quando tentamos encaixar onde não pertencemos
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Fotografia da minha autoria |
«Pertencer não é apenas sobre fazer parte»
O meu bullet journal é utilizado exclusivamente para as leituras. É nele que anoto tudo o que me pareça relevante acerca de determinado livro: quer para me auxiliar, depois, na construção da review, quer para ficar com um registo de curiosidades e temas para reflexão. E é este último que me dá outro impulso, porque adoro quando um livro me deixa a pensar sobre um tópico em concreto - seja ele mais ou menos complexo.
Recentemente, isso aconteceu-me com a história de Jenny Jackson.
quando nos esforçamos em demasia
Sasha é uma das protagonistas d' A Casa de Pineapple Street e percebemos, desde o início, que será um rosto intruso. Por mais que se esforce para ser verdadeiramente aceite na família do marido, a família Stockton, «um ícone da alta sociedade nova-iorquina», há comportamentos que lhe mostram que isso talvez nunca venha a acontecer, mas não será por falta de tentativas da sua parte.
Numa fase avançada do enredo, por vicissitudes que não abordarei para não estragar a leitura, Sasha regressa a Providence e há uma passagem que, para mim, foi muito reveladora: «de tanto se esforçar por se enquadrar numa família que não a queria, esquecera a sua por completo». Isto foi o gatilho que me fez pensar no quanto nos dedicamos tanto para pertencer. Mas com que intuito? Para que propósito maior?
Eu sei que o ser humano, por mais bem resolvido que esteja, procura sempre por validação, procura ser aceite e encontrar o seu lugar. O problema é quando essa obsessão tolda tudo o resto e faz com que nos esqueçamos daquilo que é mais importante. Porque, às vezes, investimos tanto de nós para fazermos parte de algo, de alguém, que nos perdemos do lugar onde já pertencemos e que precisamos de cuidar. De repente, é como se nos desligássemos da pessoa que somos e encarnássemos uma personagem, apenas para corresponder a expectativas alheias.
Quando compreendemos os efeitos destas ações, também nos olhamos como forasteiros e ficamos a pairar, a tentar decifrar os motivos. Acredito que isso, na maior parte dos casos, não nasça de um fundo malicioso, com segundas intenções. Acredito que, na maior parte das situações, seja só uma tentativa de não defraudar a pessoa com quem estamos, por exemplo. Quando há dinâmicas familiares tão vincadas, como neste livro, isso torna-se ainda mais evidente. Aliás, parece o único caminho possível: desviar da rota implica, forçosamente, seguir direções que divergem.
Em simultâneo, há outra pergunta a ecoar: porque é que temos de ser nós a encaixar nos outros e não o contrário? Claro que, pelo menos princípio, isso seria sempre um ponto de vista hipócrita, porque estaríamos a exigir algo que passa a pesar-nos. E se não o consideramos justo, seria indecente pedi-lo aos demais. Mas a imagem que fica nas entrelinhas é que há sempre uma vida mais valiosa do que outra, por isso é que nos vamos acomodando em vez de esperar que se acomodem em nós. A questão é que não deveria ser assim.
um processo de aceitação
Tentei recuar no tempo e pensar em todas as vezes que segui a mesma narrativa. Não tenho nenhum exemplo concreto, o que me leva a crer que não embarquei em algo profundamente doloroso, ao ponto de sentir que me estava a perder. Ainda assim, sei que disse demasiados «sins» por esse motivo, sei que evitei desmarcar compromissos motivada por esta energia, sei que tentei dar voz a uma voz que não era bem a minha, porque nos fazem acreditar que é aquele tom que temos de adotar no nosso percurso. Se calhar, tive muita sorte com as pessoas que me rodeiam, que nunca fizeram da cobrança um dialeto, mas também é provável que, em retrospetiva, comece a ter uma maior noção de detalhes que me mostrem que calcei os sapatos da Sasha.
Creio que aquilo que mais me incomoda é sentir que o investimento emocional nunca é equilibrado, que as coisas que tu fazes não seriam replicadas pelo outro. E isso magoa. Porque uma coisa é haver cedência, o que me parece saudável, até porque ninguém é dono da razão e é através de uma comunicação franca que conseguimos estabelecer limites, compromissos e um meio termo que funcione para todas as partes, outra completamente diferente é alguém fazer-nos acreditar que a nossa vida é menor, portanto, não há qualquer problema em nos diminuirmos para caber naquela realidade. Acho que isto também é cultural e perpetua aprendizagens que estão enraizadas - quando crescemos a acreditar em algo, é natural a repetição.
Há um momento em que, por tudo isto, entramos em colisão e precisamos de quebrar as amarras, quase como se gritássemos um «já chega!». Será que queremos assim tanto fazer parte de um ambiente que não nos aceita como somos? Será que faz sentido calar a nossa voz para que outros falem por nós? Sei que as respostas a estas perguntas também podem vir de um lugar de medo, de síndrome do impostor, de sombra, porque podemos acreditar que foi o melhor que nos aconteceu, que não merecemos melhor, que aquela realidade é o máximo que podemos ambicionar. Será que sim?
Também acho importante perceber que, não tão raras vezes assim, as reações dos outros são motivadas por mecanismo de defesa, porque existem mal entendidos que não chegam a ser esclarecidos, criando um problema maior, porque preferimos acreditar em certas narrativas ou, então, porque nos sentimos perdidos, em metamorfose, e nos estamos a tentar ajustar. Deste modo, dar o benefício da dúvida por ser vantajoso, porque o caso pode não ser não nos aceitarem, mas existirem demasiadas barreiras a impedir que entremos. Seja como for, precisamos sempre de questionar e de compreender até que ponto queremos esperar.
O processo de aceitação tem oscilações, mas, quando Sasha percebe que se estava a esforçar demasiado para se enquadrar num mundo que não é o dela - e que talvez nunca queira que seja -, também tive um momento de lucidez: porque não quero encaixar num lugar que não me serve. Se nem a roupa aceito que me seja apertada, porque é que aceitaria caber numa caixa que me comprime, esquecendo-me de quem sou?
Excelente reflexão, minha querida.
ResponderEliminarVou guardar o livro, para ler. Fiquei curiosa.
Beijinho grande!
Muito obrigada, minha querida 💜
EliminarConcordo totalmente contigo, minha querida *.* Ja a minha querida mae sempre disse "quem nao se sente..." e realmente este teu pensamento vai de encontro a esta expressao. Nao vale a pena forçar se nao nos faz sentir bem... acabamos sempre por ficar à margem.
ResponderEliminarÀs vezes, precisamos só de não desistir e de fazer pequenos ajustes, para que as coisas resultem realmente. Mas, em muitas circunstâncias, acho que acabamos por prolongar algo que não se adequa a nós. E esse não deve ser o propósito
EliminarTexto muito bom, que me fez reflectir bastante sobre o quanto nos esforçamos, às vezes, para pertencer a lugares e acabamos por nos perder a nós...
ResponderEliminarObrigada, Inês 🫶🏻 nem sempre é fácil perceber quando devemos continuar a insistir ou, simplesmente, largar a mão, mas perdermo-nos a nós não devia ser uma opção, por nada, nem por ninguém. Acho que são coisas que vamos percebendo com o tempo, com as vivências e com a confiança que ganhamos em nós
EliminarAdorei este texto, querida. 🤍
ResponderEliminarMuito obrigada 💜
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