justificação de falta
Fotografia da minha autoria |
Estava a limpar a minha mochila, para a substituir por outra, e deparei-me com um papel dobrado em quatro. Embora ande sempre com blocos e canetas atrás de mim, não costumo armazenar papéis não identificados, por isso, aquele intrigou-me.
Estava ali perdido numa divisória de organização, completamente esquecido, sem que lhe conseguisse atribuir uma data de nascimento. Mas não por muito tempo, porque, assim que desfiz a primeira dobragem, percebi o que era: uma justificação de falta.
Eu sabia que não ia precisar, mas pedi-a mesmo assim. Quando o meu tio faleceu, fiquei a observar o armador a escrever o meu nome e o grau de parentesco que nos unia. Não a mim e a ele, mas a mim e à pessoa que tinha acabado de perder. Eu sabia que não ia precisar da justificação, mas pedi-a na mesma, como se fosse uma prova irrefutável de que era sobrinha do meu tio, como se aquele pedaço de papel fosse a cola que me manteria intacta, quando toda eu continuava a ser lágrimas, um grito abafado no peito e uma infinidade de palavras que não conseguia dizer. Queria ser colo, mas precisava que me amparassem. E aquele papel foi só mais uma maneira de abrir a ferida.
Aquelas letras, que cumprem um mero procedimento, não falam sobre os conhecimentos que tinhas, a quantidade de vezes que apoiaste a minha escrita, as horas que me ouviste a contar as histórias que eu inventava, os manjericos que trazias no dia de S. João (um para a minha avó, outra para a minha mãe e outro para mim; depois só para a minha mãe e para mim); não falam sobre os «inté», as provocações futebolísticas, os passeios em Bragança, as dicas de fotografia e o facto de seres o tio das barbas. Sobretudo, não falam da culpa que sinto por ter adiado o telefonema e do amor que te tenho. Cuidas de mim onde estiveres?
Agarrada ao papel, fiquei a pensar na quantidade de coisas que guardamos sem nos virem à memória com regularidade ou que guardamos sem sabermos o que lhes fazer a seguir. E lembrei-me, por exemplo, dos números de telemóvel que ainda não consegui apagar - e que talvez nunca venha a conseguir. Talvez não faça sentido, mas é como se estivesse a deitar fora uma parte tão importante de quem sou.
Há dias em que me pesa já não ser capaz de me recordar das vozes de quem partiu. Se for eliminando estes dados, o que é que sobra? Sei que não há algo que possa fazer com eles, sei que não posso ligar e concertar o que se quebrou cá dentro, mas há uma espécie de conforto por continuarem onde estão. É ilusório, bem sei, mas é como se algo permanecesse igual e a sensação de estar em falta fosse menos audível.
Eu sabia que não ia precisar daquela justificação. Quatro meses depois, continua a não ser útil. Mas, pelo sim, pelo não, vou só mantê-la ali mais um pouco.
Estava ali perdido numa divisória de organização, completamente esquecido, sem que lhe conseguisse atribuir uma data de nascimento. Mas não por muito tempo, porque, assim que desfiz a primeira dobragem, percebi o que era: uma justificação de falta.
Eu sabia que não ia precisar, mas pedi-a mesmo assim. Quando o meu tio faleceu, fiquei a observar o armador a escrever o meu nome e o grau de parentesco que nos unia. Não a mim e a ele, mas a mim e à pessoa que tinha acabado de perder. Eu sabia que não ia precisar da justificação, mas pedi-a na mesma, como se fosse uma prova irrefutável de que era sobrinha do meu tio, como se aquele pedaço de papel fosse a cola que me manteria intacta, quando toda eu continuava a ser lágrimas, um grito abafado no peito e uma infinidade de palavras que não conseguia dizer. Queria ser colo, mas precisava que me amparassem. E aquele papel foi só mais uma maneira de abrir a ferida.
Aquelas letras, que cumprem um mero procedimento, não falam sobre os conhecimentos que tinhas, a quantidade de vezes que apoiaste a minha escrita, as horas que me ouviste a contar as histórias que eu inventava, os manjericos que trazias no dia de S. João (um para a minha avó, outra para a minha mãe e outro para mim; depois só para a minha mãe e para mim); não falam sobre os «inté», as provocações futebolísticas, os passeios em Bragança, as dicas de fotografia e o facto de seres o tio das barbas. Sobretudo, não falam da culpa que sinto por ter adiado o telefonema e do amor que te tenho. Cuidas de mim onde estiveres?
Agarrada ao papel, fiquei a pensar na quantidade de coisas que guardamos sem nos virem à memória com regularidade ou que guardamos sem sabermos o que lhes fazer a seguir. E lembrei-me, por exemplo, dos números de telemóvel que ainda não consegui apagar - e que talvez nunca venha a conseguir. Talvez não faça sentido, mas é como se estivesse a deitar fora uma parte tão importante de quem sou.
Há dias em que me pesa já não ser capaz de me recordar das vozes de quem partiu. Se for eliminando estes dados, o que é que sobra? Sei que não há algo que possa fazer com eles, sei que não posso ligar e concertar o que se quebrou cá dentro, mas há uma espécie de conforto por continuarem onde estão. É ilusório, bem sei, mas é como se algo permanecesse igual e a sensação de estar em falta fosse menos audível.
Eu sabia que não ia precisar daquela justificação. Quatro meses depois, continua a não ser útil. Mas, pelo sim, pelo não, vou só mantê-la ali mais um pouco.
▪ outubro, 2024
Às vezes guardamos coisas apenas pela forma como nos ligam a quem já partiu. Pelo seu valor simbólico. Por conterem memórias. Em 2008 perdi o meu tio Pedro com quem passei a minha infância, lembro-me que durante muito tempo tive pendurada num quadro do meu quarto uma daquelas fitas que vêm nos kits de passagem de ano. Apenas porque tinha sido usada por ele, porque tinha o perfume dele. A fita era de 2005 e manteve o perfume dele por muito tempo.
ResponderEliminarBeijinho grande, minha querida!
Sem dúvida, porque todas essas coisas preservam as memórias daquela(s) pessoa(s). É como se fosse uma garantia de que nunca as perderemos.
EliminarObrigada pela partilha, minha querida. Compreendo bem o que queres dizer 💙
A perda mais dificil de todas...ninguém está preparado para enfrentar a perda daqueles que nos são verdadeiramente próximos...é muito duro....a vida vai perdendo o sentido...
ResponderEliminarIsabel Sá
Brilhos da Moda
Sabemos que é o que temos de mais certo e que acabaremos todos por passar por esse processo de luto, mas não é por isso que custa menos, que se torna mais simples
Eliminar🫂😭🫶
ResponderEliminar🫂🫶🏻
EliminarCaramba... agora deixaste-me com uma lagrima no canto do olho, e olha que sou uma pita chorona... desde sempre :/ Ha memorias que nos aparecem quando menos esperamos e se calhar é porque precisamos que aconteçam *.* Um beijinho grande, minha querida :)
ResponderEliminar🫂💙 sim, se calhar surgem mesmo quando mais precisamos
EliminarEste texto comoveu-me 🥺
ResponderEliminarMuito obrigada, Rita!
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