LER AUTORES PORTUGUESES: SEM PRECONCEITOS
E SEM CONDESCENDÊNCIAS

Fotografia da minha autoria



«Sem literatura é um inferno»


A reserva em ler autores portugueses não é recente, mas permanece atual, porque tendemos a ser pouco curiosos com os nossos, porque parece que assumimos, à partida, que o seu talento é diminuto, que não enche as medidas, que não compensará o tempo disponibilizado. E como o leitor português fica sempre de pé atrás, sobretudo se nos concentrarmos em vozes novas, existem nomes que se perdem nas entrelinhas.


UM PROCESSO DE ESCOLHA

Parece-me senso comum saber que as pessoas leem o que querem, no formato que lhes convém melhor, e que nos enriquecemos mais quanto mais diversificadas e inclusivas forem as nossas escolhas, portanto, tecer julgamentos nunca será um caminho: acho muito mais rico compreendermos as motivações do que apontar o dedo, entrando numa narrativa moralista. Aquilo que me entristece, confesso, é a dualidade de critérios.

Não considero que devamos impor a escolha de um livro só porque é de um escritor português. Acredito que esse nível de condescendência invalida logo o propósito de construirmos uma identidade literária versátil e, principalmente, de desfrutarmos desta viagem única, porque não o selecionamos pela vontade pura de o descobrirmos, estamos a selecionar por um qualquer sentido de obrigação que condiciona tudo. Ora reparem:

1. Já vamos mentalizados para, secretamente, não gostarmos;
2. Já partimos à procura de falhas;
3. É mais provável não apreciarmos a escrita;
4. Deixamos de ter vontade de regressar àquele autor;
5. Sentimos que foi uma perda de tempo.

Quando avancei com o Alma Lusitana, fi-lo por sentir que, de facto, há muito talento em Portugal e por querer colmatar uma falha na minha jornada: lia autores portugueses, mas sentia-me a transitar entre os mesmos nomes. Abrir esta gaveta foi uma estratégia para procurar outros rostos, outras visões, outros tipos de escrita.

O foco de análise é outro, mas a ideia anterior transportou-me para a publicação da Elga Fontes sobre a questão de lermos de propósito, de colocarmos intenção nas leituras que adicionamos à estante. E da mesma maneira que o tento fazer para não cair na teia de um mercado viciado, ainda pouco aberto a minorias - e admito o quanto necessito de melhorar -, também o faço nesta minha bolha de descobrir mais vozes nacionais.

Portanto, a tónica pode ser ler porque é um autor do nosso país, mas só se isso não for revestido de sacrifício, de drama; só se isso trouxer entusiasmo associado. Continuo a defender que a nacionalidade não é uma obrigatoriedade, no entanto, pode funcionar como um ponto de compromisso, até porque, se nos afastamos das nossas origens, daquilo que é feito cá, acabamos por nos limitar no espectro cultural. O caminho passa por encontrar o equilíbrio certo entre as nossas preferências e a curiosidade de acolher um pouco mais os nossos.


PRECONCEITOS, DÚVIDAS E OPORTUNIDADES

Creio que parte dessa reserva se prende com a nada surpreendente sensação de que o que vem de fora é que tem qualidade superior. Talvez por não ser tão acessível, talvez por ser maior a divulgação, talvez por se olhar tanto a números e a grupos influentes. Qualquer razão é válida e reforço que a liberdade de escolha é fundamental e um direito que devemos exercer, afinal, o tempo já é escasso para lermos tudo o que gostamos, quanto mais se formos fazer algo contrariados. Não obstante, acho que é tudo uma questão de predisposição.

Enquanto procuro organizar pensamentos, penso que o que me incomoda mais não é o «não leio autores portugueses», é o que isso implica, é a descredibilização, é o perpetuar de estereótipos; são os constantes «ses» e «mas» que antecedem a leitura, é a desconfiança e a generalização. E é claro que, em simultâneo, me surgem questões: será que não lemos mais escritores portugueses por medo de não nos deslumbrarmos? Será que é o idioma que, por ser facilmente interpretado, não nos estimula? Será que não lemos os nossos porque, depois, a nossa opinião negativa pode chegar ao autor e temos receio de o melindrar? Será que a difusão está a ser feita nas bases certas? Num outro plano, questiono-me o seguinte: quando leem um autor estrangeiro e não ficam agradados com a obra, desistem de ler todos os autores estrangeiros que existem? Parece uma pergunta ridícula, não é? Mas, inúmeras vezes, parece-me que esta é a tendência quando temos uma má experiência com um autor português. E eu tenho mesmo curiosidade em compreender o motivo.

Somos mais de incentivar traduções do que de apoiar a abertura do mercado a novos autores portugueses. E, atenção, isto não é o erguer de uma bandeira para dizer «olhem para mim, que sou incrível por ler portugueses e em português», é uma mera reflexão sobre um tema que me entusiasma. Eu quis traçar esta rota, mas também demorei a alinhar os astros; ainda há muito que me falta explorar e a minha verdade não é, de todo, uma verdade absoluta. E seria hipócrita da minha parte não reconhecer o quanto evoluímos neste sentido.

É crucial não perdermos sentido crítico, não pairarmos em extremismos e compensarmos em demasia, porque nem todas as escritas nos entusiasmam, nem todas as histórias funcionam connosco, é válido não nos identificarmos. Além disso, há autores aos quais queremos regressar e há outros que preferimos manter longe. Portugueses incluídos. Sem que isso implique distanciarmo-nos de quem somos, acredito que o segredo é embarcar de peito aberto e dar uma oportunidade. Se calhar, abrimos uma porta que nos fará sentir em casa.

12 Comments

  1. Adorei esta reflexão. Também não gosto que me imponham leituras só porque é um autor português, lerei um determinado livro se me identificar com ele, se me fizer sentido, não o leio só porque toda a gente lê, até porque pode ser um género que não aprecie. Por norma alterno as leituras entre literatura estrangeira e literatura portuguesa.
    Beijinho grande, minha querida!

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    1. Obrigada! Quando fazemos leituras por lazer, acho que devemos respeitar o nosso estado de espírito, o autor ou o livro que nos suscitar maior curiosidade, independentemente da nacionalidade. A minha questão é mesmo pelas reticências em acolher novos autores portugueses, porque parece que estamos pouco dispostos a descobrir o que se escreve por cá

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  2. Gostei muito desta reflexão e concordo muito com ela *.* E estou com a Ana, tanto leio livros e autores portugueses como estrangeiros :) Ja bastou na escola terem-nos imposto os Maias e a Sibila... que ainda hoje nao consigo ter vontade de ler...

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    1. Muito obrigada! Impor leituras condiciona logo a nossa envolvência com a mesma. Acho é que faz mais sentido irmos fazendo uma seleção mais intencionada e não fechar tantas portas aos nossos

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  3. temos excelentes autores nacionais, mas infelizmente a maioria das pessoas parece só valorizar os estrangeiros, o que é, verdadeiramente uma pena!

    Bjxxx
    Ontem é só Memória | Facebook | Instagram | Youtube

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    1. Concordo, Teresa. Claro que é ótimo termos acesso a autores estrangeiros, porque nos dá outra perspetiva, dá-nos outro contexto e outro mundo. Só tenho pena que fechemos tantas portas aos nossos

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  4. Nem tudo que é nosso acaba por ser valorizado, mas é mesmo uma pena porque temos bastante talentos e nenhum são reconhecidos
    Gostei bastante da sua partilha
    Beijinhos
    Novo post
    Tem Post Novos Diariamente

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  5. Começo por destacar o meu deslumbre pela tua escrita. Há muito que não paro para acompanhar o trabalho de outros bloggers, a rotina obriga-me a escolher o que priorizar.... Mas hoje, decidi que tentaria encaixar mais leituras de blogues, tendo começado pelo teu. Que bom que foi! 🩷

    Curioso ter começado logo por esta reflexão. Faz meses que tenho comprado mais autores portugueses em comparação com a minha pré disposição passada... Vivia com os mesmos preconceitos que apontas, sobretudo o da qualidade... A questão é que quando me enamorei por Saramago, abri uma porta para um compartimento no qual vou habitando.

    Se, de facto, o meu consumo explodiu? Não. Acabo por ler mais livros estrangeiros, muito pelos preços mais baixos, porém, com esta cultura dos livros em segunda mão, deixou de ser tanto uma desculpa. Contra mim falo.

    Saindo, então, da esfera do que se diz inteiramente natural de portugal, confesso que ter descoberto Ondjaki e Mia Couto foi maravilhoso! Tenho Afonso Cruz pendente na estante, comecei outro do Virgílio Ferreira...e o meu outro objetivo é também incluir mais autoras portuguesas na estante.

    Fico bem feliz por existirem entusiastas pela literatura como tu. És uma grande referência para mim aquando de uma escolha, independentemente do género literário, nacionalidades, afins.

    Vou guardar a tua reflexão para mim e tornar-me mais consciente no momento de comprar livros. Talvez crie um rácio, por cada livro estrangeiro, um português, e assim sucessivamente! 😃

    Obrigada pela reflexão, Andreia. Beijo,

    Lyne, Imperium Blog

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    1. O meu coração não aguenta 🥹 muito, muito obrigada, Lyne!

      Acredito que é muito fácil cairmos na comparação, sobretudo, quando encontramos autores de referência, porque estabelecemos um elo que dificilmente se repete com outros - ou nunca da mesma maneira. Portanto, e ainda que saibamos que não é justo, acabamos a ler e a sentir que nos falta a magia que identificamos naquele(s) escritor(es) que nos conquistaram. Para ajudar, recebemos sempre imensos estímulos em relação à literatura estrangeira, seja pelas traduções, seja por lançamentos, seja pelas partilhas de alguém que leu e nos capta a atenção para aquela história. E acho que, depois, acaba por ser um bocadinho difícil sair desta bolha.

      Sim, exato, a questão do preço também pesa e, embora tínhamos um recurso valioso, como as bibliotecas, por exemplo, nem sempre é uma prioridade, pelas mais diversas razões. Nesse sentido, acho que, de facto, a compra de livros em segunda mão pode ter outra expressividade.

      Ondjaki e Mia Couto são maravilhosos. Quero descobrir toda a obra deles! Quanto ao Afonso Cruz, sou bastante suspeita, porque é um dos meus autores de eleição, por isso, recomendo tudo o que ele escreve. Acho que até a lista de compras dele seria incrível de ler ahahahah esse é outro espectro onde também pretendo melhorar, porque acabo por ler mais autores do que autoras.

      Fico mesmo sensibilizada pelas tuas palavras, de coração *-*

      Acho que o mais importante é descobrirmos mesmo o que resulta melhor connosco. Se queremos ler autores portugueses, lemos; se nos queremos dedicar mais a autores estrangeiros, também está tudo certo. Para mim, talvez o cuidado esteja em fazê-lo sem preconceitos, sem dualidade de critérios, como se para nos dedicarmos a um tivéssemos de descartar o outro, porque acho que não há necessidade disso. São mundos que se podem cruzar muito bem.

      Olha, sinto que tem tudo para resultar. Pode ser um exercício interessante

      Muito obrigada pela partilha!

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    2. Whoaaa exatamente!! Já que és suspeita, que livro de Afonso Cruz aconselhas para o começar a ler? 🫶🏽😏😃
      Beijão, obrigada pelo retorno 🩷

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    3. Eu comecei com A Boneca de Kokoschka e gostei bastante da experiência. Ainda assim, para te ambientares à escrita, talvez não seja mal pensado começar por Os Livros que Devoraram o Meu Pai ou por O Pintor Debaixo do Lava-Loiças, porque também são livros mais curtos. Se quiseres uma leitura mais extensa, Para Onde Vão os Guarda-Chuvas

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