aura super jovem, salvador martinha
Fotografias da minha autoria |
A passagem do tempo é sempre curiosa, não tanto pelo processo em si, mas mais pela perceção que temos da dinâmica, porque os dias vão-nos pesando de formas distintas. Sentada no lugar A21, da Plateia B da Super Bock Arena, num claro momento de pré-espetáculo, estava a ler uma crónica do Bruno Nogueira sobre esta questão e achei que se ia enquadrar bem naquilo estava prestes a assistir. Se nos distanciarmos, «parecem ser feitos da mesma matéria», ainda assim, hás coisas que nem o tempo pode mudar.
Salvador Martinha, após cinco anos dedicados a outros ofícios, nomeadamente ao de ser ator, regressou ao stand-up «puro e sem merdas», para nos contar tudo o que lhe aconteceu desde o seu último solo. Agora, com 41 anos, começa a sentir que o tempo se esfuma e, no fundo, «que a ampulheta virou», como se estivéssemos a chegar ao fim da linha ou, num tom menos fatalista, como se as oportunidades encurtassem, porque alcançar determinadas metas também já não faz assim tanto sentido. Portanto, a idade não perdoa e, como cantava António Variações, «o corpo é que paga», mas a que custo?
Nesta travessia, quem acaba por sofrer as consequências é a sua Aura Super Jovem, que dá nome ao solo, só que aquilo que vi em cima do palco acaba por refutar essa teoria.
Acredito que uma das valências do Salvador é a entrega. O texto é ótimo - e o deste solo, para mim, mostra bem a sua evolução e segurança -, mas ele eleva a fasquia pela forma como o apresenta, o interpreta e se faz valer da sua expressão corporal para envolver a plateia, sem, no entanto, assumir uma personagem. Podem existir frases hiperbolizadas, com o intuito de provocar reações concretas, mas não existe qualquer dúvida de que, ali, é o Salvador a escalar por pensamentos e observações pessoais - com uma camada extra. E nós somos embalados nessa dinâmica, nesse jogo que nos leva a percorrer inúmeros cenários e situações, sempre com um ritmo contagiante.
Fui sem saber muito do espetáculo, mas, admito, com expectativas altas: por um lado, porque já o acompanho há alguns anos e, por outro, porque nunca o tinha visto a atuar ao vivo, portanto, estava curiosa com o que ia encontrar. Para vos ser honesta, cheguei ao final com a sensação de que prometeu e cumpriu tudo a que se tinha proposto.
Antes do Salvador subir a palco, tivemos três momentos de abertura: um com Mariana Rosária, outro com Duarte Pita Negrão e outro com Principe Alberto, que poderão reconhecer de Ar Livre (podcast de Salvador Martinha). Dos três nomes, estava menos familiarizada com o trabalho da Mariana, mas foi uma agradável surpresa. Sem querer entrar em detalhes, até porque a tour continua por outras zonas do país, senti que este trio aqueceu e uniu bem a sala, para que usufruíssemos de uma noite inesquecível.
Uma música dos Backstreet Boys ecoou pela Super Bock Arena, marcando uma das entradas mais inesperadas - e épicas, defenderei eu - em stand-up, prova do quanto a idade não tem de ser um limite. Aliás, por mais que soe a um lugar comum, aquele número diz muito pouco quando o nosso estado de espírito ainda está no auge da boa disposição. E um dos aspetos que mais me agarrou foi ver aquele momento e sentir que o Salvador queria muito estar ali, que queria muito voltar a palco e entregar o seu melhor texto. Acho que nada apagará o sorriso rasgado com que percorreu a plateia.
Transitando entre a participação em Rabo de Peixe, contratos de amizade, memórias familiares, viagens com amigos, ideias alucinadas, perceções de perda, a entrega foi sempre tão incrível, descontraída e próxima, que dei por mim a pensar que a vida é mesmo um lugar bom para se estar, ainda que tenha as suas oscilações, porque, de repente, temos um Salvador Martinha exposto, a desconstruir inseguranças e a abraçar cada situação com uma energia surpreendente. Chegou a ser terapêutico.
Aura Super Jovem não é uma tentativa de parar o tempo, nem de lamentar o que passou. Quanto muito, será uma constatação de que, inevitavelmente, não ficaremos sempre no mesmo lugar. A ampulheta virou, é certo, mas ainda há mais caminho até que caia o último grão de areia. E este solo serve-lhe na perfeição, porque funciona como um espelho da sua mentalidade. Rejuvenescemos em conjunto, contagiados na sua alegria e na certeza de que envelhecer é sabermos reconhecer o que nos permite ser livres.
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