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MISERICÓRDIA, LÍDIA JORGE

Fotografia da minha autoria



«Um dos livros mais audaciosos da literatura portuguesa»

Gatilhos: Referência a Morte e Pandemia


A memória, por vezes, atraiçoa-me, mas tenho a certeza que nunca tinha lido algo de Lídia Jorge. E talvez permanecesse nesse registo, caso não tivesse visto opiniões maravilhosas sobre o seu mais recente romance.


UM PEDIDO ESPECIAL

Misericórdia responde a um desejo da mãe da autora, que «tantas vezes lhe pediu que escrevesse um livro com este título», porque achava que «havia um desentendimento, no tratamento das pessoas, achava que as pessoas procuravam ser amadas, mas não as entendiam». No fundo, era a sua maneira de alertar para a necessidade de haver mais compaixão e de tratarmos o outro como se estivesse «na plenitude da vida».

«Confio por inteiro nas leis do pensamento. Elas me guiam e me dão paz»

A história desenrola-se num lar, o Hotel Paraíso, entre abril de 2019 e abril de 2020, data da morte de Maria dos Remédios, mãe de Lídia Jorge. Nestas páginas, acompanhamos, então, o último ano de vida de uma mulher atenta ao que a rodeia, astuta e, até, mordaz. Nestas páginas, movimentámo-nos num espaço único, fechado, mas onde não existe qualquer traço de monotonia no seu quotidiano, porque o ambiente vai-se adaptando à identidade das personagens, aos dramas, às peripécias e aos sonhos que guardam no seu íntimo.

«Não sei onde colocar os meus pensamentos que são demasiado amplos 
para o vaso da minha cabeça e para o volume do meu coração»

Dona Alberti, a protagonista deste enredo, orienta-nos por um misto de brutalidade e esperança, de ironia e amabilidade, de choro e riso. Embora possa trazer alguma angústia, porque explora questões como a fragilidade do corpo, o medo da noite, a solidão, a perda e a morte, percebe-se que é uma narrativa muito mais centrada no esplendor da vida, nos atos de resistência, no fulgor de quem sente, independentemente da idade, que ainda não é o fim, que o futuro não é uma miragem, mas uma imagem concreta que se quer alcançar.

«A vida é um arco, tem o seu começo e o seu fim, inicia-se num berço, faz o seu voo ascendente, e a partir de certa altura a curva desce até nos entregarmos à terra, de novo dentro de uma caixa de madeira que em nada diferente de um berço»

Quando fui voluntária no G.A.S. Porto, há uns anos, a minha intervenção era junto de idosos: semanalmente, fazia visitas domiciliárias para tentar diminuir o isolamento que pudessem sentir. Não visitava instituições, no entanto, sinto que a Dona Alberti podia ser uma das senhoras com quem me cruzei. Por outro lado, recordou-me da minha madrinha, que, nos seus últimos anos de vida, também esteve num lar e por lá [sobre]viveu a pandemia. Portanto, houve inúmeros aspetos a ligar-me ao livro, mostrando-me diferentes perspetivas.

«(...) a voz humana é o melhor som que o vento produz, não importa o que as palavras dizem»

O Hotel Paraíso abre-nos a porta para refletirmos sobre o papel do cuidador, as batalhas que se travam todos os dias, a bondade, as condições - ou falta delas - num lar, as relações familiares e a humanidade. Neste relato cru, que não aponta culpados, cruzam-se várias realidades. E é nesta universalidade que nos revemos e que compreendemos que a linha que separa a força da fragilidade é ténue, que vamos oscilando até alcançarmos um pouco de paz. Podemos não conhecer nenhuma destas pessoas, mas partilhamos a mesma inquietação.

«Misterioso é o sentimento da misericórdia, não tem hora marcada para entrar ou sair do ser humano»

Misericórdia é um longo diálogo: entre uma mãe e uma filha, entre idosos, entre idosos e auxiliares, entre a vitalidade e a dependência, entre as memórias e o presente. É um espelho das várias maneiras de envelhecermos, porque não é um processo idêntico para todos. Inclusive, há alturas em que nos parece que o discurso é pouco lúcido, mas rapidamente percebemos que está mais lúcido do que nunca. Além disso, torna evidente que a velhice não implica desistir de sonhos, de fazer amizades novas, de ter objetivos. Misericórdia é um relato de empatia e é comovente ver como consegue ser tão íntimo, com cicatrizes expostas, mas sem perder a ternura. E sendo feito de coragem, inspira-nos a almejar por um lugar digno até ao último suspiro.


🎧 Música para acompanhar: Gaivota, Amália Rodrigues


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Comentários

  1. Tenho mesmo de ler este livro. Fiquei muito curiosa.
    Obrigada pela partilha, minha querida.
    Beijinho grande!

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    1. Foi uma descoberta encantadora. Recomendo, minha querida 💜

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  2. Confesso que não conhecia. Obrigada pela sugestão 🫶🏻

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  3. Não conhecia, mas vou levar a sugestão! :)

    www.amarcadamarta.pt

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  4. Tenho muitas saudades desta autora *.*

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    1. Quero ver se aposto em mais obras de Lídia Jorge, porque fiquei encantada com esta 😍

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  5. Que me parece ser mais um bom livro para se conhecer
    Beijinhos
    Novo post
    Tem Post Novo Diariamente

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