aqui em volta de mim, francisca camelo

Fotografia da minha autoria



Gatilhos: Referência a Violência e a Aborto


A Francisca Camelo foi convidada a inaugurar a Caminhos da Casa, uma residência artística integrada no Kulverão (semana da juventude da Nespereira), «com foco nas gentes e tradições» desta vila portuguesa. Quando questionada sobre o que gostaria de fazer, a resposta foi imediata: «conhecer mulheres de diferentes gerações» que habitassem na Nespereira. E o resultado da residência assumiu a forma de um livrete.


a poesia a interligar várias vozes

Aqui em Volta de Mim é um trabalho de poesia documental, onde aliou a sua área de formação, a psicologia, porque lhe fornece as ferramentas necessárias «na recolha de informação sensível através de conversas atentas». Esta dinâmica não é uma novidade para a poeta, uma vez que já tinha realizado trabalhos semelhantes «com a população dos pescadores de Esposende (…) e com a população de Ílhavo», mas, como a própria referiu no quase-prefácio, faltava-lhe um ponto verde «neste mapa de Portugal profundo» e encontrou-o aqui. Além disso, como viveu a maior parte da sua vida na cidade, interessou-lhe descobrir e perceber o que é, foi e será para estas mulheres viver num lugar isolado, onde as tradições permanecem tão enraizadas em cada um.

À conversa com seis mulheres, dos 15 aos 95 anos, há cinco temas centrais nos poemas: a mãe, a fome, a alegria, a violência e a terra. E o que achei mais fascinante, para além da escrita da Francisca que nos confronta sempre com o que o ser humano tem de mais íntimo, foi a forma como todas estas vozes se interligaram, como, ainda que existam sinais, não conseguimos bem balizar a que geração pertencem aquelas palavras. Acho que isso demonstra o quanto a comunidade preserva visões comuns e o quanto há assuntos que são transversais, como se fossem uma espécie de legado.

Há contrastes, naturalmente: enquanto as mais velhas trazem a bagagem de um passado ora nostálgico, ora ciente da carência de direitos, as mais novas trazem um sentido de futuro sustentado no ato de preservar. A unir estes dois pólos temos um presente com desafios, com memórias, com partilhas que edificam os costumes que ainda hoje preenchem as ruas, as casas, as vivências dos seus habitantes. Por esse motivo, somos convidados a ouvir as cantigas, a participar nos bailes e na desfolhada. Como pano de fundo, encontramos outro contraste: o afastamento e a paz que «as montanhas provocam» na Nespereira, num misto de leveza e de melancolia.

«em nespereira
cada casa é cada casa
mas as mulheres fazem o mesmo trabalho que eles
e não são respeitadas da mesma maneira»

É visível a precariedade, a violência estrutural, a crise económica, as desigualdades de género e a dificuldade provocada pelo isolamento geográfico. Por oposição, é visível o cuidado e o carinho em relação aos seus e em relação à terra. Sinto que não existe qualquer mágoa espelhada nestes versos, talvez por virem já de um lugar de catarse. Não quer dizer que estas realidades não lhes pesem, ainda hoje e até ao final dos dias, no entanto, a maneira como preferem olhar para cada um dos tópicos mencionados é benigna. Crítica, sempre, mas sem sinais de ataque: apenas com o propósito de espelhar para que o futuro se construa com outros alicerces, com outros costumes.

Aqui em Volta de Mim lê-se num sopro, mas fica em nós, acredito, até porque nos deixa com vontade de conhecer mais histórias destas mulheres - e de tantas outras que habitem em cenários semelhantes. Há coisas que, com toda a certeza, são muito próprias desta vila, mas todas as vozes participantes acabam a mostrar-nos que talvez consigamos rever-nos em muitos detalhes ou que seremos capazes de os adaptar à nossa identidade. Acima de tudo, acho que esta obra encurta vários tipos de distância.


🎧 Música para acompanhar: A Próxima Viagem, Cassete Pirata

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