MESA VAZIA

Fotografia da minha autoria



- Título sugerido pela Marisa Vitoriano -


A minha rotina, nas últimas semanas, assumiu um caráter mecanizado, repetitivo. Ligo o computador, coloco a chávena de chá na base de madeira e sento-me a escrever. Quer dizer, sento-me para o tentar fazer, porque a secretária está de frente para a janela e eu perco mais tempo a unir as linhas do cortinado do vizinho do que a encadear os pensamentos para a tese. Terei tempo.

Vivo no primeiro andar, num apartamento partilhado por mais dois estudantes: ele, de Línguas e Culturas Estrangeiras, ela, de Gestão de Património. Eu sou de Letras e acho que isso se percebe pelo quanto divago nas palavras. Estou sozinha na maior parte das horas, porque somos de anos diferentes. Aliás, eles ainda agora chegaram ao meio universitário e eu estou quase a partir. Portanto, como já nem aulas tenho  o que os inveja sempre , fico circunscrita a estas quatro paredes. Isso basta-me, porque o espaço é grande e tenho o sossego da sala e a azáfama da rua para equilibrar os meus picos de humor. Quando necessito de uma pausa, fico só a olhar pela janela, a ver o mundo passar em hora de ponta.

Foi num desses momentos que comecei a reparar em algo peculiar. Ouço a voz do Castle em surdina e, caso isto fosse um dos seus episódios, o vizinho do prédio em frente, a julgar pelo secretismo, estaria envolvido em negócios obscuros. Não sei se estará, porque está cá há um mês, mas só esta semana é que vi a carrinha das mudanças, que tem vindo desde terça-feira  hoje é sábado. Sem saber explicar bem a razão, esta atividade tem-me interessado bastante. Inclusive, pensei oferecer-me para ajudar, mas talvez fosse intromissão a mais. Portanto, decidi ficar no meu lugar, a permitir que tudo siga o curso que tem de correr.

Regresso à escrita e a noite vai caindo lentamente, como se a nossa linguagem fosse toda em câmara lenta. Com mais dois capítulos adiantados, recompenso-me com um café tirado em casa, porque sinto-me demasiado preguiçosa para sair. Sento-me no parapeito, resgato o livro da Patti Smith da pilha por ler e mergulho nas suas palavras, mas não por muito tempo: ali estava ele, o meu novo vizinho, alto, cabelo semi encaracolado, olhar taciturno e uma expressão pouco amigável. Naquele entra e sai todo, não pude deixar de reparar que as caixas se amontoavam pelo apartamento, mas a mesa da sala permanecia vazia. Isso talvez não fosse motivo de atenção, se não tivesse praguejado com o senhor das mudanças, quando colocou algo sobre o móvel. Pareceu-me uma reação despropositada, exagerada, mas notava-se um certo nervosismo na maneira como o vizinho se posicionava, como se movimentava: sempre atento, comprometido, ansioso para que o deixassem sozinho  acho que tenho de fazer uma pausa nos episódios de Castle.

Mais por reflexo do que por outra coisa, olhei para a nossa mesa. A cor já não se distinguia bem no meio daquela coleção de papéis, encomendas por arrumar e alguns elementos decorativos. Deveria ser uma peça funcional, mas acabamos por desistir do efeito. Afinal de contas, quase nunca a usamos ao mesmo tempo e o espaço que sobra chega bem para um de nós. Será que o nosso novo vizinho é um maníaco das limpezas? Tenho sérias dúvidas, ali há algo mais.

O corrupio diminuiu. Devidamente instalado, a sua vida tornou-se mais pacata. Queria desligar-me da ideia que me pesa em todos os pensamentos, mas passei a espiá-lo. Não sei se a distância entre os nossos prédios é assim tão curta ou se eu é que já estou de olhar demasiado treinado, mas podia jurar que lhe via os poros. Penso que não reparou em mim, mas, para evitar problemas, mantive os cortinados fechados, para poder olhar à vontade. Estava tudo organizado, mas a mesa continuava vazia. Volta e meia, tocava-lhe, como se a estivesse a avisar da sua presença, mas isso era o máximo que o via a fazer. Honestamente, nem sei qual é a utilidade de uma mesa que não pode ser usada.

– O que é que estás a ver? – perguntou-me Bárbara, acabada de chegar das aulas.
– Que susto! Não te ouvi entrar.
– Pudera, não tiras os olhos do prédio da frente.
– Que disparate!
– Diz-me lá, é assim tão giro?
– Quem?
– O vizinho, quem é que poderia ser?
– Oh! O que é que isso interessa?
– Tudo, porque não tens feito outra coisa nos últimos dias. Se eu não te conhecesse, diria que isso roça a taradice – e riu-se.
– És tão exagerada – respondo entre um revirar de olhos –. Não estou a espiar o vizinho, estou a tentar organizar informação para a tese.
– Claro, claro.

No ar ficou só uma gargalhada. A Bárbara, claramente, não tinha comprado a minha história, mas como é que lhe ia dizer que o meu interesse era aquela mesa vazia? Ia achar que tinha enlouquecido e eu não a podia censurar. Para evitar levantar mais suspeitas, afastei-me da janela e fui para o meu quarto ler. Tive de reler o mesmo parágrafo três vezes e desisti. Resolvi, então, sair de casa para espairecer.

– Vou sair, não esperem por mim para jantar.

Quando cheguei à rua, lá estava ele a sair também. Caminhou na minha direção e, como os meus pés não obedeceram ao meu cérebro, fiquei só parada à espera, a vê-lo aproximar-se para tirar satisfações.

– És a minha vizinha da frente, não és?
– Culpada.
– Muito gosto, sou o Lourenço
– Madalena.

Preparava-me para me despedir desta interação banal, quando me perguntou se o acompanhava num passeio, com o pretexto de conhecer melhor as redondezas pelo olhar de uma local. Podia ter inventado uma desculpa qualquer, mas é claro que aceitei. O meu fascínio pelo abismo é surpreendente.

Partilhamos trivialidades, mas também fiquei a saber que esteve a estudar no estrangeiro e que regressou para estar mais próximo da família. Escutava-o em silêncio e algo na sua voz soava a falso. Ele precisava que eu acreditasse no que me estava a contar, só que eu não sabia como, uma vez que tudo na sua vida parecia demasiado perfeito, ensaiado para encaixar no devido lugar. O mal de ser de Letras e de divagar tanto nas palavras é que, em algum momento, paramos de assumir que o real é tudo o que vemos, para passarmos a questionar o que está à nossa frente. Há sempre mais um porquê na ponta da língua.

Alinhei no jogo sem me comprometer, até que, por não saber estar calada, lhe disse que achava linda a sua mesa da sala – ingenuidade ou parvoíce? Vou evitar responder.

– Foi uma herança da minha avô materna – confidenciou.
– Quem me dera conseguir manter a que tenho lá em casa tão vazia e funcional.

Não me respondeu, limitou-se a olhar para o relógio e a desculpar-se com um compromisso que o obrigava a regressar a casa.

– Sem problema, eu ainda fico por aqui mais um pouco – disse-lhe, tentando não acusar a mudança repentina de tom –. Teremos mais oportunidades para continuar a conversa... vizinho.

O compasso de espera para a minha última palavra parece tê-lo desconcertado. Mas pouco, porque este homem tem uma fibra cínica. Foi só um ligeiro enrugar de olhos que o denunciou.

Deixei-o ir, fiz um pouco de tempo e também eu voltei a casa, mas optei por ir pela rua de cima, entrando pelas traseiras do apartamento. Reconheço que talvez seja uma medida exagerada, ainda assim, não fiquei confortável com a possibilidade de Lourenço me ver a chegar. Quanto mais penso no que aconteceu, mais confusa me sinto, por esse motivo, evitei prolongar a minha atividade favorita dos últimos dias, como diria Bárbara, e não espreitei pela janela. Seja o que for que se passa ali, com aquele homem, prefiro não saber.

Eram três da manhã e eu dava voltas na casa, sem conseguir adormecer. Levantei-me para ir beber um copo de água e fui atraída por um foco de luz. A rua é iluminada, mas a cor é mais quente. Esta era diferente, quase celestial. Aproximei-me da janela e movi ligeiramente o cortinado. A mesa vazia já não estava vazia, nem parecia bem uma mesa. À sua frente, um monte de ecrãs orbitava com informações codificadas. Ainda pensei que fosse um sonho, mas aquela presença não deixava margem para dúvidas.

Estávamos os dois a olhar um para o outro e eu acho que já vi demasiado. 

14 Comments

  1. Adorei! De repente, este conto fez-me recordar o filme I'm watching you, uma jovem escritora que começa a espiar o vizinho da frente que é fotógrafo.
    Quanto mais lia as tuas palavras, mais queria ler. *.*
    Beijinho grande, minha querida!

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    1. Sou mesmo uma nulidade na sétima arte! Tenho de procurar por esse filme, fiquei bastante curiosa.
      Muito obrigada, minha querida 💙

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  2. Sempre que leio um conto teu o único pensamento é "Para quando um livro?!"

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  3. Estou com a Marisa Vitorino, a tua escrita inspira-me *.* E nao, nao estas sozinha nesse "mal de ser de letras" ;)

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  4. Uau, como não gostar, que lindas palavras
    Beijinhos
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