o sofrimento pode ser escrito por quem?

Fotografia da minha autoria


«O sofrimento precisa de ser superado»


Um dos conselhos que mais vezes vejo reproduzido é que um escritor deve escrever sobre aquilo que conhece. Durante anos, não questionei a afirmação, porque me parecia óbvia: pela proximidade e por trazer uma certa estabilidade a um terreno pantanoso. Mas até que ponto não é uma noção limitativa? Até que ponto não impede que o escritor evolua e, acima de tudo, se descubra? Tenho-me debatido cada vez mais sobre isto.


 liberdade criativa ou apropriação?

Juniper Song, protagonista do livro Impostora, de R. F. Kuang (sobre o qual vos falarei amanhã), escreveu um romance acerca do Corpo de Trabalho Chinês. E isso revela-se um problema com alguma expressividade, porque ela é uma mulher branca e acaba por ser questionada sobre o facto de ser ou não a pessoa certa para contar esta história. Até que ponto estaria ela a colher os lucros de um passado que não era seu? Seria correto uma autora que não é chinesa usufruir desse período histórico para dar voz à sua liberdade criativa?

Esta personagem tem muitos traços controversos, que nos fazem questionar a sua moralidade (mas isso deixo para descobrirem na obra de Kuang), não obstante, tenho de lhe dar todo o crédito nesta questão, sobretudo quando afirma que lhe parece perigoso censurar o que os autores devem ou não escrever. Eu entendo as ressalvas, entendo o receio que surge na base deste género de perguntas, porque teme-se uma certa apropriação cultural; teme-se que alguém se aproveite do tal sofrimento alheio para vencer na vida. E compreendo que seja desleal darmos a entender que sentimos na pele algo que nunca seria próximo da nossa identidade. Mesmo assim, acho que há uma enorme diferença entre apropriarmo-nos de algo ou de partirmos de um determinado contexto para explorarmos um ponto de vista meramente ficcional, sem maldade.

Se eu me sentar a escrever a partir da perspetiva de uma personagem com uma doença terminal, em princípio, ninguém me apontará o dedo, ninguém me acusará de me estar a aproveitar de uma realidade alheia, porque não é isso que acontece. Quer dizer, em parte até é, mas fica tudo restrito ao plano da ficção. Não é como se, de repente, estivesse a tentar vender a imagem de alguém que existe, que sofre, para subir na vida. Se eu só pudesse falar do que conheço, do que vivo na pele, só poderia escrever histórias cujas personagens principais seriam uma mulher de 31 anos, solteira e a tentar ser escritora. Isto poderia resultar para um livro, mas, se a minha vida nunca mudar, só poderei criar narrativas dentro deste ambiente? Isso não entusiasma, nem quem lê, nem quem escreve. E eu quero poder escrever sobre mundos que me inquietam, que me impulsionam de alguma forma, que sejam estimulantes, transmitindo a sensação de estar quase a dar corpo a um heterónimo.

A magia da literatura está na infinidade de pontes que constrói, nas camadas que nos permite explorar. Da mesma forma que um ator desempenha diferentes papéis, para sair da sua zona de conforto e ter a possibilidade de ser tantas vidas diferentes, o escritor faz o mesmo, usando as suas palavras para ser quantas vidas sentir ter dentro de si. Portanto, porque é que tendemos sempre a ter dois pesos e duas medidas?

Eu sei que este género de discussões também é uma consequência da marginalização, de ser dado palco não aos verdadeiros intervenientes, mas àqueles a quem atribuímos alguma credibilidade. Claro que eu nunca serei capaz de descrever tão bem as dificuldades que uma mulher negra passa, todos os dias, em contextos que aparentam ser triviais, porque eu não sou uma mulher negra, nem pretendo fazer-me passar pelas suas dores. Mas sou mulher, há condicionantes transversais e ainda não estou assim tão desfasada da realidade. Além disso, se quiser dar voz às suas visões, vou querer ouvi-las, vou querer trazê-las para o centro da partilha e vou querer que tenham o devido destaque. Porque escrever também é empatizar e é conseguir ocupar os lugares de fala com histórias que podem estar na sombra. É por esse motivo que a literatura tem tanto poder.


 o direito de escrever sobre o sofrimento

Há uma herança cultural que parece não ser possível de representar por mais ninguém a não ser por aqueles que a têm no seu destino. Ainda assim, acho que aquilo que distingue a liberdade criativa da apropriação talvez seja a dignidade com que decidimos contar determinada narrativa, até porque o tema pode interessar-nos.

Se eu quiser escrever sobre sofrimento, seja ele de que natureza for, terei de fazer uma pesquisa extensiva, para que, quem o ler, fique na dúvida se aquelas palavras são reais ou ficção, para que fiquem na dúvida se a minha história se funde naquelas páginas. Aí, sim, temos de vender uma ilusão, mas o leitor compreende que é um exercício de escrita, porque fica claro, porque o autor não se faz passar pelas suas personagens quando não está a escrever sobre elas. Quando pousa o lápis, a caneta ou deixa de pisar as teclas do computador, essa dança para e é como se a cortina se levantasse. O autor não chega a uma apresentação e deixa no ar a dúvida sobre esta transição entre planos narrativos, porque a fronteira está bem definida. Por esse princípio, não considero que o direito de escrever sobre determinado sofrimento, seja ele o do Corpo de Trabalho Chinês ou de uma pessoa enlutada, seja condicional. Tem é de ser digno, tem de ser honesto. Nunca condescendente.

A partir do momento em que os escritores só puderem escrever sobre o que conhecem, estão a impedir que sejam verdadeiros contadores de histórias. Estão a impedir que vão mais longe e que tornem o mundo maior. Na realidade, estão a limitar horizontes e a impedir que seja a qualidade literária a ter maior destaque. Há vozes que não queremos sossegar. Há vidas que queremos viver no papel. E tudo isso será negado, se deixarmos de poder explorar o desconforto, a tragédia, a ausência, a dependência, a conquista, o sonho ou a felicidade extrema; será negado, quando deixarmos de preencher vazios e colmatar falhas literárias, quando deixarmos de escrever sobre aquilo que falta. E nenhum escritor quer deixar uma história por contar.

Comentários

  1. Excelente reflexão, concordo plenamente contigo.

    Beijinho grande, minha querida!

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  2. Gostei muito desta tua dissertação, faz muito sentido. Na minha opiniao, se te sai da alma porque nao escrever sobre isso? É certo de que se tivermos conhecimento das causas e se sentirmos na pele, as palavras fazem um pouco mais de sentido, mas o fruto da imaginacao e da critiavidade as vezes tambem conta muito... temos os exemplos do Stephen KIng e do Tolken :)

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    1. Sim, sem dúvida, porque tens uma visão muito mais fidedigna do assunto. Mas é como tu dizes, a imaginação e a criatividade contam muito e acho super estimulante poderes dar forma a uma realidade diferente da tua

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  3. «A partir do momento em que os escritores só puderem escrever sobre o que conhecem, estão a impedir que sejam verdadeiros contadores de histórias» — acho que, no fundo, é aqui que reside a verdadeira questão. Se calhar nem sempre se tem "propriedade" para se contar certas histórias, mas isso não significa que não se saiba contar a história ou, pelo menos, que não se saiba contar aquela perspetiva da história.


    daylight

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    1. Totalmente de acordo! Acho que podemos separar a "propriedade" da perspetiva e, assim, contarmos uma infinidade de histórias.
      Sentindo as coisas na pele, claro que temos outra noção dos danos, mas isso não significa que quem não o sente não tenha forma de o fazer bem, com dignidade

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  4. Nunca pensei nisto, mas agora sei que ficarei a refletir.

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    1. Também só parei a pensar nisto, quando o li nesta história

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