o que a chama iluminou, afonso cruz

Fotografia da minha autoria



A distância permite-nos retirar o pó que cobre certas memórias ou, simplesmente, vê-las de outra perspetiva. Aliás, permite-nos olhá-las com menos dor, retirando-as da escuridão que parece associar-se à sua essência. Isso não altera o curso dos danos, das feridas, mas fica a sensação de termos levantado uma persiana, observando o exterior. E sinto que há uma parte das histórias que só existe por serem feitas desta matéria, por «nascerem de um beco» e varrerem todos os estilhaços que ainda se manifestam. E é, também, por isso que, enquanto houver luz, nenhuma história ficará por contar.


a eminência do fim

O Que a Chama Iluminou é uma novela-ensaio sobre a eminência do fim - pessoal e coletivo -, escrita a partir de acontecimentos vividos na primeira pessoa, após uma viagem atribulada ao Chile, em 2019. Numa visita a Santiago, em setembro, Afonso Cruz viu-se «encurralado por dois blindados conduzidos por carabineros», um mês depois, em Punta Arenas, «um jipe em contramão embate[u]» no carro que o levava para o Museu de História Natural. Entrelaçando estes dois momentos, foi construindo uma reflexão acerca da finitude das coisas e das várias versões que é capaz de assumir.

Creio que é impossível passar-se por circunstâncias tão impactantes sem existir algo a mudar por dentro. Nem sempre com o sentido de termos uma segunda oportunidade, uma vez que isso pode transmitir a ideia errada de a vida não ter sido aproveitada até ali, mas mais de um lugar de reforço, de compreensão em relação à continuidade da vida. Podia ter terminado tudo naquele instante, mas o desfecho foi outro e, por ter sido, não houve algo que se quebrou, quanto muito, encontrou-se uma forma distinta de estar, de alimentar a nossa existência, quase como se tivéssemos mais um propósito.

«As viagens com buracos, lugares onde podemos tropeçar, sempre me fascinaram, e considero que o valor da viagem depende também, ou sobretudo, desses buracos, das surpresas que nos são impostas no caminho»

O autor embala-nos nestas memórias, convidando-nos a caminhar ao seu lado e a revisitar estes lugares de onde a morte esteve à espreita, no entanto, nunca o faz com um tom fatalista. De um modo lúcido, sensível e, até, poético, porque é essa a força das suas palavras, deixa-nos em suspenso a refletir sobre incertezas, sobre ciclos que não se encerram por existir esperança, sobre o peso da ausência, da perda e da necessidade de irmos materializando lembranças que permanecem tão presentes.

Em simultâneo, conhecemos outras histórias e vamos entendendo como a noção de fim pode ser tão distinta, como aquilo que se encerra pode não acontecer ao mesmo tempo em todo o lado. E esta é uma das características que mais me fascina em Afonso Cruz: a sua capacidade de associar diferentes visões e pensamentos, unindo-os como se partilhassem a origem, como se sempre tivessem sido indissociáveis. Por isso é que, nestas páginas, é possível transitar entre culturas, experiências e arte sem que se perca o fio condutor, o término do qual não nos desvinculamos - apenas adiamos.

Permitam-me revelar um pouco mais, só porque fiquei mesmo presa à ideia de que alguém «leva para a tumba as últimas sílabas de uma língua antiga» e dei por mim a pensar na quantidade de coisas que desapareceram sem que déssemos conta, sem que percebêssemos que se perdeu o traço de continuidade. Embora seja inevitável, sinto que não deixa de ser melancólico ter esta consciência de que, daqui a umas gerações, não se conhecerão determinadas particularidades, determinados rituais e/ou dialetos.

«Há rostos tão desumanizados, que precisam de olhos externos para que as suas acções tenham o palco ulterior. A arte faz esse gesto, perpetua um evento, dá-lhe contornos e mostra-o. Pega em algo que passaria despercebido e dá-lhe púlpito, um palco, uma moldura, um museu, o desconhecido ganha uma dimensão sagrada»

Portanto, o fim reveste-se de infinitas identidades, imiscuindo-se nos detalhes, nas trivialidades do percurso, no que procuramos uma vida inteira. Sem nunca nos impor a sua visão dos factos, Afonso Cruz é mediador numa viagem cheia de buracos - que, para si, são sempre as melhores -, não ficando apenas centrado no que lhe aconteceu. Aqueles acontecimentos foram o ponto de partida, mas as rotas paralelas confrontam-nos com algo mais complexo. Além disso, acho maravilhosa a forma como avança nas histórias e depois as recupera num momento posterior, atando elos que nem sabíamos que precisávamos de conhecer, deixando-nos muito mais ricos com essa informação.

O Que a Chama Iluminou mostra-nos que somos ecossistemas, que cada um de nós é um lugar a cimentar alicerces que, por vezes, aparentam crescer no meio da escuridão. Ainda assim, inspirado-se numa citação de Antoine de Saint-Exupéry, Afonso Cruz calibra a maneira como olhamos para as situações, recuperando a esperança, porque, quando acendemos uma vela, temos duas opções: focarmo-nos na cera que derrete ou na luz que preenche o espaço. Embora necessitemos de ambas as valências, por uma questão de equilíbrio, até da destruição podemos renascer, clareando as sombras.


notas literárias
  • Gatilhos: Linguagem Gráfica e Explícita
  • Lido entre: 9 e 10 de janeiro
  • Formato de leitura: Físico
  • Género: Não Ficção
  • Textos favoritos: A Questão da Liberdade, Mulheres de Calama e O Que a Chama Iluminou
  • Pontos fortes: As associações pertinentes e surpreendentes, o olhar atento, a escrita (claro)
  • Banda sonora: La Llorona, Chavela Vargas | Madrepérola, Capicua & Karol Conká | Satellite, Harry Styles | Prece, Adriano Correia de Oliveira | Viagem, Tiago Bettencourt | País das Maravilhas, Plutonio

Disponibilidade: Wook (Livro | eBook) | Bertrand (Livro | eBook)
Nota: Esta publicação contém links de afiliada da Wook e da Bertrand

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