CARAMELO SALGADO

Fotografia da minha autoria



- título sugerido por O Último Fecha a Porta -


A casa está desértica. Entram tímidos raios de luz amarela, mas parece cadavérica, uma autêntica ruína do tempo, como se tivesse passado por aqui um furacão, com molduras inclinadas, paredes rachadas e espaços vazios; e já sem qualquer retrato que demonstre uma réstia da vida que existiu dentro destas quatro paredes.

O cenário é frio. Luminoso, pela localização, mas bastante gélido. E eu sinto-me uma estrangeira ao percorrê-lo. O silêncio que, outrora, foi conforto é, hoje, um campo de batalha sem a mínima possibilidade de se reconstruir. Por maior que fosse a vontade, não restou alguém para limpar os destroços - nem mesmo eu.

Sentei-me na única poltrona disponível, num tom de caramelo salgado que adoçou muitas das nossas memórias, a recordar um passado que me parece demasiado longínquo. Olho à minha volta e sinto que nunca habitei este chão. Será que criamos morada num lugar que cremos não nos pertencer? Será que algum dia esta foi a nossa história? Há sempre um apontamento de mágoa que me parece fruto de um longo pesadelo.

Decido levantar-me e percorrer o corredor estreito, que sempre constatei ser demasiado pequeno para os nossos sonhos de algibeira, mas excessivamente largo para o sofrimento de um embate violento. Prossigo e entro no primeiro quarto: imperfeito, desnudo de traços humanos, ainda que tenha reencontrado um álbum fotográfico aberto em cima da cama, na posição em que o larguei, quando as lágrimas se tornaram insuportáveis e eu prestes a sucumbir. Vi-nos em fotografias mentirosas, que recordam passeios à beira-mar, tardes de cinema e viagens pelo mundo. Não sei quem são estas pessoas. Certamente, já não somos nós.

No dia em que me levantaste a mão, prometi não voltar. Recuei. Não por medo, não por pena, muito menos por esperança na redenção. Voltei por despeito, para provar que o apocalipse que criaste não seria unilateral.

Escolhi o caos à condescendência e nunca me calei. Regressei, agora, a uma casa vazia, apenas para garantir que compreendeste a força da minha voz. Penso que me ouviste, por isso, foste embora, mas não sem antes voltares a escolher a destruição: desta vez, já não foi o meu corpo a arcar com as consequências da tua ira.

Abro as janelas para expiar fantasmas e nódoas negras. Encaminho-me para a cozinha, para vasculhar o frigorífico, porque as memórias são amargas, mas há gelado no fundo da gaveta - de caramelo salgado, porque o destino é irónico. Observo-me, como se estivesse fora do meu corpo, como se esta realidade não fosse minha. Não consigo ir embora. Afinal, contra tudo o que pensei, um novo futuro será escrito nesta casa.  

14 comments

  1. Este conto está incrível. Cada palavra tua levou-me lá. Foi como se estivesse a ser tudo.
    Adorei! *.*
    Beijinho grande, minha querida!

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  2. Um conto - que poderia muito bem ser real - que gostei muito de ler. O meu elogio para a sublime inspiração.
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    Saudações poéticas. Semana feliz .
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    Poema: “” Vivam o Amor com peça de Cristal ””…
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  3. Aprendi a gostar deste sabor e agora é dos meus preferidos *.* Adorei o conto :) Muito obrigada pela partilha do teu talento :)

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  4. Como não gostar de ler a tua escrita,
    Adorei bastante esse teu conto
    Beijinhos
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  5. Muito bem! Obrigado por teres aceite o desafio xD

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  6. Que conto maravilhoso! Já sentia falta deste teu mundo <3

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