as histórias que não se contam, susana piedade

Fotografia da minha autoria


A culpa pode assumir várias formas e atormentar-nos uma vida inteira, porque tem a capacidade de se alicerçar a tudo aquilo que vivemos, minando as nossas emoções e o modo como reagimos e/ou superamos certas adversidades. No seu romance de estreia, Susana Piedade leva-nos até à cidade do Porto para que o compreendamos melhor.


o que se esconde nos silêncios

As Histórias Que Não Se Contam é uma porta aberta para as histórias de três mulheres: Ana, cujo namorado faleceu precocemente, Isabel, que chegou tarde ao infantário, e Marta, num relacionamento que está longe de ser movido por amor. É no hospital, por conta de um acidente, que as vidas destas desconhecidas se cruzam, mostrando-nos que a dor, o luto e a solidão serão pontes a uni-las. Para cada uma delas, o presente tornou-se um lugar difícil para se estar, no entanto, haverá algo a proporcionar-lhes o alento necessário para lutarem, sararem e se reerguerem: a amizade a nascer do caos.

Tive necessidade de avançar na leitura devagar, não porque a escrita seja inacessível e pouco fluída, mas porque sentimos o peso do sofrimento, dos traumas enraizados que destroem qualquer rasgo de esperança. Acima de tudo, porque o mais intuitivo é ler estas partilhas e ficarmos a pensar no que faríamos, caso estivéssemos numa situação semelhante. Enquanto mulher, sei que houve gatilhos a ativar algumas preocupações, mesmo sem ter experienciado estas situações em concreto. Não obstante, parece-me inevitável transpor-me, idealizar todos os cenários e ver tudo aquilo a acontecer(-me).

«Trago o escuro da noite dentro de mim, um manto negro e denso sem mistérios»

É a terceira obra que leio da autora e, não me interpretem mal, um dos aspetos que mais me fascina na sua arte nem é tanto a construção das narrativas (embora sejam entusiasmantes), é mais o arco de crescimento das personagens e a sensação de que a ação podia ser baseada em factos reais. Retratando vidas e pessoas comuns, há um elo que nos aproxima e que nos impulsiona a colocar as nossas decisões em perspetiva.

Ana, Isabel e Marta partilham silêncios, comunicam pela perda e compreendem-se nesse espaço de ausência e de impotência, no qual a culpa parece ter sempre uma palavra final, porque deveriam ter estado, ter chegado, ter identificado sinais; porque assumiram que a responsabilidade é delas e que tudo seria diferente se optassem por outro caminho. Ora, acredito que vamos aprendendo que os «ses» não nos trazem mais do que angústia, já que nada nos garante que o desfecho seria diferente, mas é difícil libertarmo-nos dessa convicção, sobretudo, quando estamos emocionalmente frágeis.

Sinto que nos vamos envolvendo nas histórias das protagonistas como se elas fossem nossas amigas, por isso, não existe espaço para julgamentos, apenas empatia. E ainda que tenha achado que a narrativa se estende em algumas partes e que nem sempre é fácil reconhecermos a voz delas (gostava que houvesse uma diferenciação maior no discurso de cada uma), compreendi o propósito e fiquei presa até à última página.

«Medo de os ver ir para um lugar de onde nunca mais voltem, como se nunca tivessem existido. Medo de os esquecer, de me deixarem sozinha quando a solidão for tão brutalmente insuportável como sei que um dia será. Todos nós sozinhos, presos em memórias sem tempo, um lugar sem nome, tantas histórias por contar»

Estas mulheres foram-se reencontrando e redescobrindo, porque ninguém permanece igual perante a perda: trocamos as certezas pela desorientação, a felicidade pelo vazio, uma casa cheia por um futuro incerto. Sentimo-nos um caco e não é possível colar os estilhaços. Mas, por mais que demore, vamos percebendo que não estamos sozinhos e que há braços que não nos deixam cair. Cheguei ao fim do livro com a impressão de que esta é uma das suas maiores mensagens, porque partilhar a dor também nos salva.

As Histórias Que Não Se Contam, para além de ser uma ode ao poder da amizade, é um alerta para a importância de conversarmos sobre determinados assuntos. Tendemos a calar o luto e o sofrimento porque nos fragilizam e achamos que é uma maneira de nos resguardarmos, mas isso pode ser só mais uma forma de aumentar as feridas, já que não as curamos como seria suposto. Num mundo idílico, ninguém teria de se despedir de quem ama, nem de lidar com o sufoco da violência, por isso, sim, cada uma destas histórias precisa de ser contada, para que nos escutemos e quebremos as amarras.


notas literárias
  • Gatilhos: Luto, Violência Doméstica
  • Lido entre: 20 e 26 de janeiro
  • Formato de leitura: Físico
  • Género: Romance
  • Pontos fortes: A escrita e o enredo próximo, a ação passada no Porto e a relação de amizade
  • Banda sonora:  Laços, Toranja | Rosa Branca, Mariza | Carpe Diem, Maurice Jarre | Eu Deixei, Carolina Deslandes | Saudade, Saudade, Maro

Disponibilidade: Wook (Livro | eBook) | Bertrand (Livro | eBook)
Nota: Esta publicação contém links de afiliada da Wook e da Bertrand

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