lhe podia ser indiferente, mas que o medo era um animal fascinante. E de sorriso baixo, cada um seguiu por um caminho de sombras.

Aceitei o destino, a impotência, a casualidade dos factos., Foi tudo subindo de tom, mas era como se apenas eu fosse capaz de escutar. Por isso, escudei-me ao passar mais tempo fora de casa, a garantir que há sempre uma fuga, que somos nós quem controla o limite da humilhação. No alto da minha sobranceria bacoca, passei a acreditar que só poderia existir um culpado: quem concede poder, quem não impede, quem não faz frente, quem não pode ajuda. Portanto, ao compactuar com o estereótipo, continuei a ser uma parte do problema.

Foi no dia em que abri a porta, que entrei numa espiral de destruição. Tudo o que antes preferi ignorar, passava-se, agora, a um palmo do meu olhar perdido, diminuído, dilacerado. E nos silêncios que sempre gritaram mais alto, nunca houve provas incriminatórias, mas havia um choro que se reconhece à distância. É no rosto vítreo que se identificam os estilhaços. Qual seria a probabilidade de, num espaço contíguo, a história se repetir? Quantas seremos, debaixo dos mesmos tetos, a engolir um conto de fadas envenenado?

Viste-me para além do sufoco e, sem qualquer palavra de conforto, foste um amparo que eu nunca te soube dar. Aliás, que preferi nunca ser. Fomos cúmplices na vergonha, no olhar por cima do ombro, no recuo de um gesto pouco claro. Fomos um espelho e a corrente que nos aprisiona ao chão. As janelas sempre estiveram abertas, mas foi como se existissem grades a impedir a partida, a impedir a doce sensação de liberdade.

Passei a vida toda a perguntar «e se fosse comigo», até ao dia em que deixei de precisar de o fazer.

Comentários

  1. Adorei este conto, sentimos esta realidade como se a vivêssemos. Sentimos as mãos a tremer e o coração a apertar. Parabéns, minha querida.
    Beijinho grande!

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    1. Muito, muito obrigada, minha querida! E obrigada, claro, pela sugestão do título

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  2. É por isto que estou sempre a pôr-me no lugar dos outros. Muitos Parabéns pelo texto-alerta!
    Tily✨

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    1. É fundamental sabermos olhar o outro, escutá-lo, mesmo quando não nos fala por palavras e, sobretudo, reconhecer que aquele problema, por muito que não nos toque, não é menos sério por isso. Colocarmo-nos no lugar do outro deveria ser algo intrínseco ao ser humano

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  3. É importante saber estar no lugar do outro! Adorei a tua reflexão!

    Bjxxx
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  4. Oh, como não gostar das tuas palavras.
    Mas uma coisa que acabo sempre por pensar é que as vezes podia ser em nós, mas nem sempre tudo é como imaginamos
    Beijinhos
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    1. Muito, muito obrigada pelo retorno, Sofia
      Sim, sem dúvida, há coisas que não acontecem só aos outros

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  5. Parabéns pelo texto!

    Boa semana!

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    Até mais, Emerson Garcia

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